Fundap, descontos comerciais e dedutibilidade de despesas
12 de março de 2025, 8h00
A questão da dedutibilidade de despesas para fins de apuração do IRPJ e da CSLL sempre esteve em discussão na doutrina e na jurisprudência. Questionamentos como o que são despesas necessárias, normais ou usuais e a quem cabe constatar esses atributos são recorrentes desde a promulgação da Lei nº 4.506/1964, cujo artigo 47 fundamenta a regra geral de dedutibilidade prevista no artigo 311 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR/18).
Como bem se sabe, é da essência da apuração dos referidos impostos a dedução de despesas para que se produza o acréscimo patrimonial tributável. Em sua acepção técnica, despesas são decréscimos do patrimônio durante o período contábil, sob a forma de saída de recursos, redução de ativos ou assunção de passivos [1]. Assim, se uma empresa concede descontos comerciais, não há dúvida alguma de que ela suportou um decréscimo em seu patrimônio – ou seja, uma despesa. Todavia, para ser deduzida da base de cálculo, a legislação tributária exige que essa despesa decorra das atividades empresariais e seja normal, usual ou necessária.
Daí que, no complexo universo da tributação do comércio exterior, mais especificamente das importações por conta e ordem de terceiros e no contexto de guerra dos portos, surge uma específica questão enfrentada no contencioso: os valores relativos aos descontos de ICMS concedidos no âmbito do Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias (Fundap) podem ser deduzidos do lucro real e da base de cálculo da CSLL? De um lado, a Receita argumenta que tais descontos configuram mera liberalidade, autuando eventuais apurações que levam em conta tais despesas. Do outro, as empresas importadoras (trading companies) defendem que são despesas completamente vinculadas às suas atividades empresariais centrais, sendo deduzíveis, portanto, da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
O Carf julgou apenas seis casos sobre o tema em suas turmas ordinárias. Na coluna de hoje, buscarei perquirir as decisões proferidas e os argumentos que as embasam, para então chegar ao pronunciamento da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) sobre a matéria. Para tanto, será inicialmente abordado o funcionamento do Fundap e a dinâmica das importações por conta e ordem de terceiros, o que possibilitará, alfim, uma compreensão acurada dos conceitos de usualidade e normalidade de despesas nesse caso específico.
O benefício do Fundap
O Fundap foi instituído pelo estado do Espírito Santo em 1970 por meio da Lei no 2.508/1970. Citado benefício, na forma de financiamento por meio do Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes), visa incrementar as importações e exportações realizadas pelo Porto de Vitória, na busca de dinamização da economia e incremento do giro comercial do Estado. Nesse sentido, para que faça jus ao benefício fiscal, é necessário que a empresa importadora 1) tenha sede ou filial no Estado do Espírito Santo; 2) efetive as operações de comércio internacional (desembaraço aduaneiro) no ES; e 3) recolha o ICMS ao ES.
Em síntese, o benefício funciona da seguinte forma, já dentro do contexto da importação por conta e ordem de terceiros – cujas características serão pormenorizadamente descritas mais adiante:
1) A IMPORTAÇÃO POR CONTA E ORDEM: por contratos previamente firmados com seus clientes, a empresa capixaba atua enquanto prestadora dos serviços de importação de mercadorias. Tais importações ocorrem na modalidade por conta e ordem de terceiros;
2) O DIFERIMENTO DO ICMS-IMPORTAÇÃO: a trading, enquanto empresa importadora, recolhe todos os tributos pertinentes ao processo de importação de mercadorias. No entanto, o ICMS-Importação devido no desembaraço é diferido para saída, a qualquer título, da mercadoria importada do estabelecimento importador. Além disso, após a saída da mercadoria, o recolhimento do imposto ao Estado do Espírito Santo, pode ser pago até o 26o dia do mês subsequente ao mês ao desembaraço aduaneiro da mercadoria.
3) REPASSE DA MERCADORIA COM DESCONTO: durante esse período (entre a saída da mercadoria importada do estabelecimento importador e o 26º dia do mês subsequente) a trading repassa a mercadoria importada para a empresa que, por conta e ordem, a contratou. A entrega da mercadoria se dá com o desconto contratado entre a trading e suas clientes, destacando-se o ICMS-interestadual devido quando da saída da mercadoria do seu estabelecimento, o qual é devidamente recolhido;
4) PAGAMENTO DO ICMS-IMPORTAÇÃO E PEDIDO DE FINANCIAMENTO: após a transação acima (entrega da mercadoria ao cliente da empresa importadora), a trading recolhe o ICMS-Importação e com a devida comprovação, dirige-se ao Bandes e obtém financiamento no valor de 8% da operação de revenda da mercadoria, devendo investir parcela deste montante em projetos sociais, industriais, etc., de acordo com as previsões trazidas pela legislação do benefício.
Por fim, a lei prevê duas formas de quitar o financiamento junto ao Bandes. A trading pode 1) pagar a totalidade do débito em 25 anos com uma taxa de 1% ao ano ou 2) participar de um leilão do Bandes, no qual a importadora pode liquidar antecipadamente sua própria dívida com um desconto de até 90%.
Essa é a formatação e dinâmica do Fundap, com nítido caráter extrafiscal, no sentido de promover o desenvolvimento capixaba, tendo por fundamento último o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de erradicar as desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III da CF).
As importações por conta e ordem de terceiros
Como é consabido por aqueles que trabalham com Direito Aduaneiro, no comércio exterior há três modalidades de importação: 1) direta; 2) por encomenda e 3) por conta e ordem de terceiros.
Em síntese, a operação por conta e ordem de terceiro é o serviço prestado por uma empresa importadora que promove, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadorias adquiridas por outra empresa ou pessoa física (a adquirente). Em outros termos, a trading vende serviço de logística operacional no comércio exterior, atuando como mandatária da adquirente.

Diante dessa configuração, o STF, no julgamento do Tema 520, esclareceu a controvérsia existente sobre o ente competente para a cobrança do ICMS-importação e fixou que, na importação por conta e ordem de terceiro, o que vale é a localização do adquirente da mercadoria importada, e não a localização da trading, que simplesmente faz a importação e repasse das mercadorias. Assim é que, conforme fixado pelo STF, o ICMS é devido pela adquirente.
Corroborando que a repercussão econômica é fundamental para a tributação do consumo nas importações, o STJ, no julgamento do REsp 1.552.605, consolidou que o importador por conta e ordem não arca com o custo financeiro da operação, não tendo, portanto, legitimidade ativa para eventual repetição de indébito. Aqui, mais uma vez, percebe-se que é claro o entendimento das Cortes Superiores no sentido de que, na importação por conta e ordem, é a condição do real adquirente (e não do importador) que deve ser levada em consideração.
Traçado esse cenário, importante para a compreensão do problema, já é possível alcançar o tema central do presente artigo, analisando a jurisprudência do Carf sobre a dedutibilidade desses descontos, no contexto da operacionalização do benefício fiscal do Fundap da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
A jurisprudência das turmas ordinárias Carf
Conforme adiantado, as turmas ordinárias do Carf julgaram seis casos sobre o tema.
De um lado podemos encontrar acórdãos exarados adotando a visão apresentada pela Receita Federal na motivação das suas autuações, segundo a qual os descontos concedidos pela trading seriam, na realidade, um repasse indevido do Fundap, o qual possui caráter personalíssimo. Essa interpretação – estampada nos Acórdãos nº 1302-002.558 e 1302-006.405 – baseia-se na premissa de que, para serem considerados despesas operacionais dedutíveis, os descontos devem ter lastro em receitas próprias geradas pela atividade operacional da trading (prestadora de serviços de comércio exterior), o que não seria o caso dos descontos concedidos no âmbito do Fundap, que decorrem, essencialmente, dos ganhos proporcionados pelos benefícios junto ao Bandes.
Sob essa ótica, ao conceder os descontos, a trading estaria transferindo a terceiros vantagens fiscais que deveriam beneficiar exclusivamente a empresa importadora, infringindo, assim, a natureza personalíssima do Fundap. Nesse sentido, argumenta-se, por exemplo, que eventuais descontos deveriam ser concedidos diretamente sobre o preço do serviço prestado pela trading.
No mais, classificam os descontos concedidos pelas empresas como um ato de liberalidade, o que os distancia o conceito de “necessários”. Adotando esse entendimento, foram proferidos os Acórdãos nº 1302-002.558 e 1302-006.405, segundo os quais a trading não concede os descontos porque precisa, mas porque quer atrair e fidelizar seus clientes, apenas.
Em resumo, para as decisões contrárias à dedutibilidade, a prática das empresas fundapeanas em importações por conta e ordem de terceiros seria análoga a de uma empresa que obtém receitas financeiras por meio de aplicação bancária, decide repassar parte de tais receitas a um cliente via desconto e, ao final, deduz esses repasses da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, a título de desconto comercial.
De outro lado, para as decisões favoráveis à dedução, os descontos são intrínsecos ao funcionamento do Fundap. Entende-se que, para tornar o uso do porto de Vitória atrativo, o próprio modelo do benefício pressupõe o que a Receita chama impropriamente de “repasse”. Afinal, se o benefício do Fundap está relacionado à redução da carga tributária via benefício fiscal atrelado ao ICMS, nada mais necessário, usual e normal do que “repassar” as vantagens obtidas para aquele que é o responsável final pelo pagamento.
No Acórdão 1301-002.006 ficou clara a importância da existência de vinculação dos contratos de compra e ordem de terceiros, notas fiscais de transferência e contabilidade da empresa fundapeana, para fins de validação da dedutibilidade da despesa. No mais, consignou-se que “não há impedimento legal a essa prática nos leilões dos contratos de financiamento relativos ao Fundap”.
Os votos favoráveis à dedutibilidade dessas despesas também rebatem a tese de que os descontos seriam uma mera liberalidade da trading. Cito de exemplo os Acórdãos nº 1402-002.734 e 1401-004.265, julgados em 19 de setembro de 2017 e 10 de março de 2020, respectivamente, nos quais restou consignado que “não é o fato de não haver determinação expressa em lei para o repasse que afasta o fato de serem necessários: trata-se de rotina estabelecida pelo mercado em decorrência dos próprios benefícios e propósitos do Fundap […]”.
Corroborando esse ponto, o Acórdão nº 1402-002.301 inclusive coloca que caso deixasse de operacionalizar o benefício fiscal do Fundap pela forma de desconto no preço dos adquirentes das mercadorias, a trading “perderia o negócio para outro concorrente, que atua de idêntica forma com relação ao repasse”. Ou seja, do ponto de vista concorrencial, nem mesmo se espera que as empresas fundapeanas atuem de outra forma.
Pois bem. Percebe-se, nesses precedentes, uma importante retomada da clássica doutrina de Bulhões Pedreira, que esclarece: “despesa normal é a costumeira ou ordinária no tipo de negócios do contribuinte. O requisito legal não é que seja usualmente paga pelo contribuinte: pode ser excepcional ou esporádica na experiência do contribuinte, desde que possa ser considerada como usual ou normal do tipo de seus negócios, operações ou atividades” [2].
Por fim, as decisões reforçam que os descontos atendem plenamente aos critérios legais de dedutibilidade previstos na legislação, pois: 1) não são computados nos custos; 2) são necessários, já que estão diretamente vinculadas à manutenção da atratividade e viabilidade das operações comerciais; e 3) são usuais, pois refletem exatamente o contexto operacional de comércio exterior no qual se inserem as empresas fundapeanas.
Do quanto exposto até agora, percebe-se claramente a existência de um dissenso interpretativo sobre a matéria nas turmas ordinárias CARF. Não por outro motivo, era de se esperar que a CSRF, responsável por uniformizar a jurisprudência do órgão, fosse provocada a dirimir a controvérsia. E assim o fez no Acórdão nº 9101-007.168, de outubro de 2024.
A conclusão da CSRF
A 1ª Turma da CSRF, no julgamento do Acórdão nº 9101-007.168, deu razão às alegações da empresa fundapeana autuada e fixou que os descontos em questão configuram despesas necessárias do lucro real.
O voto condutor [3] afastou a tese fazendária de que, para serem considerados despesas operacionais, os descontos deveriam necessariamente ter lastro em receitas próprias geradas pela atividade operacional da trading. Para os conselheiros, esse entendimento restringe indevidamente o conceito de despesas dedutíveis, desconsiderando que os descontos estão diretamente vinculados à lógica de negócios da empresa atuante no comércio exterior.
Também foi afastada a tese de que o desconto seria mera liberalidade, tendo o voto destacado que não se pode perder de vista a razão da existência da empresa fundapena. Nas palavras do relator, se o Fundap é um incentivo fiscal com vistas à redução da carga tributária do ICMS (cujo ônus é do adquirente), “não se pode dissociar tal operação, para, ao se analisar apenas um único aspecto do Fundap, concluir tratar-se o tal ‘desconto comercial’ uma mera liberalidade, a ponto de se afirmar não ser uma despesa dedutível”.
O voto ainda enfatizou que, sem esse repasse, o uso do porto de Vitória perderia sua atratividade econômica. Afinal, por que uma empresa responsável pelos custos da operação importaria mercadorias pelo Espírito Santo e não pelo porto de Santos, que possui maior infraestrutura e está mais próximo dos mercados consumidores? A resposta a essa pergunta está na redução da carga tributária, da qual a empresa adquirente só disfruta se houver o famigerado “repasse”.
O caso para além das fundapeanas
A decisão proferida pela CSRF no Acórdão nº 9101-007.168 revela um cenário cada vez mais firme na jurisprudência do Carf: os critérios de necessidade, utilidade e usualidade das despesas devem ser analisados de acordo com o modus operandi de cada empresa, levando-se em consideração o contexto quanto as especificidades de cada modelo de negócio. A análise deve refletir a realidade empresarial e não cabe ao fisco impor uma abordagem inflexível sobre a estruturação das operações da empresa.
[1] Resolução nº 1.374, de 08/12/2011, do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), item 4.24, letra “b”.
[2] Apud TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2007. vol. IV, p. 132.
[3] No mérito, a votação se deu por unanimidade, mas com dois Conselheiros acompanhando o Relator pelas conclusões.
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