Opinião

O testamento conjuntivo na reforma do Código Civil

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  • é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e em Direito Civil Comparado pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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13 de março de 2025, 7h04

Um dos temas que tem passado incólume nos debates doutrinários acerca da reforma do Código Civil é a recepção pelo direito brasileiro do testamento conjuntivo, instituto que, como se sabe, é atualmente rejeitado pelo artigo 1.863, na esteira do que igualmente estatuía o artigo 1.630 da revogada lei de 1916. Ambos dispõem taxativamente que: “É proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo”.

Spacca

Como doutrina Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda [1], “O Código Civil brasileiro considera conjuntivo o testamento que hoje proíbe; espécies dele, o simultâneo, o recíproco e o correspectivo. No testamento simultâneo, há a disposição de ambos numa só: os dois testadores testam, e dizem a mesma coisa. Exemplo: A e B instituem herdeiro a C; legam a casa da rua do Ouvidor a D, a da rua do Rosário a E. No testamento recíproco, cada um é herdeiro ou legatário do outro. No testamento correspectivo, além da reciprocidade, faz-se causa de dispor a favor do outro testador o ter sido instituído por ele”.

Tal repulsa, é bom que se diga, não constitui singularidade do ordenamento pátrio, pois como outrora já pudemos verificar, trata-se, em verdade, de fórmula prevalecente nos países da tradição romano-germânica, como assim se observa, ilustrativamente, nas codificações francesa, italiana, portuguesa, espanhola, suíça, holandesa, romena, argentina e peruana, tendo sido a figura contemplada por parcas legislações, como a alemã, a austríaca e a dinamarquesa, além de alguns derechos forales espanhóis, como em Navarra, na Galícia e no País Basco [2].

De qualquer sorte, parece-nos que a disciplina projetada pelo PLS nº 4/2025 carece de melhores reflexões, o que nos motiva a tecermos as presentes considerações, que serão deduzidas, como não poderia deixar de ser, de forma respeitosa e colaborativa, não exprimindo, ademais, nenhum menoscabo pessoal ou animus partidário.

O teor da proposição 

Pela alteração proposta, o novel artigo 1.863 do codex passaria a vigorar com a seguinte redação: “É proibido o testamento conjuntivo, simultâneo ou correspectivo. Parágrafo único. Admite-se o testamento conjuntivo recíproco entre cônjuges e conviventes, qualquer que seja o regime de bens, sem perda da sua revogabilidade por qualquer dos testadores, nos limites de sua disposição”.

De início, cumpre registrar que o relatório da subcomissão não explicita as motivações que recomendariam a modificação sugerida, que, como se pode perceber, contempla singularmente a inserção do testamentum conjuntivo recíproco (trata-se, portanto, de uma recepção mitigada), havendo tão somente uma anosa e pouco esclarecedora citação de Washington de Barros Monteiro na Enciclopédia Saraiva de Direito, in verbis: “o Código proibiu indistintamente todas essas disposições, não só porque constituíam modalidades de pactos sucessórios, como também porque contrariavam um dos caracteres irredutíveis do testamento, sua revogabilidade. Efetivamente, em um testamento recíproco, admitir a revogação será ir de encontro à reciprocidade estipulada; não admiti-la será desnaturar a índole de ato essencialmente revogável. Todavia, em alguns países, como a Alemanha, a Suécia, a Inglaterra e muitos Estados dos EUA, são permitidos e bastante comuns testamentos conjuntivos, efetuados por marido e mulher”.

Mas não é só. A lição doutrinária referenciada ostenta certo equívoco quanto à revogabilidade, eis que o testamento conjuntivo recíproco é, em regra, revogável, exigindo-se normalmente não mais que a mera notificação do outro testador (ex. § 2271 Abs. 1 do BGB), tanto que o pretendido parágrafo único, acertadamente, adota a locução “sem perda da sua revogabilidade por qualquer dos testadores”. Essa circunstância se vislumbra, outrossim, no testamentum conjuntivo correspectivo. A rigor, a irrevogabilidade incide apenas no testamento conjuntivo simultâneo e tão só após a morte de um dos testadores, salvo nas hipóteses expressamente excepcionadas em lei (ex. Ley 202, alíneas b/c, da Compilación del Derecho Civil Foral de Navarra).

Sem embargo, tem-se que a vedação ao testamento conjuntivo em nosso sentir não mais se justifica, fundando-se exclusivamente no frágil argumento de que a sua admissão vulneraria o caráter unipessoal (ou exclusivo, como queiram) deste negócio jurídico mortis causa, e, por conseguinte, a plena liberdade de disposição testamentária [3], desprezando-se a conveniência da regulamentação unitária da transmissão hereditária, notadamente entre cônjuges e conviventes [4], e, sobretudo, que a autodeterminação sucessória permanece incólume, podendo o testador, giza-se, a qualquer tempo, revogar unilateralmente o testamentum, como assim ocorre nas demais modalidades ordinárias.

Ponderações críticas

Para nós, o principal desacerto da propositura de lege ferenda reside no exclusivo acolhimento do testamento conjuntivo recíproco, o que não acresce concretamente nenhum avanço substancial ao planejamento sucessório, pois, como bem destaca Daniel de Bettencourt Rodrigues Silva Morais [5], tal espécie constitui “mera união documental”, ou seja, se hodiernamente faculta-se aos consortes ou companheiros firmarem na mesma data, perante o mesmo tabelião, em atos separados, benesses testamentárias recíprocas [6], poderão então, conforme a almejada comutação, fazê-lo no mesmo instrumento. Nada mais do que isso.

Não por outra razão, não se constata nas legislações mencionadas modelo tão restritivo, e, como se fosse pouco, a experiência em tais sistemas revela que a incidência prática de significativo relevo reside na combinação de cláusulas recíprocas e simultâneas, como no chamado “testamento berlinense” (Berliner Testament), previsto pelo § 2269 do Código Civil alemão, em que os cônjuges (ou parceiros registrados) se nomeiam herdeiros reciprocamente, instituindo um terceiro(s), geralmente filho(s) ou outro(s) descendente(s), como sucessor(es) do consorte sobrevivente [7], o que também se percebe no direito austríaco [8].

Por outro lado, independentemente desse posicionamento, mesmo se considerarmos a singular adoção do testamento conjuntivo recíproco, salta aos olhos duas relevantes omissões da normatização projetada: 1- os efeitos do divórcio ou da desconstituição da união estável, bem como da anulação do vínculo conjugal ou convivencial, sobre tais disposições testamentárias. Pela lex alemã, (§ 2268 Abs. 1), salvo indicação em sentido contrário, reputar-se-ão ineficazes; 2- as consequências jurídicas da sua revogação unilateral. Na Áustria (ABGB, § 586 Abs. 2), a cláusula recíproca presumir-se-á igualmente revogada pelo outro testador.

Por derradeiro, é cediço que o projeto, em termos semelhantes aos diplomas alemão e austríaco, restringe a eleição do testamentum conjuntivo por cônjuges ou conviventes [9], olvidando-se que o mesmo interesse justificador dessa tutela (sucessão hereditária coordenada) também pode se verificar entre os membros de uma família monoparental (art.igo 226, § 4º, da CR/88). Em Navarra (Ley 199 da Compilación del Derecho Civil Foral [10]), na Galícia (artigo 187 da Ley 2/2006 [11]) e no País Basco (artigo 24 da Ley 5/2015 [12]), por exemplo, inexiste qualquer limitação para a sua entabulação, o que potencializa o seu emprego por indivíduos vinculados pelos mais diversos liames.

Como recentemente advertiu Pierre-Yves Gautier na apresentação da publicação original do Código Civil francês de 1804, editada em 2024 pela Editora Dalloz em homenagem aos 220 anos do “Code Civil des Français”, “o tempo exprime a necessidade de conhecer e refletir antes de editar a regra”, e, citando J. Ray, lembra-nos que “um texto legal é, na maioria das vezes, a expressão coletada de todo um trabalho de meditação, construção e discernimento, alimentado ao longo dos séculos pelo contato constante com circunstâncias mutáveis, sentimentos e ideais diversos” [13].

 


 

[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Parte Especial. Direito das Sucessões. Disposições Testamentárias. Formas. Atv. Giselda Maria Fernandes Novares Hironaka e Paulo Luiz Netto Lôbo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 385

[2] POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. Legítima Hereditária e Sucessão Contratual: Estudo Comparado da Autonomia Privada Sucessória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 244-245 e 248-249.

[3] TERRÉ, François; LEQUETTE, Yves; GAUDEMET, Sophie. Droit Civil: Les Successions, Les Libéralités. 4.ed. Paris: Dalloz, 2013, p. 377; BIANCA, C. Massimo. Diritto Civile: Le Successioni. v.2.2. 5.ed. Milão: Giuffrè, 2015, p. 260; PIRES DE LIMA, Fernando Andrade; ANTUNES VARELA, João de Matos. Código Civil Anotado. v.VI. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 290.

[4] MORAIS, Daniel de Bettencourt Rodrigues Silva. Autodeterminação Sucessória por Testamento ou por Contrato? Cascais: Princípia, 2016, p. 511.

[5] Idem, ibidem, p. 497.

[6] Como leciona Zeno Veloso, “nada impede que duas pessoas, em atos separados, ainda que na mesma data, perante o mesmo tabelião, façam testamentos dispondo em favor de um terceiro, ou, mesmo, em proveito recíproco. Por sinal, isso ocorre com certa frequência, quando os testadores são marido e mulher”. VELOSO, Zeno. Do Direito das Sucessões in Código Civil Comentado. 8.ed. Coord. Regina Beatriz Tavares da Silva. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 2097.

[7] RÖTHEL, Anne. Erbrecht. 18.ed. Munique: C. H. Beck, 2020, p. 155.

[8] ZANKL, Wolfgang. Erbrecht. 10.ed. Viena: Facultas, 2024, p. 93.

[9] Digamos semelhante, pois na Alemanha e na Áustria tal faculdade está circunscrita aos consortes e parceiros registrados, não abarcando, portanto, os meros coabitantes. No direito dinamarquês, ao revés, além de cônjuges e companheiros registrados, franqueia-se idêntica possibilidade aos conviventes de fato, desde que já coabitem há mais de 2 (dois) anos ou que estejam esperando um filho(a). Cf. KAULBACH, Ann-Marie Cathérine. Gestaltungsfreiheit im Erbrecht: Pflichtteilsrecht und Testiervertrag auf dem Prüfstand. Frankfurt am Main: Wolfgang Metzner, 2012, p. 63.

[10] Ley 199. Concepto. Es testamento de hermandad el otorgado en un mismo instrumento por dos o más personas.

[11] Art. 187. 1. Es mancomunado el testamento cuando se otorga por dos o más personas en un único instrumento notarial.

[12] Art. 24. El testamento mancomunado. 1. Se considera mancomunado el testamento siempre que dos personas, tengan o no relación de convivencia o parentesco, dispongan en un solo instrumento y para después de su muerte de todos o parte de sus bienes.

[13] Cf. Code Civil des Français. Paris: Dalloz, 2024, p. II.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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