Direito de crítica não comporta ataques políticos à estrutura judiciária
12 de março de 2025, 11h19
Na mitologia, Hércules, filho de Júpiter, era a personificação do herói, vestido com pele de leão e clava, tornado célebre pela resolução de seus 12 trabalhos. Já na literatura, refugiado belga e de famoso bigode retorcido, Hercule, agora Poirot, mostrava-se como detentor de células cinzentas que o fizeram a maior mente da Inglaterra. No Direito, contudo, a figura de um juiz Hércules mostra-se um pouco diversa.
Idealizado por Dworkin, o conceito de juiz Hércules poderia ser visto como um modelo hipotético ideal de magistrado, dirigido à solução de hard-cases, nos quais ele não escolheria unicamente a melhor lei a ser aplicada, senão a melhor solução a ser encontrada, e cujos efeitos sejam os mais corretos. Semelhante alusão vem indelevelmente à lembrança, quando se vislumbram recentes papéis e decisões do Supremo Tribunal Federal.
Pode-se criticar ou defender muitas dessas posições, e, mesmo, algumas atitudes, mesmo ativistas, assumidos por aquele tribunal, como fazem pontualmente, inclusive, entidades como a Ordem dos Advogados ou o Instituto dos Advogados de São Paulo. Entretanto, e por outro lado, parece certo que, por vezes, se está em uma busca de soluções em casos notadamente difíceis.
Muito embora não seja do agrado de uma visão positivista, o STF parece querer, e não raro com boas intenções (apesar de pecados aqui e acolá), se empenhar na busca de uma melhor prestação jurisdicional, qual fosse uma coincidência a hipótese estética, em que a comparação à arte se dá na medida em que o intérprete busca melhoria constante de sua obra.
Por certo, e mesmo com a recordação de que uma legitimidade judicial pode estar ancorada no papel contramajoritário, representativo e iluminista, diversas objeções poderiam ser cabíveis a muitos posicionamentos contemporâneos do Judiciário, principalmente ao se ter em conta que boa parte de sua atividade inovativa não parece encontrar limites concretos. Questionamentos sobre a viabilidade de um certo ativismo judicial, assim, não se mostram raros, senão cada vez mais frequentes, sendo duvidosa, mesmo, uma eventual opção por pretender empurrar a história na direção certa.
Temas, por exemplo, como os vistos no Direito Constitucional, Civil ou, particularmente, no Direito Penal, podem ser motivo de grande inquietação, principalmente sob olhares contrafáticos garantistas. As muitas variações em relação ao entendimento sobre a presunção de inocência, leituras penais extensivas e, por vezes, percepções de aplicação penal mais rigorosa podem gerar grandes controvérsias.
Principalmente quando as justificativas colocadas se mostram estribadas na busca de suposto Direito Penal mais igualitário (em falta de compreensão sobre o que seria o garantismo) ou, pior, em um combate a um imaginado pacto oligárquico de impunidade, como se fins justificassem meios nem sempre adequados.
Esse estado de coisas, diga-se, se mostra ainda mais gravoso quando algum magistrado venha a buscar (mesmo com boas intenções) conter o mal du siècle em que se travestem as fake news, os discursos de ódio e eventuais dimensões postas à liberdade de expressão.
Soberania nacional
Entretanto, e por mais que tais questionamentos se façam presentes, é absolutamente preocupante o cenário em que as críticas científicas assumem papéis de antagonismo em países estrangeiros, com busca de real responsabilização pessoal, quer via judicial, quer por via legal, de juízes brasileiros que têm, em última análise, suas posições referendadas pelos seus respectivos órgãos colegiados.
Em outras palavras, procura-se, como hoje é o caso noticiado e vivido em alegada reação vista, nos Estados Unidos, em relação ao ministro Alexandre de Moraes. Não se trata de colocação sobre reformas ou revisões de decisões quaisquer, mas, sim, retaliações que, em última análise, afetam, sim, ao próprio Poder Judiciário nacional, personificado que seja na figura de um ou mais juízes do Supremo Tribunal. Trata-se, pois, de questão de soberania.

Renato de Mello Jorge Silveira
Neste mesmo espaço, o professor Georges Abboud já ponderou, com extrema felicidade, sobre a questão da defesa da soberania e a razão oculta dos ataques ao ministro. E, mais: destaca pela via adequada de contestação da decisão de qualquer juiz, vale dizer, os recursos legais postos à disposição pelo ordenamento jurídico nacional.
Para além disso, com o brilho de poucos, o professor assevera que interesses escusos de intimidação – típicas de uma visão, no mínimo, pouco democráticas – acabam, sim, por ofender a soberania nacional, com razões declaradas ou ocultas. E nenhuma delas, por qualquer óptica, poderia ser aceita por falta de legitimidade declarada.
Nesse sentido, e com firme posição, outro não pode ser o brado, mesmo que se discorde de posições ou decisões, do que o de defesa e suporte dos representantes do Judiciário nacional, pois, desde Rui, não é de se imaginar, antever ou aceitar a possibilidade de crime de hermenêutica.
Mesmo com eventuais críticas, nosso juiz Hércules deve ser institucionalmente preservado. Pode ser eventualmente censurado ou dele se ter discordância. Mas quando no papel de personificação do Judiciário, deve ser visto como parte de um dos Poderes da República, e, portanto, a soberania de suas decisões deve equivaler a soberania nacional.
Assim, mesmo que desviando rios, talvez essa personagem, metaforicamente, como seu par mitológico, possa vir a limpar novos currais, como os do Rei Áugias, mesmo que, para isso, venha a tardar o tempo posto à captura da corça de Cerineia.
Em suma, seus trabalhos e desafios podem ser verdadeiramente longos e demorados, mas, com a coerência, integridade e igualdade – ainda que possam ser aperfeiçoados – enquanto representante de Poder de Estado, não devem ser alvo de ataque de antagonismos políticos fora do espectro legal, aqui ou em outro país.
Quando atacados, ataca-se, de fato, a Justiça nacional, e esta merece, sempre, a defesa de todos os operadores do Direito, gostosos ou desgostosos de um ou outro entendimento. Nesse esteio, deve-se ter em conta que a defesa de um juiz é, sim, a defesa do próprio Judiciário, da soberania e do país como um todo.
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