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Regulamentação geral do ANPC: primeiras impressões da Resolução 306/2025 do CNMP

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9 de março de 2025, 8h00

Em 17 de fevereiro de 2025, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicou a Resolução nº 306, de 11 de fevereiro de 2025 (Resolução nº 306/2025), a qual entrou em vigor na data de sua publicação, responsável por regulamentar o artigo 17-B da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) e, portanto, disciplinar, no âmbito do Ministério Público, o acordo de não persecução cível (ANPC).

A instituição do ANPC na Lei nº 8.429/1992, com a sua positivação por meio da Lei nº 13.964/2019, confirmou a mudança do modelo institucional do Ministério Público, que, em sua função contemporânea, foi demandado a agir como pacificador de conflitos.

Para tanto, o CNMP, no exercício de sua competência para regulamentar a execução das leis pelo Ministério Público, consolidou a atuação consensual da instituição, com destaque para a prevenção e repressão da improbidade administrativa. Essa tendência já havia sido delineada com a edição da Resolução nº 179, de 26 de julho de 2017, que regulamentou a celebração de termos de ajustamento de conduta em casos de improbidade administrativa, contrariando uma interpretação restritiva do § 1º do artigo 17 da Lei nº 8.429/1992[1].

A Lei nº 13.964/2019 modificou esse § 1º do artigo 17, permitindo a celebração do ANPC, mas sem definir seus parâmetros legais, em razão do veto ao artigo 17-A, previsto na mesma lei. Posteriormente, a Lei nº 14.230/2021 incluiu o artigo 17-B à Lei de Improbidade Administrativa, regulamentando o ANPC em seus parâmetros mínimos e fornecendo substrato geral para sua aplicação.

Apesar de conferir maior segurança jurídica ao instrumento, o legislador atribuiu ao Ministério Público a discricionariedade para elaborar atos normativos internos a fim de regulamentar as cláusulas essenciais do ANPC.

Até a edição da Resolução nº 306/2025, não havia um instrumento que garantisse homogeneidade na atuação funcional dos membros do Ministério Público, resultando em normativas dispersas pelos diversos ramos da instituição, com diferentes graus de detalhamento.

Embora seja uma iniciativa relevante, entendemos que a Resolução n. 306/2025 não inovou significativamente em relação aos atos normativos já existentes e não resolveu questões fundamentais, especialmente quanto ao seu caráter sancionador e à publicidade dos acordos celebrados.

A Lei de Improbidade Administrativa não especifica quais sanções podem ser negociadas. O legislador determinou que o ANPC deve incluir, no mínimo, o ressarcimento integral do dano e a reversão da vantagem indevidamente obtida. A Resolução nº 306/2025 não contrariou essa disposição, mas permitiu o parcelamento da reparação do dano patrimonial e a devolução de bens ilicitamente adquiridos, considerando o interesse público, a extensão do dano e a capacidade financeira do celebrante, o que já era defendido pela doutrina [2][3].

Por outro lado, a Resolução nº 306/2025 prevê que o ANPC poderá contemplar a aplicação de uma ou mais sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa, quando necessário para a reprovação e a prevenção do ato ímprobo [4]. Dessa forma, a regulamentação definida pelo CNMP não impõe o dever de o membro do Ministério Público estabelecer pelo menos uma das sanções previstas na Lei n. 8.429/1992, conferindo-lhe a possibilidade de assim o fazer. Tal disposição, contudo, confronta com a doutrina que sustenta que o objeto do ANPC não pode ser unicamente o ressarcimento do dano, sob pena de banalização da repressão à improbidade administrativa [5].

Spacca

Tendo em vista que os demais ramos do Ministério Público possuem o prazo de 120 dias para ajustar seus próprios atos normativos [6], inevitavelmente surgirão dúvidas quanto aos ramos que já possuem regulamentação no sentido da obrigatoriedade de imposição de pelo menos uma sanção, a exemplo dos Ministérios Públicos do Estado do Amapá [7], Goiás [8], Mato Grosso do Sul [9], Minas Gerais [10], Paraná [11] e São Paulo [12], além do Ministério Público Federal [13], que veda a isenção total de penalidades.

Outro ponto que a Resolução não avançou diz respeito à transparência dos ANPCs celebrados. O ato normativo apenas determina que “o Ministério Público manterá cadastro dos acordos de não persecução civil celebrados para fins de controle e transparência”, sem estabelecer prazo para implementação ou modelo de divulgação [14].

O acesso às informações relacionadas aos ANPCs celebrados pelos diferentes ramos do Ministério Público, em regra, exige esforço do interessado, o qual deve buscar informações por meio de consulta amparada na Lei de Acesso à Informação ou dos canais de ouvidoria do respectivo Ministério Público, sendo que, por vezes, a informação não é compartilhada sob o argumento de se tratar de informação reservada somente aos membros do Parquet.

O CNMP poderia ter progredido na questão, valendo-se do bom exemplo do Ministério Público do Estado de Mato Grosso que, mensalmente, em sua página oficial na internet, disponibiliza relatórios dos acordos celebrados pela Instituição [15], sejam eles ANPCs ou termos de ajustamento de conduta, demonstrando simplicidade e eficiência no compartilhamento desse tipo de informação com os interessados.

Desse modo, ainda que bem-vinda a edição de um regulamento geral para o ANPC, entendemos que a Resolução n. 306/2025 não se diferenciou do conteúdo dos atos normativos já editados a respeito do tema, sendo sentida a ausência de regulamentação mais aprofundada com relação à transparência dos acordos celebrados.

A agora evidente dissonância do regulamento do CNMP com relação a outros ramos do Ministério Público quanto ao conteúdo sancionador do ANPC, ou seja, a aplicação ou não de uma das sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa ao celebrante do acordo, deve fomentar a discussão entre os ramos do Parquet e na doutrina, pois, a edição ou manutenção de atos normativos que prevejam a obrigatoriedade de imposição de pelo menos uma das sanções poderá criar distorção sancionatória entre as esferas do Ministério Público ou até mesmo uma distorção temporal com relação aos acordos já celebrados com imposição de sanção, antes da Resolução n. 306/2025.

Logo, será necessário aguardar o posicionamento dos ramos do Parquet nos próximos 120 dias para a adequação dos seus atos para que o nível de homogeneidade pretendido com a edição de um ato normativo geral seja aferido.

 


[1] Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.

§ 1º É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput.

[2] Art. 6º (…) § 2º A reparação do dano patrimonial, a devolução de bens e valores acrescidos ilicitamente e o pagamento da multa civil poderão ser objeto de parcelamento, levando-se em consideração o interesse público, a extensão do dano ou do proveito patrimonial, assim como a capacidade financeira do celebrante.

[3] “O ressarcimento do dano e o perdimento de bens e valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio não poderão ser objeto de composição sobre seu montante, apenas sobre a forma, prazo e modo de cumprimento da obrigação, admitindo, no caso daquele, parcelamento, e deste, conversão em perdas e danos em se tratando de bens fungíveis ou consumíveis.” (Wallace Paiva. Acordo de não persecução civil. In: CUNHA, Rogério Sanches (coord.). Acordos de não persecução penal e civil. 3. ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024, p. 336-337).

[4] Art. 3° O acordo de não persecução civil poderá contemplar a aplicação de uma ou mais sanções previstas na Lei n.º 8.429/1992, bem como as condições necessárias para assegurar sua efetividade, sem prejuízo do ressarcimento integral do dano patrimonial e da perda de bens ou valores acrescidos ilicitamente, quando houver. (…)

Art. 6º O instrumento que formalizar o acordo nos autos, por escrito, vinculará toda a instituição, e deverá conter os seguintes elementos: (…) IX – quando necessário para a reprovação e a prevenção do ato ímprobo, sujeição do celebrante às sanções previstas no artigo 12 da Lei n.º 8.429/1992, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, observados os parâmetros e critérios fixados nos incisos IV, V e VI do artigo 17-C da referida lei, e no art. 2º desta Resolução;

[5]Nesse sentido, Wallace Paiva Júnior defende: “[…] Ressarcimento do dano não é sanção, senão consequência do ilícito e nele não pode se esgotar o acordo cujo objetivo se radica nas sanções legais. Havendo danos ao erário, o acordo deve obrigatoriamente estabelecer o seu ressarcimento agregado a uma ou mais sanções do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa, como é a tônica da jurisprudência, observando que a métrica desse diploma legal oferece algumas sanções que são variáveis no tempo ou de acordo com o valor. Logo, é inadmissível que a composição celebrada tenha como exclusivo objeto a reparação do dano, sob pena de, na prática, descartar-se simplesmente a ocorrência de ato de improbidade administrativa. Porém, sendo caracterizado, e havendo dano ao patrimônio público, o acordo além de prever a reparação do dano deve estabelecer uma ou mais sanções da Lei n. 8.429/92. Idêntica conclusão se esparge à perda (ou perdimento) de bens. Adquiridos de maneira ilícita, a perda de bens não pode ser excluída do acordo e não elimina o estabelecimento de uma ou das demais sanções legalmente previstas, sob pena de premiar-se o enriquecimento sem justa causa. Fiel a essa convicção, reafirma-se que o acordo de não persecução civil é insuficiente se tiver como resultado mínimo e exclusivo o ressarcimento do dano ou a perda de bens, sob pena de banalização indevida da repressão à improbidade e disseminação da acre sensação de impunidade.” (MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Acordo de não persecução civil. In: CUNHA, Rogério Sanches (coord.). Op. cit., p. 337-338.)

[6] Art. 22 Cada ramo do Ministério Público adequará seus atos normativos que tratem sobre o acordo de não persecução civil aos termos da presente Resolução no prazo de 120 (cento e vinte) dias, a contar de sua entrada em vigor.

[7] Resolução n. 003/2020-CPJ

[8] Resolução nº 01/2021

[9] Resolução nº 3/2021-CPJ, de 31 de maio de 2021

[10] Resolução Conjunta PGJ CGMP nº 7/2022

[11] Ato Conjunto nº 01/2022 – PGJ/CGMP/CSMP

[12] Resolução nº 1.193/2020-CPJ

[13] Orientação n. 10

[14] Art. 21

[15] Disponível em: https://www.mpmt.mp.br/secao/223, Acesso em 26 fev. 2025

Autores

  • é professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da USP e no IDP (Brasília-DF), árbitro, consultor, advogado especialista em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.

  • é assistente jurídica no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pós-graduada em Direito Administrativo pela Faculdade Getúlio Vargas.

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