Opinião

Prova diabólica e inversão do ônus probatório: perspectiva doutrinária e jurisprudencial

Autor

  • é advogado membro efetivo da Comissão de Direito Ambiental Agrário e Urbanístico da 14ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais e 1º Suplente da Ordem dos Advogados do Brasil junto ao Conselho Municipal do Meio Ambiente de Uberaba (MG).

    Ver todos os posts

9 de março de 2025, 15h25

No cenário do processo civil brasileiro, a prova desempenha um papel crucial na busca e efetivação da justiça. A capacidade de apresentar evidências sólidas é fundamental para a construção de um caso robusto, o que acaba influenciando diretamente as decisões judiciais.

O ônus probatório, na visão do autor deste ensaio, parte da premissa que “a parte não possui dever de produzir prova, mas ônus com consequências negativas (prejuízos) advindas de sua inércia voluntária no que tange à produção de determinada prova”. [1]

Ou seja, em regra a produção da prova não deve ser vista como uma obrigatoriedade, mas uma oportunidade, a qual, se não exercida poderá ensejar influencia negativa na decisão judicial.

Ocorre que, em alguns casos, temos a complexidade das provas negativas, também conhecidas como “provas diabólicas”, onde se exige a demonstração de fatos inexistentes, o que representa um desafio significativo para as partes envolvidas, uma vez que, ainda que deseje produzir a prova, simplesmente não consegue.

Prova diabólica

Inicialmente, é importante entender que a prova diabólica pode ser tanto “unilateralmente diabólica”, ou “bilateralmente diabólica”.

A primeira ocorre quando a prova é diabólica para a parte que tinha o ônus de produzi-la (segundo as regras do artigo 373 do CPC). No entanto, é uma prova possível de ser juntada pela outra parte. Neste caso, o juiz poderá inverter o ônus, determinando que a prova seja produzida pela outra parte que não tinha inicialmente o ônus de juntá-la, conforme autoriza o § 1º do artigo 373 do CPC.

A segunda ocorre quando a prova é diabólica para ambas as partes, ou seja, é impossível ou muito difícil para ambas as partes produzirem. Neste caso, não haverá inversão do ônus por conta da prova diabólica.

Spacca

Não se pode simplesmente transferir a prova diabólica de uma parte para a outra. É o que Marinoni chama de “situação de inesclarecibilidade”.

Luiz Guilherme Marinoni (2020, p. 314) explica que, “quando se modifica o ônus, é preciso supor que aquele que vai assumi-lo terá a possibilidade de cumpri-lo, sob pena de a modificação do ônus da prova significar a imposição de uma perda e não apenas a transferência de um ônus”. [2]

Alteração do ônus da prova

Sob essa ótica, a alteração do ônus da prova deve ocorrer apenas quando o réu tem a capacidade de demonstrar a inexistência do fato constitutivo, ou quando o autor possui meios de provar a inexistência do fato extintivo, modificativo ou impeditivo.

Nessas situações, não é papel do juiz manter o ônus da prova com quem alegou o fato, nem transferi-lo, na fase de saneamento (ou probatória), para atribuí-lo à parte contrária (artigo 373, §2°, CPC). Por conseguinte, ao término da instrução, o magistrado pode não alcançar um grau mínimo de certeza, e uma das partes terá que suportar as consequências desfavoráveis desse estado de incerteza final.

Na pratica, como os tribunais lidam com a complexidade das provas bilateralmente diabólica?

Ora, a jurisprudência do Tribunal de Minas Gerais, tem adotado os ensinamentos de Marinoni, no sentido de que, em “situação de inesclarecibilidade”, em que a prova do fato é impossível ou muito difícil para ambas as partes. Isto é, bilateralmente diabólica, o ônus probatório deve recair sobre aquele que alegou o fato positivo, que assumiu o “risco de inesclarecibilidade”, submetendo-se à possibilidade de uma decisão desfavorável.

Vejamos:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL E MORAL – BENS PESSOAIS SUBTRAÍDOS POR MOTORISTA DE VEÍCULO DE TRANSPORTE POR APLICATIVO – PROVA DOS FATOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO DO AUTOR – AUSÊNCIA – SENTENÇA MANTIDA. – Compete ao autor demonstrar os fatos constitutivos do seu direito e ao réu os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado, nos termos do art. 373 do Código de Processo Civil. – Em “situação de inesclarecibilidade”, em que a prova do fato é impossível ou muito difícil para ambas as partes, isto é, bilateralmente diabólica, o ônus probatório deve recair sobre aquele que alegou o fato positivo, que assumiu o “risco de inesclarecibilidade”, submetendo-se à possibilidade de uma decisão desfavorável. – Cabe à autora demonstrar o fato constitutivo do seu direito, no qual abrange a situação positiva declarada em Juízo, o que não ocorreu. Mesmo diante da aplicação das normas consumeristas, não é possível isentar o consumidor do ônus de demonstrar, ainda que minimamente, a veracidade de suas alegações e a existência dos fatos narrados em exordial.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0000.19.152301-8/002, Relator(a): Des.(a) Maria Lúcia Cabral Caruso , 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 16/03/2022, publicação da súmula em 18/03/2022)

Dessa forma, para entendemos melhor esse “risco de inesclarecibilidade”, nos valeremos dos ensinamentos de Fredie Didier, que esclarece que:

“Assim, se o fato insusceptível de prova for constitutivo do direito do autor: a) e o autor assumiu o risco de inviabilidade probatória (‘inesclarecibilidade’), o juiz, na sentença, deve aplicar a regra legal (333, CPC) do ônus da prova (regra de julgamento) e dar pela improcedência; b) mas se foi o réu que assumiu o dito risco, o juiz deve, depois da instrução e antes da sentença, inverter o ônus da prova e intimá-lo (o réu) para que se manifeste, para, só então, dar pela procedência.”

Jurisprudência na prova bilateralmente diabólica

Assim, compreende-se que, nos casos de prova bilateralmente diabólica, a jurisprudência e a doutrina recomendam que o ônus recaia sobre quem alegou o fato positivo, assumindo o risco de inesclarecibilidade e, assim, suportando as consequências de uma decisão desfavorável caso a prova não seja produzida.

Além das considerações sobre a prova diabólica e a inversão do ônus da prova, é fundamental citar a interseção entre a temática “inversão do ônus probatório” com a chamada “presunção de inocência no âmbito civil” nas cargas probatórias.

Conforme elucidado por Eduardo José da Fonseca Costa em seu artigo “Presunção de Inocência Civil”, a presunção de inocência deve ser entendida como uma garantia processual que transcende o direito penal, aplicando-se também aos processos civis. [3]

Isso reforça a necessidade do Estado/juiz ter cautela ao manejar o ônus da prova, assegurando que a distribuição das responsabilidades probatórias respeite os princípios constitucionais de ampla defesa e contraditório​​ e presunção de inocência.

Presunção de inocência

A relação entre a prova diabólica e a presunção de inocência civil destaca a importância de um processo justo, equilibrado e garantista, onde as partes não sejam oneradas injustamente com a produção de provas impossíveis ou excessivamente difíceis.

Eduardo José da Fonseca Costa constrói criticas mais severas, aduzindo que a chamada inversão ou dinamização do ônus da prova corresponde a uma “pressuposição de culpabilidade civil do réu”, o que fere de morte a “presunção de inocência civil”, prevista no artigo 5º, LVII, da Constituição.

Dessa forma, a aplicação criteriosa da inversão do ônus da prova deve sempre considerar a capacidade real das partes de cumprir com suas responsabilidades probatórias, uma vez que não é papel do Estado/juiz agir como um justiceiro agindo ativamente, garantindo que a justiça seja alcançada de maneira equitativa e respeitosa aos direitos fundamentais.

 


[1] SILVA, Bruno Campos. Dever Probatório Endereçado Às Partes.

[2] Curso de processo civil : tutela dos direitos mediante procedimento comum, volume 2 [livro eletrônico] / Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. — 6. ed. rev., atual. e ampl. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020.

[3] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Presunção de inocência civil: algumas reflexões no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 25, n. 100, p. 129-144, out./dez. 2017.

Autores

  • é advogado, pós-graduando em Processo Civil, membro efetivo da Comissão de Direito Ambiental, Agrário e Urbanístico da 14ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, em Minas Gerais, e 1º suplente da Ordem dos Advogados do Brasil junto ao Conselho Municipal do Meio Ambiente de Uberaba (MG).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!