Direito Civil Atual

É possível reconhecer a indignidade sucessória além das hipóteses do Código Civil?

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10 de março de 2025, 15h21

A indignidade é instituto de penalização civil cuja existência se justifica mesmo na contemporaneidade, na medida em que ao Direito cabe estabelecer mecanismos de coerção contra a maldade, a traição, a deslealdade, a falta de respeito, a quebra da confiança e outras agressões praticadas em clara lesão à dignidade humana [1].

Trata-se, portanto, de sanção civil incidente sobre herdeiro cujo comportamento seja reprovável por atentar contra a vida, a honra ou a liberdade daquele de quem herdaria os bens [2]. Por ter incorrido em ofensas contra o de cujus, resta o herdeiro privado da herança [3]. Assim, afasta-se da sucessão o herdeiro considerado desprovido de moral para receber a herança [4].

Segundo o artigo 1.814 do Código Civil, são excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente (inciso I); os que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro (inciso II); e, ainda, os que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade (inciso III).

Considerando o teor da norma e o elenco de hipóteses, a princípio, taxativas, o Superior Tribunal de Justiça analisou a possibilidade de aplicação de outras formas de interpretação ao artigo 1.814 do Código Civil além da literal. Ao julgar o Recurso Especial 1.943.848-PR [5], de relatoria da ministra Nancy Andrighi, a 3ª Turma firmou entendimento no sentido de que o reconhecimento da taxatividade do dispositivo legal “não induz à necessidade de interpretação literal de seu conteúdo e alcance, uma vez que a taxatividade do rol é compatível com as interpretações lógica, histórico-evolutiva, sistemática, teleológica e sociológica das hipóteses taxativamente listadas”.

Menções à doutrina

No acórdão, a 3ª Turma pontuou ser rara a discussão, no STJ, a respeito da amplitude e da abrangência da regra do artigo 1.814 do Código Civil e não ignorou o fato de que a doutrina, majoritariamente, defende a taxatividade das hipóteses de indignidade nele previstas. É o caso, exemplificativamente, de Silvio Rodrigues e de José Luiz Gavião de Almeida. Para o primeiro, “tratando-se de pena, o legislador é extremamente preciso e só permite a exclusão por indignidade nos casos estritos que relaciona” [6]. Para o segundo, o “rol do art. 1.814 é taxativo. Outra não poderia ser a conclusão, tendo em vista que […] a legitimação para receber herança é a regra. Por isso, qualquer situação que venha impossibilitar esse direito há de ser tomada como norma excepcional” [7].

Neste contexto, a 3ª Turma decidiu que a taxatividade não se confunde com a interpretação literal e que há de se diferenciar o texto de lei da norma jurídica, esta produto da atividade interpretativa por meio da qual se atribui significado ao texto. E, assim, ao examinar especificamente o inciso I do artigo 1.814 do Código Civil, a 3ª Turma definiu:

“A partir de uma primeira leitura do texto do art. 1.814, I, do CC/2002, poder-se-ia concluir, prima facie, de forma irreflexiva, não contextual e adstrita ao aspecto semântico ou sintático da língua – para usar as palavras de Riccardo Guastini sobre a interpretação literal – que o uso da palavra homicídio possuiria um sentido único, técnico e importado diretamente da legislação penal para a civil, de modo que o ato infracional análogo ao homicídio praticado pelo filho contra os pais não poderia acarretar a exclusão da sucessão, na medida em que de homicídio, em sentido técnico, não se tratou. Contudo, no ato de interpretar a regra prevista na legislação civil, transformando o texto abstrato em norma concreta – que é tarefa essencial do Poder Judiciário, não se pode deixar de considerar, juntamente com a literalidade, também os valores tutelados no art. 1.814, I, do CC/2002. […] Percebe-se, pois, que esses elementos compõem o núcleo essencial da regra do art. 1.814, I, do CC/2002, que pode ser traduzida, a partir dessa concepção teleológica-finalística, a partir do seguinte enunciado: não terá direito à herança quem atentar, propositalmente, contra a vida de seus pais, ainda que a conduta não se consume, independentemente do motivo.”

A utilização de outros métodos interpretativos é defendida por Maria Berenice Dias, que, ao citar Belmiro Welter e sua contribuição de trazer às relações familiares a teoria tridimensional do direito — genética, afetiva e ontológica —, diz que as causas de exclusão da capacidade sucessória são mais abrangentes do que aquelas citadas no Código Civil [8]. Assim também se posiciona Rolf Madaleno [9].

A lógica da indignidade, portanto, há de observar não apenas a literalidade do texto legal, mas, também, o seu fundamento ético. Sobre a interpretação a ser dada à norma legal, Carlos Maximiliano examina o papel do julgador ao aplicar a lei:

“Existe entre o legislador e o juiz a mesma relação que entre o dramaturgo e o ator. Deve este atender às palavras da peça e inspirar-se no seu conteúdo; porém, se é verdadeiro artista, não se limita a uma reprodução pálida e servil: dá vida ao papel, encarna de modo particular a personagem, imprime um traço pessoal a representação, empresta às cenas um certo colorido, variações de matiz quase imperceptíveis; e de tudo faz ressaltarem aos olhos dos espectadores maravilhados belezas inesperadas, imprevistas. Assim o magistrado: não procede como insensível e frio aplicador mecânico de dispositivos; porém como órgão de aperfeiçoamento destes, intermediário entre a letra morta dos Códigos e a vida real, apto a plasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral e útil à sociedade. Não o consideram autômato; e, sim, árbitro da adaptação dos textos às espécies ocorrentes, mediador esclarecido entre o direito individual e o social” [10].

ConJur

Essa mesma direção de abertura observa-se em Eduardo Espínola: “A interpretação lógica não só procura a razão da norma jurídica e esclarece seu conteúdo, como também supre suas omissões, indicando sua aplicabilidade a casos, que não parecem distintamente compreendidos em sua fórmula e explica a ratio de certas contradições aparentes” [11].

Além da literalidade

Ao que parece, bem caminhou o STJ ao estabelecer a interpretação teleológica-finalística a ser conferida ao artigo 1.814 do Código Civil. O reconhecimento da indignidade apresenta como essência a repugnância causada na consciência social por pessoa que pretender suceder a outra extraindo vantagem de seu patrimônio a partir da prática de atos lesivos de certa gravidade. É, então, instituto de acentuado conteúdo ético, a ser refletido e considerado no exame de circunstâncias concretas que assim exijam — ainda que, prima facie, o caso não se amolde à literalidade do texto legal.

A título de exemplo, é passível de ter a indignidade reconhecida aquele que deixar ao desamparo o ascendente alienado mental ou gravemente enfermo — conduta que autoriza a deserdação, por força do artigo 1.962, inciso IV, do Código Civil, mas não consta expressamente como hipótese de indignidade. Afinal, não há como o titular do patrimônio, em tais condições de saúde, fazer um testamento [12]. O fundamento ético a autorizar a possibilidade de deserdação e o reconhecimento da indignidade é o mesmo.

A interpretação, no caso particular do instituto da indignidade e do fundamento ético-moral que o precede, há de considerar a diferença entre disposição e norma jurídica, assim explicada por Riccardo Guastini: disposições são enunciados normativos e pertencem ao discurso das fontes do direito. Norma jurídica é o significado atribuído às disposições, isto é, o “conteúdo de significado” que resulta da interpretação das disposições [13].

Neste sentido, não se pode interpretar o artigo 1.814 do Código Civil de modo a restringir o seu alcance. A disposição é taxativa, mas a sua interpretação há de permitir a atribuição de significados que vão além de sua literalidade, sob pena de considerar-se digno aquele que, embora não incidente em uma das condutas expressamente previstas na lei civil, atente contra a vida, a honra ou a liberdade daquele de quem herdaria os bens.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

 


[1] TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das sucessões. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 93.

[2] ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Direito das sucessões. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 35-36.

[3] LASALA, José Luis Pérez. Tratado de sucesiones. t. I. Santa-Fé: Rubinzal-Culzoni, 2014. p. 405

[4] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil. Coordenação de Antonio Junqueira de Azevedo. 2. ed. v. 20. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 148-149.

[5] STJ. REsp 1943848-PR, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 15/02/2022, DJ 18/02/2022.

[6] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito das sucessões. v. 7. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 47.

[7] ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão legítima: arts. 1.784 a 1.856. v. XVIII. São Paulo: Atlas, 2003. p. 157.

[8] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 9. ed. São Paulo: JusPodivm, 2024. p. 369.

[9] MADALENO, Rolf. Sucessão legítima. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 168.

[10] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 23. ed.  Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 71.

[11] ESPÍNOLA, Eduardo. Direito civil brasileiro: introdução e parte geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1917. p. 181.

[12] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 9. ed. São Paulo: JusPodivm, 2024. p. 383-384.

[13] MELLO, Claudio Ari. O realismo metodológico de Riccardo Guastini. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 113, p. 187-244, jul.-dez. 2016. p. 199.

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