O juiz natural e a competência do STF no caso da tentativa de golpe de Estado
11 de março de 2025, 16h25
Tão logo a Procuradoria-Geral da República ofereceu denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e diversos militares e políticos ligados ao governo anterior, todos de alto escalão, surgiram manifestações na imprensa que criticavam, a partir de então, eventual competência do Supremo Tribunal Federal para o julgamento dessas autoridades. Entre essas vozes está a do professor, advogado e doutrinador, referência no garantismo penal, Aury Lopes Jr. Em entrevista na qual traça um panorama da denúncia e dos possíveis desdobramentos jurídicos, o professor critica a competência do STF para o julgamento de autoridades que, como Bolsonaro, já não detêm cargo público com foro especial perante o STF [1].

Embora o autor reconheça que o próprio STF dificilmente se julgaria incompetente, pois em ocasiões anteriores se declarou competente e julgou diversas outras ações que versavam sobre a tentativa de golpe – como no caso dos eventos do 8 de janeiro de 2023, em que processou e condenou diversas pessoas –, em sua concepção a ação penal do caso do ex-presidente deveria ser processada e julgada na primeira instância, considerando a ausência de qualquer autoridade denunciada com prerrogativa de foro.
Em vídeo publicado nas redes sociais, o professor Aury Lopes Jr. desdobra sua crítica sobre a incompetência do STF para o julgamento da tentativa de golpe de Estado. Em suas considerações, lembra que o STF já deu interpretação restritiva às normas que delimitam a competência nos casos de foro privilegiado. Na Ação Penal nº 937, por exemplo, o STF limitou o foro privilegiado para os delitos praticados no exercício do cargo e em função dele [2]. Embora entre os denunciados junto com o ex-presidente esteja o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) – que possui foro por prerrogativa de função, o entendimento de que a competência estabelecida em razão da função ou o foro privilegiado de um dos corréus atrairia os dos demais, em virtude da conexão ou continência, não foi utilizada pelo STF quando desmembrou, no caso do Inquérito nº 4.506/DF, o deputado federal Aécio Neves. Em um dos votos, a ministra Rosa Weber destaca que a regra é o desmembramento, exceto se os fatos estiverem tão imbricados que não seria possível desmembrá-los sem violação ao juiz natural. A verdade é que, mesmo no caso citado do Inquérito nº 4.506/DF, o STF rejeitou o desmembramento quanto aos denunciados que não ostentavam foro privilegiado [3].
Mas, como bem lembra o professor Aury, no julgamento do HC nº 232.627 já há maioria formada, embora ainda sem o término do julgamento pelo pedido de vista do ministro André Mendonça, no sentido da prorrogação do foro privilegiado após o término do mandato, o que demonstra uma mudança de orientação pelo STF. De toda a forma, o professor Aury Lopes Jr. critica a falta de regra clara e de coerência do Supremo Tribunal Federal na fixação da interpretação sobre a extensão do foro especial, culminando daí sua conclusão quanto à incompetência do STF para processar e julgar o caso da denúncia da PGR no caso da tentativa de golpe de Estado envolvendo Jair Bolsonaro e outros réus.
Coerência e integridade
Sob nosso olhar, a própria concepção de coerência utilizada pelo professor Aury Lopes Jr. revela um uso inadequado do sentido ou concepção de coerência, sob o ponto de vista de uma teoria do direito e do direito processual brasileiro, sobretudo com o artigo 926 do CPC. O uso ou o sentido dado de coerência, para ele, significa que o STF deve manter suas decisões anteriores sobre o tema. Portanto, a coerência significaria uma mera repetição do passado.
Dentro dessa concepção de coerência, basta ao STF e a qualquer outro tribunal que siga suas decisões anteriores e há segurança jurídica para as partes. Esse sentido de coerência só faz sentido dentro de um paradigma convencionalista. À luz do Direito como integridade de Dworkin que inspirou, de algum modo, a positivação da coerência como atributo da atuação dos tribunais na legislação processual brasileira (artigo 926 – CPC), esta não é mera repetição do passado, e sim sempre coerência de princípio. Ou seja, respeitar o sistema de precedentes não é simplesmente repetir os entendimentos passados, mas sim julgar e aplicar o Direito à melhor luz possível quanto aos princípios de uma determinada comunidade política ou, ainda, interpretar e justificar o exercício do poder político de acordo com as circunstâncias do caso e da Constituição, de tal forma a prover equanimidade (fairness) entre os membros da comunidade política fundada na igualdade e liberdade.
Não há, como bem tratam Lenio Streck e Gilberto Morbach, coerência sem integridade [4]. Se uma instituição política apenas repete, o mais próximo possível suas decisões passadas, então a integridade não é coerência e a coerência não é integridade. Coerência é só com a integridade. Dessa forma, não há efetivamente coerência a ser mantido no erro – caso contrário, por exemplo, a Suprema Corte dos EUA jamais teria considerado inconstitucional a tese dos “separados, mas iguais” quando julgou o caso Brown (1954). Decisões judiciais só podem ser coerentes e íntegras a partir de sua justificação e adequação à luz dos princípios da comunidade política e da Constituição. O que se percebe, quanto à definição da extensão do foro por prerrogativa de função, é que o STF não tem sido capaz de formar um entendimento coerente que tenha força argumentativa de precedente que possa ser “vinculante”. Em sendo assim, não há incoerência no julgamento agora do caso perante aquele tribunal.
Na discussão em questão, o STF, por ocasião do julgamento AP nº 937, restringiu o foro privilegiado, colocando uma série de exceções que não foram estabelecidas pela Constituição na instituição da competência processual-penal dos tribunais superiores. A fixação do entendimento de que o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas não encontra qualquer justificativa e adequação aos princípios constitucionais e ao instituto em si mesmo, sendo reflexo de um voluntarismo judicial ou de uma discricionariedade que não é compatível com a Constituição.

A adoção desse entendimento restritivo do foro especial contraria o texto constitucional na medida em que a Constituição não prevê qualquer condição para o julgamento das autoridades e, ainda, a própria ideia de juiz natural na medida em que, ao prever determinadas competências para determinados cargos, assegura o órgão jurisdicional mais eficiente e adequado para o julgamento daquela autoridade, revelando o compromisso constitucional com a imparcialidade e com o devido processo legal.
No caso da denúncia oferecida pela PGR, não há dúvidas de que, tratando-se de um delito grave contra o Estado Democrático de Direito e cometido pelas altas autoridades do Poder Executivo como o presidente da República e ministros de Estado durante e após o exercício do mandato, o juiz naturalmente competente determinado pela Constituição de 1988 é o STF, cujo foro especial será atraído aos demais corréus que não o detêm o foro em virtude das regras de conexão e continência, evitando-se decisões contraditórias.
Vale destacar que os crimes foram cometidos durante o final e logo após o final do mandato, em uma linha de continuidade, o que, por si, justifica a competência do STF. Ademais, como seria coerente o STF julgar um dos corréus que hoje é deputado federal, mas à época era ministro de Estado, e não julgar aquele que, nesse mesmo período, era seu “chefe”? Ou como se pode desmembrar essa ação penal, de forma que alguns sejam julgados em primeiro grau e outros no STF se as ações de todos formam um todo unificado, a saber, a tentativa de golpe de Estado? Vale lembrarmos que o Direito Penal se regula pela data do fato, logo, falar em extensão do foro do privilegiado é não compreender que o Direito processual tem impacto no direito material.
Eventual reconhecimento da competência do STF por ocasião do recebimento da denúncia não significará, por isso, uma mudança jurisprudencial, mas uma decisão correta que é coerente e íntegra com os princípios da Constituição de 1988.
[1] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cvgw3j0z7d9o, acesso em 02 de março de 2025.
[2] STF, Pleno, AP 937 QO, rel. min. Luis Roberto Barroso, j. 3/5/2018.
[3] A maioria dos membros votou contra o desmembramento, sendo a denúncia recebida contra os réus Aécio Neves da Cunha, Andrea Neves da Cunha, Frederico Pacheco de Medeiros e Mendherson Souza Lima (STF, 1ª Turma, Inq. 4.506/DF, redator para acórdão Roberto Barroso, j. 17/04/2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748124505, acesso em 02 de março de 2025).
[4] STRECK, Lenio; MORBACH JÚNIOR, Gilberto. Interpretação, integridade, império da lei: o direito como romance em cadeia. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, 20(3), 47–66. Disponível em: https://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/1795/pdf, acesso em 03 de março de 2025.
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