Opinião

Ausência de via processual para tutelar autoridade de decisões do plenário do STF

Autores

  • é advogado professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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  • é advogado doutor e mestre em Direito Processual pela Uerj. Coordenador de Processo Civil da ESA/RJ e da ABPI.

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11 de março de 2025, 7h03

É comum que o instituto da reclamação seja colocado no olho do furacão de diferentes debates estabelecidos em sede doutrinária e jurisprudencial. Nesse campo, são problematizados aspectos que vão desde a sua existência até o seu espectro de cabimento. O caldo recebeu novos temperos com o CPC/15, fomentando reflexões revigoradas.

Marcello Casal JrAgência Brasil

Sem pretensão de ingressar em cada um desses tópicos (seja pelo seu objeto, seja pela sua limitação), o presente artigo busca apresentar um labirinto sem saída que parece inerente ao atual regime do mecanismo — a partir de sua própria justificativa funcional. Em síntese, ainda que a reclamação devesse servir para a proteção da autoridade de decisões proferidas por órgão de vértice, ela, na prática, não serve para tutelar aquelas mais significativas (já que proferidas em colegiado pleno).

Para ilustrar esse aspecto, pense no seguinte exemplo: ao apreciar determinada ação de controle concentrado em seu plenário, o STF fixa a tese e, adicionalmente, estabelece algum critério de modulação temporal. Em disputa individual, contudo, entende-se que esse parâmetro da modulação foi desrespeitado, autorizando o manejo da reclamação.

No nosso atual sistema, essa proteção não ocorrerá pelo órgão que teria aptidão para conferir interpretação autêntica ao entendimento. Devido a um fluxo sucessivo de mudanças regimentais e normativas [1], sabe-se que, hoje: o plenário da Corte não possui competência para a apreciação de reclamação, tratando-se de incumbência exclusiva dos seus órgãos fracionários; e do mesmo modo, inexiste meio próprio para devolver, ao colegiado mais amplo, as decisões proferidas em reclamação pelas turmas. Isso cria um efeito indesejado: sem a possibilidade de interpretação autêntica, há espaço para que, durante período sensível, haja leituras diversas (dentro do próprio STF) a respeito da mesma questão. Na situação exposta, é viável, com isso, que a tese de modulação seja aplicada sem isonomia ou pacificação.

Tese de modulação

Importante notar que o problema não é puramente acadêmico, mas essencialmente prático. No exemplo proposto, a depender de sua porosidade interpretativa, é possível imaginar que cada uma das turmas releia e ressignifique a tese de modulação que não foi por elas proposta. E isso por maiorias estreitas que, talvez, não se repetiriam no plenário.

Mas quais seriam as vias possíveis (se é que existem) para forçar a apreciação da questão pelo plenário do STF?

Uma primeira via que poderia ser aqui imaginada seria a oposição de embargos de divergência diante do entendimento fracionário. E isso porque há um evidente acoplamento teleológico entre as pontas; a modalidade recursal em questão se volta, exatamente, à uniformização interna do posicionamento da Corte. Haveria, portanto, uma preocupação com a preservação da integridade e da coerência das próprias decisões do STF.

Spacca

Ocorre que, embora intuitivo, esse percurso é jurisprudencial e normativamente vedado. Em síntese, ao mesmo tempo em que o Código de Processo Civil de 2015 e o RISTF não autorizam a oposição da medida para impugnar decisões proferidas em reclamação [2], a jurisprudência da Corte é firme e categórica nesse sentido. Assim, já se estabeleceu que, por “ausência de previsão legal, “não são cabíveis embargos de divergência contra acórdão proferido pela turma no âmbito de reclamação”[3]. Do mesmo, já se destacou que “o uso legítimo dos embargos de divergência pressupõe anterior julgamento colegiado por quaisquer das Turmas desta Corte em recurso extraordinário ou em agravo de instrumento, sendo inidôneo o recurso para modificar decisão proferida em reclamação”[4].

Entendimento da turma x plenário

A indisponibilidade dessa porta justificaria a procura por alguma alternativa. A partir do arcabouço hoje existente, um percurso a ser potencialmente cogitado seria a eventual propositura de reclamação em reclamação — indicando, em situações como a do exemplo acima, que o entendimento da Turma não reflete aquele do plenário, o que justificaria sua tutela. O objetivo final, assim, seria deslocar a apreciação da matéria para o seu intérprete original.

Novamente aqui, porém, o caminho é obstaculizado. Assim como ocorre com os embargos de divergência, a propositura de reclamação em reclamação é rechaçada pela jurisprudência do STF. A isso, soma-se o fato de o RISTF, como dito, não prever competência explícita do plenário para apreciação de reclamação [5]. No ponto, a Corte é firme em afirmar que “não cabe reclamação constitucional direcionada à cassação de decisões de Ministros ou Turmas do Supremo Tribunal Federal, uma vez que os atos emanados pelos seus órgãos, no exercício de suas competências legais e regimentais, são atribuíveis à própria Corte” [6].

Enfim, superadas as vias anteriores, o raciocínio “natural” do processualista seria buscar guarida no remédio (aparentemente sempre disponível) do mandado de segurança. Sob esse ângulo, a preservação da decisão proferida pelo plenário exigiria a impetração do writ contra o ato praticado pela turma. Com essa engrenagem, seria possível que o órgão mais amplo buscasse esclarecer e endossar o conteúdo de seu pronunciamento anterior.

Previsivelmente, entretanto, essa possibilidade não encontra maior amparo concreto. Afinal, o primeiro requisito para cabimento do mandado de segurança diante de decisões judiciais é, justamente, a ausência de mecanismos recursais disponíveis (a rigor, sempre são cabíveis embargos de declaração). Ademais, existe a necessidade de a decisão se mostrar manifestamente ilegal ou teratológica — o que, nessa espécie de situação, não costuma ocorrer. Por força disso, o STF já enfatizou que sua jurisprudência “é invariável ao afirmar o descabimento de mandado de segurança contra atos provenientes de seus órgãos colegiados ou mesmo de seus membros, individualmente, no exercício da prestação jurisdicional, porquanto impugnáveis somente pelos recursos próprios ou pela via da ação rescisória, como consectário do sistema processual”. [7]

Alteração regimental

A partir dessa moldura geral, observa-se que há um problema sem resposta: ao menos em relação aos jurisdicionados, inexistem meios capazes de permitir que decisões do plenário sejam tuteladas (e esclarecidas) pelo próprio plenário. Nesse quadro, algumas indagações poderiam naturalmente surgir: que saídas podem existir para esse dilema? De que modo alterar essa dinâmica?

Uma primeira resposta, bastante óbvia, corresponderia à alteração regimental ou normativa voltada a dirimir a insuficiência em questão. Essa via, porém, soa bastante improvável, seja pelo esgotamento atual da Corte Suprema, seja pelo próprio fato de o cenário atual, como dito, ser fruto de mudanças que (talvez propositalmente) tenham levado a essa sinuca.

Uma segunda resposta, pautada nos mecanismos hoje disponíveis, seria a potencialização do disposto no RISTF, artigo 22, parágrafo único, ‘b’, que confere ao relator de medida em curso no órgão fracionário o poder-dever de submeter “o feito ao julgamento do Plenário (…) quando, em razão da relevância da questão jurídica ou da necessidade de prevenir divergência entre as Turmas, convier pronunciamento do Plenário”. Esse caminho poderia ser empregado em sede de embargos de declaração, por exemplo. E, por meio dele, o problema aqui detectado poderia ser desidratado. Mais que isso, em uma leitura ampliativa, talvez fosse oportuno compreender que essa prerrogativa não é exclusiva do relator, estendendo-se a qualquer julgador integrante do quórum.

Por fim, uma terceira possibilidade seria o reconhecimento de que a atual insuficiência, na realidade, não corresponde a um problema — mas a uma externalidade tolerável. Nessa hipótese, contudo, entende-se que os próprios propósitos da reclamação devem ser revisitados, e que o debate ligado à sua desejabilidade deve ser recrudescido. Afinal, o sistema estaria falhando justamente nos casos em que seu funcionamento tenderia a ser mais desejável e assertivo.

 


[1] Vale sublinhar que, em momento anterior à aprovação da Emenda Regimental 45/2011, era conferida ao Plenário a competência para o julgamento de Reclamações orientados a garantir a autoridade de seus próprios pronunciamentos. Nesse quadro, o não-cabimento de Embargos de Divergência em Reclamação fazia absoluto sentido. Afinal, se o remédio seria julgado diretamente pelo órgão cuja autoridade decisória se buscava prestigiar, seu propósito unificador seria assegurado. Entretanto, por mais que a reforma do RISTF tenha retirado essa competência do Plenário, não se passou a admitir o cabimento dos Embargos de Divergência em Reclamação.

[2] CPC:

Art. 1.043. É embargável o acórdão de órgão fracionário que:

I – em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito;

II – (Revogado pela Lei nº 13.256, de 2016).

III – em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo um acórdão de mérito e outro que não tenha conhecido do recurso, embora tenha apreciado a controvérsia.

RISTF:

Art. 330.Cabem embargos de divergência à decisão de Turma que, em recurso extraordinário ou em agravo de instrumento, divergir de julgado de outra Turma ou do Plenário na interpretação do direito federal.

[3] STF, Ag.Reg. nos Emb.Div. no Ag.Reg. na Reclamação 32.600/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. Plenário. Julg. em 20/09/2019. Também assim, Ag.Reg. nos Emb.Div. nos Emb.Decl. no Ag.Reg. na Reclamação 24.145/SC. Rel. Min. Edson Fachin. Plenário. Julg. em 15/10/2018.

[4] Ag.Reg. nos Emb.Div. nos Emb.Decl. no Ag.Reg. na Reclamação 44.874/SP. Rel. Min. Dias Toffoli. Plenário. Julg. em 28/03/2022.

[5] “Art. 9º Além do disposto no art. 8º, compete às Turmas:

(…)

c) a reclamação que vise a preservar a competência do Tribunal ou a garantir a autoridade de suas decisões ou Súmulas Vinculantes”.

[6] STF, Ag. Reg. na Reclamação 19.526, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, Julg. em 28/04/2015. Também assim, exemplificativamente, STF, Emb.Decl. na Reclamação 38.432/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, Julg. em 23/03/2020.

[7] STF, Ag. Reg. no MS 35.726, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, Julg. em 17/09/2018. Também assim, STF, Ag.Reg no MS 37.521 Rel. Min. Carmén Lúcia, Plenário, Julg. em 21/12/2020.

Autores

  • é professor adjunto da Faculdade de Direito da UFPR, doutor e mestre em Direito pela UFPR, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e advogado e parecerista.

  • é advogado, sócio do escritório Dannemann Siemsen Advogados, pós-doutor, doutor e mestre em Direito Processual Civil (Uerj) e professor da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj).

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