Abolitio criminis do crime de usura pecuniária: da Lei 14.905/2024 e seus desdobramentos
9 de março de 2025, 17h19
A proibição da usura foi inscrita nos livros religiosos (Evangelho e Corão), e Nilo Batista resgatou historicamente essa proibição que remonta às sociedades antigas (Mesopotâmia, Índia, Grécia e Roma) [1]. No entanto, a criminalização de comportamentos, por meio do direito penal, não é admissível como simples consectário da existência de um pecado, mesmo porque crime e pecado não são conceitos coincidentes, tendo o conceito de crime, ao menos teoricamente, sofrido uma secularização a partir do século 18 [2].

Nesse contexto, Nilo Batista acentua que “metade pecado, metade delito, a usura é um tema que se apresenta no desenvolvimento não apenas de todos os sistemas jurídicos que integram ou provêm da ‘família’ romano-germânica continental como o nosso, mas também em outras ‘famílias'” [3]. No direito brasileiro, a usura remonta, entre os diplomas normativos ainda vigentes, ao Decreto 22.626, de 7 de abril de 1933, que criminalizou a conduta no artigo 13. Por sua vez, o Decreto-lei 869, de 18 de novembro de 1938, ao definir os crimes contra a economia popular estabeleceu a usura no artigo 4º. Atualmente, ela está prevista no artigo 4º da Lei 1.521/1951, com duas modalidades: usura pecuniária; e usura real.
Do ponto de vista constitucional, o artigo 173, §5º, da Constituição estipula a possibilidade de responsabilização inclusive da pessoa jurídica por atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Embora essa previsão tenha força vinculante, isso não significa assentir que a responsabilização deva se dar obrigatoriamente no campo do direito penal [4]. Não passa despercebido o cenário atual de criminalidade globalizada e emprego dos mais diversos mecanismos econômico-financeiros para garantir o proveito e emprego do produto do crime. No entanto, é preciso conter a tendência de hipertrofia do direito penal. Como assinala Luciano Anderson de Souza, a sociedade atual dá vazão à tendência expansionista do direito penal, olvidando-se outros ramos do direito ou mesmo outros meios de controle social, prevalecendo a tipificação de condutas como instrumento para conter a criminalidade [5].
Crime de usura pecuniária
O crime de usura pecuniária descrito na Lei 1.521/1951 contempla três condutas: a cobrança de juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro, superiores à taxa permitida por lei; a cobrança de ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira; o empréstimo sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito.
Focaremos o estudo na primeira modalidade, também denominada por alguns de anatocismo, “que significa cobrança de juros sobre juros dos valores não pagos” [6], embora, na realidade, não abarque apenas essa hipótese. Como se vê, trata-se de norma penal em branco, haja vista a necessidade de delimitar qual a taxa de juros permitida por lei, para se verificar a cobrança em montante superior ao parâmetro legal.
A questão central reside em delimitar o diploma normativo que contempla esse limite máximo de juros. Há quem aponte as disposições do Decreto 22.626/1933 e o Código Civil (artigo 406, 591 e 890)[7], enquanto outros indicam resoluções do Conselho Monetário Nacional [8] como o complemento da norma penal. Logo, normas de natureza civil têm impacto relevante na definição do crime de usura, porque, como vimos, o tipo penal depende de um complemento para a sua configuração.

Examinando o artigo 7º, inciso V, da Lei 8.137/90, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio Machado de Almeida Delmanto apresentam levantamento legislativo para delimitar o conceito de juros ilegais. Segundo eles, no caso dos juros remuneratórios e nas hipóteses excepcionadas pela legislação civil afastando a incidência de limitações aos juros moratórios, “não há hoje, em nosso ordenamento jurídico, uma definição do que sejam juros ilegais” [9]. Os autores reconhecem incidir a causa supralegal de exclusão da tipicidade da adequação social ao comportamento do comerciante que cobra juros ilegais, ressalvando que essa conclusão não se aplica à figura da agiotagem [10].
Modalidades de juros
A doutrina civilista reconhece a existência de duas modalidades de juros. Os juros remuneratórios (remuneram o credor pelo tempo que esteve privado do capital ou de outras coisas fungíveis, anteriormente disponibilizados por ele ao devedor) e os juros moratórios (obrigação acessória que pretende indenizar o credor pelo efeito da mora do devedor em relação a qualquer obrigação). Nos dois casos, pode haver a prática de usura [11].
Com o advento da Lei 14.905/2024, tanto os juros moratórios como os remuneratórios somente sofrerão limitação com base na taxa legal [12], quando não houver pactuação em sentido diverso pelas partes. Em outras palavras, havendo acordo entre as partes sobre o valor dos juros, afasta-se o limite legal.
Originalmente, o artigo 591 do Código Civil previa que no contrato de mútuo com fins econômicos havia presunção da inclusão de juros, mas eles não poderiam exceder a taxa do artigo 406, sob pena de redução. Atualmente, o dispositivo passou a ter a seguinte redação: “destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros. Parágrafo único. Se a taxa de juros não for pactuada, aplica-se a taxa legal prevista no art. 406 deste Código”.
Com isso, sobretudo porque o artigo 591 do Código Civil é específico a respeito do contrato de mútuo com fins econômicos, aqui incluído o empréstimo de dinheiro, pensamos que a usura pecuniária apenas subsistiria quando não houver pactuação dos juros pelas partes e o credor formalizar a cobrança de juros em patamares superiores àqueles definidos no artigo 406 do Código Civil. Em outros termos, houve aqui abolitio criminis para os casos de cobrança de juros em patamares elevados, desde que se trate de percentual convencionado entre as partes.
Debate sobre excessividade dos juros
Por óbvio, a abolitio criminis não inibe qualquer debate sobre a abusividade a eventual excessividade dos juros no âmbito cível, quando verificada a onerosidade do contrato de mútuo, mas afasta a tutela penal em razão da vontade das partes representada pelo acordo dos juros cobrados, aumentando o espaço de liberalidade entre os cidadãos, distante de uma figura paternalista do Estado [13].
De todo modo, não se desconhece que, mesmo com o advento do Código Civil de 2002, a compreensão firmada pela jurisprudência civilista foi de que o diploma legal não revogou a Lei de Usura [14], persistindo a aplicação de suas normas, motivo pelo qual se entende pertinente avançar para um segundo desdobramento da Lei 14.905/2024.
A criminalização da cobrança de juros em patamar superior ao previsto legalmente, por si só, põe em dúvida a legitimidade — a partir de um simples olhar de isonomia — do emprego do direito penal para a punição da conduta, notadamente quando se verifica que as instituições financeiras não estão limitadas por essa mesma norma.
A realização de empréstimo no mercado financeiro, mesmo antes da edição do novel diploma legal, já era encarada como hipótese de risco permitido [15], pois a Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal reputa que “as disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional”. Por seu turno, o Superior Tribunal de Justiça possui a compreensão aplicável ao direito bancário, estampada na Súmula 382 de que “a estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade”. Essa percepção que afasta as instituições financeiras do âmbito de limite de juros previsto na legislação é alvo de críticas de Rui Stoco, pois ao não serem caracterizadas como agiotas, elas “praticam taxas escorchantes, ou seja, no mínimo dez vezes superiores aos juros que remuneram a caderneta de poupança ou aplicações pré ou pós-fixadas” [16].
Exclusão da incidência da lei
O objetivo do texto não é debater a (i)legitimidade dessa forma específica de usura, mas sim a sua revogação parcial com a edição da Lei 14.905/2024, que estabeleceu em seu artigo 3º que as limitações de juros previstas no Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933, serão afastadas quando as obrigações forem contratadas entre pessoas jurídicas, forem representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários, contraídas perante determinadas instituições (p. ex. financeiras) ou realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários.
A exclusão da incidência da Lei de Usura para as obrigações contratadas entre pessoas jurídicas ou representadas por títulos de crédito denota incentivo estatal à liberdade econômica, mas permite avançarmos quanto a seu desdobramento na esfera penal, porque a legislação autoriza expressamente a convenção de juros sem limites legais, quando a contratação se der entre qualquer tipo de pessoa jurídica ou quando representada por título de crédito.
O Código Civil, no artigo 1.052, ao veicular as disposições preliminares sobre a sociedade limitada, permite a sua constituição com uma ou mais pessoas, ou seja, admite-se a sociedade unipessoal. Por sua vez, alguns títulos de crédito, como o cheque, não possuem restrições quanto à emissão por pessoa física ou jurídica [17]. Isso permite, na prática, afastar a aplicação da Lei de Usura e a configuração do crime mediante simples constituição de pessoa jurídica pelo credor e devedor ou quando a dívida for representada por título de crédito.
Não se desconhece, no entanto, que no Brasil a informalidade é uma característica no âmbito das atividades econômicas. Por isso, o que se pretende demonstrar é que a nova legislação, ao criar requisito de cunho civil que exclui a tipicidade da usura pecuniária esvaziou o conteúdo material do ilícito-típico vigente.
Configuração do crime de usura
Nesse cenário, partindo-se da premissa de que o espaço de legitimidade do direito penal não se conforma com ilícitos meramente formais, derivados do simples descumprimento de um dever [18], entendemos inviável a configuração do crime de usura pecuniária apenas porque, não cumprido um requisito formal da legislação civil, seja a constituição de pessoa jurídica ou a representação da dívida por título de crédito.
Diante disso, é possível assentar as seguintes conclusões:
- as mudanças provocadas pela Lei 14.905/2024 acarretaram a abolitio criminis da usura pecuniária, quando se tratar de juros convencionados entre as partes;
- ainda que se entenda que o Decreto nº 22.626 continua vigente no ponto em que delimita os juros máximos permitidos, teve sua incidência excluída para os contratos de dinheiro entre pessoas jurídicas ou entre pessoas físicas quando a dívida for representada por um título de crédito esvaziando o conteúdo material do ilícito;
- o mero descumprimento do requisito formal de constituição de pessoa jurídica ou representação da dívida por título de crédito é incapaz de amparar a configuração do crime de usura.
[1] BATISTA, Nilo. Reflexões sobre o crime de usura no Direito brasileiro, Revista de Ciencias Sociales – número 77 (2020), Universidad de Valparaíso, Chile, p. 153.
[2] D’AVILA, Fabio Roberto. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: D’AVILA, Fabio Roberto; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Direito Penal Secundário: Estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 74.
[3] BATISTA, Nilo. Reflexões sobre o crime de usura no Direito brasileiro, Revista de Ciencias Sociales – número 77 (2020), Universidad de Valparaíso, Chile, p. 153.
[4] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Econômico como Direito Penal de Perigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 165.
[5] SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do Direito Penal e Globalização. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 165.
[6] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Crimes contra a economia popular. In: JORGE, Higor Viniicus Nogueira; LEITÃO JÚNIOR, Joaquim; GARCEZ, Willian [Orgs.]. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1065. Incluindo o anatocismo como hipótese configuradora do crime de usura cf. ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. [ebook]. 15. ed. São Paulo: Saraiva Educação, p. 411.
[7] SOUZA, Renee do Ó. Capítulo 2 – Crimes contra a economia popular – Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó [Coord]. Leis Penais Especiais Comentadas. 5. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 136.
[8] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Crimes contra a economia popular. In: JORGE, Higor Viniicus Nogueira; LEITÃO JÚNIOR, Joaquim; GARCEZ, Willian [Orgs.]. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1065.
[9] DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. Leis Penais Especiais Comentadas [ebook]. 4. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2025, p. 383.
[10] DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. Leis Penais Especiais Comentadas [ebook]. 4. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2025, p. 384.
[11] ANDRADE JR, Luiz Carlos de; LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. Disciplina da usura no Direito Civil brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 33. ano 9. p. 81-121. São Paulo: Ed. RT, out./dez. 2022.
[12] Havia enorme discussão jurisprudencial se a taxa legal seria a SELIC ou aquela prevista no art. 161 do Código Tributário Nacional, com a mudança promovida pela Lei 14.905/2024, o art. 406, §1º, do Código Civil passou a estabelecer que a taxa legal corresponde à SELIC, deduzido o índice de correção monetária. O cálculo dessa taxa legal foi definido, em 29 agosto de 2024, quando o Banco Central do Brasil editou a Resolução nº 5.171/2024, descrevendo a metodologia de cálculo.
[13] Segundo a doutrina, o paternalismo caracteriza-se como “a intervenção do Estado na liberdade individual, contra a vontade da pessoa, para evitar-lhe um mal”. MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. Direito penal parte geral: lições fundamentais. 6ª ed. Belo Horizonte: São Paulo, D´Plácido, 2021, p. 151.
[14] ANDRADE JR, Luiz Carlos de; LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. Disciplina da usura no Direito Civil brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 33. ano 9. p. 81-121. São Paulo: Ed. RT, out./dez. 2022.
[15] SOUZA, Renee do Ó. Capítulo 2 – Crimes contra a economia popular – Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó [Coord]. Leis Penais Especiais Comentadas. 5. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 137.
[16] STOCO, Rui. Crimes contra o sistema financeiro nacional, a economia popular, a ordem econômica e as relações de consumo. São Paulo: RT, 2017, p. 114.
[17] A cédula de crédito bancário é título de crédito e embora possa ser emitida por pessoa física ou jurídica, o favorecido sempre será instituição financeira ou entidade equiparada (art. 26 da Lei 10.931/2004).
[18] Observando que omissão enquanto simples violação de um dever de obediência ao Estado está atrelada à Alemanha nazista cf. D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios (contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico). Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 239-240. No mesmo sentido, indicando a vinculação do crime enquanto simples violação de um dever à Escola de Kiel cf. GÜNTHER, Klaus. De la vulneración de um derecho a la infracción de un deber. ¿ Un <<cambio de paradigma>> en el Derecho Penal? Trad. Jesús-María Silva Sánchez. In: La insostenible situación del Derecho Penal. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 497-501.
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