O cenário do vencedor do Oscar: cabe desapropriação?
10 de março de 2025, 19h34
A imprensa do Rio de Janeiro anunciou neste mês o desejo de o prefeito Eduardo Paes de adquirir — comprar/desapropriar — a “casa da Urca”, onde foi filmado o nosso queridinho do momento, o longa-metragem do nosso primeiro Oscar, “Ainda Estou Aqui”.

Imediatamente, no impulso seguinte, o prefeito ultrapassou a sua linha de desejo e, no mesmo dia, fez publicar, em edição extra do Diário Oficial, o Decreto n° 55.729 [1], no qual inicia a materialização do que pode ser um longo investimento público: o de transformar a casa onde foi filmado o vencedor brasileiro do Oscar em uma espécie de “museu do filme”. Como? A que custo? Qual o projeto ou o programa museológico? Isto ainda não sabemos.
Surpreendeu-nos, também, a notícia publicada na mídia de que o preço do imóvel em questão teria subido de R$ 13 milhões para R$ 25 milhões, em função do sucesso atual do imóvel com o filme [2].
O que acontecerá no desenrolar desse desejo do prefeito, que, com a edição do decreto, se tornou uma indicação de política pública? Cabe desapropriar? Desapropriar ou comprar é a mesma coisa? Como será arbitrado o justo preço da compra, ou/e da desapropriação?
Antes de responder, ainda que perfunctoriamente, as perplexidades acima, cabe mencionar que não é costume de autoridades públicas, hoje em dia, dar muito crédito aos limites e parâmetros legais na execução de seus desejos institucionais, ou seja, se preocupar com essas “firulas jurídicas”, como dito por alguns. Na prática, colocar a bola em jogo faz com que as situações anunciadas se consolidem aos poucos, aumentando o constrangimento para decisões judiciais que as revertam, mesmo que a reversão seja o que o direito recomendaria.
Desapropriar ou comprar?
Mas voltemos às perguntas. Cabe desapropriar? Ou comprar? Desapropriação ou compra, pelo poder público, são dois procedimentos bem diferentes. A compra não exige qualquer fundamento legal; basta a vontade do chefe do Executivo, mas também a vontade do proprietário.
Na compra, não há a aquisição compulsória em relação ao proprietário: ele vende quando, e se quiser, e pelo preço que arbitrar. Já na expropriação, a vontade do proprietário vender não tem vez: a aquisição é imposta pelo poder público; mas que só poderá fazê-lo pelos motivos elencados no artigo 5º do Decreto-lei 3365 [3].

No caso, o decreto do prefeito, apesar dos considerando — justificativas — explicitados, o motivo legal no qual baseou a sua ação de império foi o da alínea ‘h’, artigo 5º, que diz que a finalidade da desapropriação será: h) a exploração ou a conservação dos serviços públicos.
Daí a indagação sobre a consistência do programa público para este projeto, se é que ele existe: se pensarmos que o motivo da expropriação é o fato histórico (embora recente), de ali ter sido gravado o filme ganhador do Oscar, ou seja, a manutenção da memória da premiação.
Este motivo levaria não a uma expropriação do bem, mas sim ao seu tombamento, inclusive com todos os seus móveis e cenários. Isso porque o instrumento juridicamente pertinente para a preservação de identidade e memória de algo é o tombamento ou o registro, e não a desapropriação.
Nova repartição pública
Mas, se não é a preservação de memória e identidade, mas a simples instalação de um serviço público em uma casa que, para sua instalação será descaracterizada como cenário do filme, então por que usar a retórica do Oscar, da filmagem, da memória da família, como base para desapropriar um prédio que será, simplesmente uma repartição pública?
Faz sentido expropriar um imóvel para nele instalar um departamento da Rio Filmes [4], a chamada Film Commission (anglicismo usado, pela carioca Secretaria de Cultura, para denominar um órgão da Rio Filmes). O poder público é dono de inúmeros imóveis na cidade, muitos tombados, alguns caindo aos pedaços, como o prédio do Automóvel Clube, no centro, cuja obra iniciada está parada por falta de dinheiro!
Faz sentido expropriar um imóvel, quando a Rio Filmes está bem instalada, no imóvel municipal denominado Casas Casadas, em Laranjeiras, na zona sul, restaurado recentemente?
Custo de milhões
Outro aspecto importante é qual o preço que iremos, nós munícipes, pagar?
A resposta a esta questão só o futuro dirá, porque a conta, se judicializada, não será determinada agora: R$ 13 milhões? Será de R$ 25 milhões? Isso sem considerar os custos de instalação do “museu do Oscar”, ou da instalação da tal Film Commission, pois não sabemos ainda qual o efetivo programa para a casa, provavelmente ainda em construção na mente de alguém.
Contudo, o preço será em milhões, o que é relativamente caríssimo, se considerarmos que a Prefeitura estará destinando apenas R$ 50 milhões para complementar a parceria com a Ancine (Agência Nacional do Cinema) para projetos de audiovisual durante o ano de 2025 [5]!
Exemplo da Colômbia
Finalmente, este episódio institucional cinematográfico traz ao contexto um aspecto da regra de avaliação de preço nas desapropriações que a lei brasileira, ao contrário da lei colombiana, ainda não considerou.
Trata-se da previsão, na lei colombiana, do chamado anúncio de projeto. Anúncio de projeto é fato econômico, comprovado, de que o simples anúncio de um projeto pelo poder público acarreta, de modo geral, um incremento do preço do imóvel a ser desapropriado, circunstância esta que se opera em detrimento do melhor interesse da sociedade [6].
No caso em tela, esse incremento seria, aparentemente, de mais de 90% do valor do imóvel, de um dia para outro (embora a imprensa diga que o preço de venda teria aumentado na véspera do anúncio do desejo do prefeito de adquirir o imóvel. Mas, a relação nos parece direta).
Na Colômbia, a Lei nº 388 de 1997, artigo 61, diz que é possível descontar do valor a ser pago pelo poder público o incremento no preço advindo do anúncio do projeto:
PARAGRAFO: Al valor comercial al que se refiere el presente artículo, se le descontará el monto correspondiente a la plusvalía o mayor valor generado por el anuncio del proyecto u obra que constituyen el motivo de utilidad pública para la adquisición, salvo el caso en que el propietario hubiere pagado la participación en plusvalía o la contribución de valorización, según sea del caso.
Mas, para que isto funcione, alguns cuidados são necessários: ter estabelecido com precisão o momento do anúncio do projeto; ter o poder público estabelecido, previamente, pesquisa de valores de referência de imóveis nas proximidades.
Enriquecimento sem causa
No Brasil, infelizmente, não temos este salutar dispositivo na nossa legislação, regra esta que minoraria expectativas de ganhos imobiliários que a doutrina econômica e jurídica chama de “enriquecimento sem causa”; isto é, ganhos gerados por causas externas àquelas de emprego de capital ou trabalho pelo titular do direito.
Então, assim sendo, estes arrebatados anúncios de “vou desapropriar” podem ser extremamente prejudiciais aos nossos recursos públicos, pois eles têm a possibilidade de gerar aumentos dos preços a serem pagos pelos munícipes, nas desapropriações.
Portanto, enquanto não temos na lei brasileira as benesses do anúncio de projeto à semelhança da lei colombiana, menos impulso e mais parcimônia seriam bem-vindos, pelo bem de nosso dinheirinho, a ser empregado em ideias súbitas, a serem pagas, agora ou no futuro, por nós, munícipes cariocas.
P.S. Só para constar, o caixa carioca não está tão folgado assim, já que, em fevereiro, o prefeito encaminhou para a Câmara mais um pedido de autorização de um novo empréstimo, este agora no valor de R$ 6 bilhões. Mais endividamento para o futuro! [7]
[1] Ver em : https://doweb.rio.rj.gov.br/portal/visualizacoes/pdf/6995#/p:3/e:6995?find=55729
[3] Ver em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3365.htm
[4] Ver em: https://carioca.rio/servicos/apoio-as-producoes-de-conteudo-audiovisual-rio-film-commission/
[6] Ver mais sobre o tema no trabalho de Juan F. Pinilla, publicado pelo Lincoln Institute of Land Policy disponível em: https://www.lincolninst.edu/app/uploads/2024/04/pinilla-wp14jp1sp-full_0.pdf
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