Território Aduaneiro

O peso invisível do protecionismo

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  • é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

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11 de março de 2025, 8h00

No dia 22 de fevereiro comemorou-se o oitavo ano de vigência do Acordo sobre Facilitação do Comércio (AFC) da Organização Mundial do Comércio – este que representou um grande marco na história da organização não apenas por ter sido o único acordo aprovado desde a inauguração na década de 1990, mas porque enfrenta de forma direta os problemas com burocracia, agilidade e transparência na atuação das aduanas.

Já tratamos do AFC, de sua relevância e dos desafios à plena implementação em diversas oportunidades. Todavia, ao presenciar as reiteradas ordens presidenciais de Donald Trump, o assunto volta à baila e compele os estudiosos e profissionais do comércio exterior a se questionarem se a bandeira da facilitação do comércio não estaria, realmente, ameaçada.

Engana-se quem pensa que a política do atual possui implicações meramente tarifárias. Embora se trate de política protecionista visando desincentivar o consumo de bens estrangeiros e, para tanto, tenha como foco inicial as importações, os efeitos e engrenagens destas medidas são muito mais profundos. Afinal, colocar uma ideia no papel e torná-la uma ordem pode ser fácil, mas transformá-la em uma realidade costuma ser bem mais complexo.

Para que a política tarifária de Trump – que até o momento afeta diretamente apenas algumas origens (China, México, Canadá) e produtos determinados (como aço e alumínio), além da extinção do de minimis e taxação de todas as compras internacionais –, bem como as possíveis retaliações de outros países, seja colocada em prática faz-se necessário uma mudança de grandes proporções em rotinas e atividades administrativas da aduana, que, nos Estados Unidos, são de competência da U.S. Customs and Border Protection Agency (CBP).

Diversas publicações, técnicas e jornalísticas, já apontaram que existe grande preocupação com as consequências da nova política tarifária, visto que o aumento na arrecadação do imposto de importação não será suficiente para suprir os crescentes gastos de implementação das medidas protecionistas.

O protecionismo é, por essência, contrário à facilitação do comércio, já que depende de burocracia e de alta intervenção estatal, que, por sua vez, depende de funcionários e/ou de sistemas elaborados para funcionar e garantir o controle e as restrição nas fronteiras.

Tal qual vemos no Brasil, as barreiras às importações dependem não apenas de auditores-fiscais qualificados e atentos à missão de evitar evasão e de garantir o cumprimento de restrições e da arrecadação tributária, mas também de sistemas de licenciamento geridos por departamentos governamentais de cunho comercial e regulatório, que precisam avaliar e autorizar de forma individualizada embarques e cargas antes que o despacho aduaneiro ocorra.

Isso tudo significa uma coisa: o protecionismo custa caro e seus efeitos raramente superam os custos. Não existe como buscar realizar medidas protecionistas dentro de uma visão de Estado mínimo, pois a proteção necessita de burocratas, de funcionários que exerçam as funções de fiscalização e autorização sob as quais essas medidas se edificam e de procedimentos que ergam essas barreiras.

Pura burrice

Alguns estudos iniciais revelam que, caso o governo americano, de fato, elimine a política de de minimis e, portanto, passe a fiscalizar e taxar todas as remessas internacionais, independente do valor ou do risco aduaneiro associado, o CBP precisaria contratar 22 mil novos agentes para atender a demanda de trabalho. Mais, a previsão é de que seriam necessários investimentos constantes, na ordem de US$ 3,2 bilhões apenas para 2025, ao passo que a receita possivelmente gerada com a tributação das remessas restaria na casa dos US$ 627 milhões [1].

Quanto às restrições impostas a importações comerciais, o cenário é semelhante. Dados referentes à primeira gestão de Trump já demonstravam que as políticas protecionistas implementadas tiveram sérias repercussões sobre a carga administrativas dos departamentos envolvidos. No caso das restrições impostas a partir de 2018 sobre as importações de aço e alumínio, o Bureau of Industry and Security (BIS) do Departamento de Comércio precisou deferir mais de 207.000 autorizações de exclusão de bens da lista de restrições, sem contar os casos de deferimento. Trata-se de um volume de trabalho significativo e cujo custo não pode ser ignorado [2].

No caso do Brasil, a decisão de exclusão do de minimis ocorreu em 2024 e veio acompanhada de muitas polêmicas e críticas, justamente pelo alto custo administrativo, que não se justificava diante do baixo risco deste tipo de remessa – tratamos deste tema em uma coluna específica. Além disso, passados mais de sete meses da implementação da medida não se tem notícias ou dados que permitam verificar que se tratou de medida acertada – será mesmo que a “taxação das blusinhas” foi uma decisão acertada?

Ademais, sabe-se que o acúmulo de rotinas e funções em departamentos públicos com número limitado de funcionários costuma levar a cenários indesejáveis, como as frequentes greves da Receita Federal e que impactam severamente o comércio exterior e os fluxos de importação e exportação. Ainda que o quadro de funcionários do CBP seja bem menos precário que o da RFB [3], já se apontou que a agência estaria com defasagem de cerca de 5 mil funcionários em 2024, situação que tende a escalar com as novas políticas e atribuições recentemente impostas.

Spacca

Li recentemente uma matéria em que a autora resumia a questão do de minimis da seguinte forma: a decisão do governo americano de buscar replicar medidas comerciais ruins adotadas por outros países é apenas burrice. E, mesmo sendo uma afirmação direta e um tanto rude, faz muito sentido.

O comércio internacional das últimas décadas foi moldado pela influência americana e, justamente por isso, houve espaço para o amadurecimento das discussões e compromissos sobre facilitação. Afinal, facilitação do comércio nada mais é do que um conjunto de medidas que visa garantir a redução da burocracia e de seus custos associados (e invisíveis) por meio de compromissos e políticas que promovam agilidade, transparência e previsibilidade.

A facilitação do comércio não é tema novo ou uma moda passageira. Trata-se de matéria que vem sendo discutida e negociada por décadas, cuja origem remonta à Convenção de Quioto da OMA de 1973 e às discussões iniciadas na Conferência Ministerial de Singapura (1996), ocorrido no âmbito do Gatt.

Para que o AFC finalmente estivesse em condição de assinatura, foram necessárias mais de 18 versões e quase dez anos de negociações formais. O resultado disso foi a consolidação de um acordo relevante e que, embora mescle hard e soft law, já que nem todos os dispositivos possuem previsão obrigacional e taxativa, tem capacidade de reduzir significantemente os custos de fronteira, comumente chamados de red tape at the border.

De acordo com publicação recente da OMC, os gargalos e ineficiências das fronteiras impõem custos econômicos substanciais sobre os fluxos de comércio, a exemplo dos custos associados a atrasos no transporte internacional, que chegam a representar 44% do custo logístico das operações [4].

O AFC, desde a sua implementação, já conseguiu reduzir os custos de transação em quase 4% e, assim, aumentar o fluxo comercial global em mais de US$ 230 milhões. Esse número, ainda que positivos, estão abaixo do esperado, já que muitos signatários, principalmente em países em desenvolvimento, ainda não conseguiram chegar à implementação total do acordo. Todavia, os esforços empreendidos e seus resultados são positivos e suficientes para demonstrar que se trata de um objetivo sério e com recompensas reais aos envolvidos [5].

Encruzilhada

Sabe-se o livre comércio é um objetivo idealizado e que nunca será alcançado, até porque sequer é realmente desejado pelos países. A imposição de tarifas é um direito dos membros da OMC e isso não mudará. Todavia, há mais de oito décadas os países vêm trabalhando para que este direito seja exercido com parcimônia e responsabilidade, de modo que um surto desenfreado e pautado em discursos superficiais pode ser um verdadeiro tiro no pé, principalmente em um cenário em que as cadeias de produção estão espalhadas pelo mundo e que a determinação de origem passa a ter contornos tão complexos.

A título de ilustração, pode-se utilizar o exemplo da Tesla, marca americana fabricante de veículos elétricos de luxo e com alta tecnologia agregada e que é uma das grandes aliadas do atual governo americano. Embora a empresa defenda publicamente a política do “make america great again” de protecionismo e reindustrialização do país, com promessa de instalação de novas plantas e geração de empregos nos EUA, os números mostram que se trata de um player com muito a perder caso a guerra comercial travada se alastre.

Isso porque, apesar do maior mercado consumidor da Tesla ser os EUA, parte significativa de seu faturamento dos últimos anos advém do consumo externo, sendo a China a segunda maior consumidora, seguida pelo mercado Europeu e pela Austrália. Todavia, os dados do final de 2024 e início de 2025 demonstram queda expressiva nas vendas internacionais da empresa, o que ameaça sua posição no mercado [6].

Diante disso, ainda que a mudança de plantas fabris para os EUA possa gerar algumas centenas de empregos e impulsionar o consumo nacional, isto não substituirá a necessidade de manutenção da clientela externa para que marca continue crescendo e mantendo seu alto faturamento. Existe um claro limite do quanto a Tesla poderá defender as políticas protecionistas locais, principalmente se os demais países passarem a retaliar as importações americanas na mesma moeda.

A nova “Era Trump” não só ameaça a agenda da facilitação como as próprias diretrizes que norteiam o comércio internacional. E o pior: o protecionismo promovido em bases rudimentares e simplistas não trará os benefícios esperados. Trata-se de um ciclo vicioso de más decisões e de respostas ainda piores, que comprometem cada vez mais os fluxos comerciais e, se a história servir de aviso, a própria estabilidade política internacional.

Como entusiasta da facilitação, do AFC e do multilateralismo, me entristece observar os movimentos atuais e escrever sobre eles ao invés de utilizar este espaço para celebrar conquistas e cobrar melhoras em temas pontuais. Entretanto, a encruzilhada em que nos encontramos parece ser decisiva e demanda ações. Caberá ao resto do mundo decidir se embarca nesta canoa furada ou se está disposto enfrentar a tempestade rumo a dias mais ensolarados.

 


[1] NFCT. Disponível no link.

[2] WOLFF, Adam. Trump’s high tariffs would create an administrative nightmare while disrupting the US economy. Disponível no link.

[3] Estima-se que o CBP conte com um quadro de 30.000 funcionários, ao passo que a Aduana brasileira conta com pouco menos de 4.000. Não obstante, cabe salientar que o CBP possui, até então, foco majoritário em ações de segurança das fronteiras, com grande atuação em medidas antiterrorismo, o que faz com que as prioridades e formas de atuação das Aduanas americana e brasileiras não sejam exatamente comparáveis. Tratamos dos gargalos da administração aduaneira brasileira na coluna de 11/06/2024.

[4] ELLARD, Angela. Trade Facilitation Agreement: eight years of cutting trade costs and boosting growth for all members. WTO Blog. 2025. Disponível no link.

[5] Idem.

[6] Situação vem sendo noticiada nos mais diversos veículos de comunicação, como o Financial Times e o MSNBC News.

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados, doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada e consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e ex-conselheira titular do Carf.

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