Tema repetitivo 1.124: tese sugerida e consequências
7 de março de 2025, 15h22
Iniciado o julgamento do Tema 1.124/STJ, a tese sugerida pela ministra Maria Thereza de Assis Moura foi a seguinte:
“Superada a tese do interesse de agir, o termo inicial dos efeitos financeiros dos benefícios previdenciários concedidos ou revisados judicialmente será a data da citação caso o direito tenha sido comprovado por A) documento não juntado ao processo administrativo; B) testemunha não apresentada em justificação administrativa designada para tanto; C) prova pericial após ausência de apresentação da pessoa ou coisa a ser periciada, ou qualquer forma de falta de colaboração com a perícia administrativa; D) outra prova qualquer quando incumbir a pessoa interessada a fazê-lo, sem o ônus excessivo e foi conferida a devida oportunidade no processo administrativo.”
Um balde de água fria naqueles que acreditavam, assim como eu, que a decisão reafirmaria a jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça. Não por uma questão de conveniência, mas em respeito aos princípios da coerência e integridade do direito, vetores de racionalidade expressamente previstos no ordenamento jurídico brasileiro (CPC, artigo 926). Havia algo anterior, que deveria vincular e direcionar a decisão. Devo repetir que havia justificada confiança na jurisprudência da Corte Cidadã, no sentido de que o direito não está condicionado ao momento de sua comprovação, tampouco seus efeitos financeiros.
O problema é – e sempre foi – o segurado que pede sozinho seu benefício no INSS, o que vai desde as inúmeras dificuldades de acessar o sistema, passando pela falta de interesse na vida do segurado, de carne, osso e história (afinal, já temos robôs analisando o direito do segurado), até uma orientação abusiva, que vai muito além de uma interpretação divergente entre o INSS e o Poder judiciário no tocante à legislação previdenciária – o INSS não observa sequer os precedentes de observação obrigatória.
Caso mantida a tese sugerida pela relatora, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vai precisar lançar uma campanha nacional para alertar os trabalhadores a jamais pedirem seu benefício sozinhos no INSS. Talvez outdoors iguais aos que o governo utilizou para dizer que a reforma da previdência seria boa para os trabalhadores!
Já com relação aos segurados assistidos por um advogado (especialista na área), este deverá levar à apreciação do INSS todos os documentos possíveis, vale dizer: já pensando numa futura ação judicial. Mais do que isso, ele deverá requerer, desde a petição, todas as provas que pretende produzir, como testemunhal e pericial. Perde quem não pede.
Sobre o mérito já foi dito (quase) tudo: a) se a partir do mesmo conjunto probatório apresentado na via administrativa o julgador extrair uma conclusão diametralmente oposta, em favor do segurado, os efeitos financeiros serão fixados desde o requerimento; b) se o reconhecimento, na justiça, tiver como fundamento prova testemunhal e/ou pericial, os efeitos financeiros serão fixados desde o requerimento; c) o que ficar de fora das exigências do INSS (leia-se: o segurado só pode deixar de cumprir uma exigência se orientado sobre o seu direito e os documentos necessários para a sua comprovação), os efeitos financeiros serão fixados desde o requerimento… [1] A jurisprudência do TRF-4 vem caminhando dentro dessas três premissas.
Com efeito, o que retira do INSS a responsabilidade por orientar, instruir e impulsionar o processo administrativo é o desleixo do interessado, que, mesmo após exigência formal, deixa de apresentar determinado documento. Por outras palavras, aquilo que esbarra na falta de colaboração do segurado e, nesse sentido, a exigência precisa ter suporte legal e guardar pertinência com a questão controvertida – são muitas as exigências desarrazoadas.
Vale a pena notar que a tese colocada em discussão não contempla a possibilidade de os efeitos financeiros retroagirem à data da concessão do benefício concedido, no caso de revisão judicial, o que, por si só, já é um baita negócio para o INSS. Muitos são os juízes que fixam o termo inicial na data do pedido de revisão. Na maioria dos casos, o segurado fez sozinho seu pedido de aposentadoria e, anos depois, toma ciência das circunstâncias que lhe permite postular uma revisão num escritório de advocacia. Ah, vida real!

O que me interessa, repito, não é tanto a tese. São suas consequências práticas. O INSS volta a ser ele mesmo, o maior litigante do país, cada vez mais distante do cidadão. Essa distância agora é chancelada pelo próprio judiciário. Uma linguagem que inverte deveres e obrigações. Ao fim e ao cabo, a atuação descomprometida do INSS será premiada com a subtração dos valores devidos ao segurado desde o preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício. É disso que estamos falando: uma punição do segurado!
Como bem capturado pela 3ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “Entre conceder administrativamente ou esperar que o obreiro consiga o benefício em juízo, será muito mais vantajoso para a autarquia previdenciária a segunda hipótese, pois aí, de qualquer modo, o termo inicial de concessão ficará postergado” (TRF-4, ARS 5031347-50.2019.4.04.0000, 3ª Seção, relator Celso Kipper, juntado aos autos em 14/06/2023). Diante da dúvida sobre quais documentos são “essenciais” para o reconhecimento do direito, o caminho será ingressar, o mais rápido possível, na via judicial. Quem vai correr o risco de perder dois ou três anos na via administrativa? A tese representa, sim, um desestímulo ao esgotamento da via administrativa. A presença de advogado não é garantia de nada, já que a tese não contempla todas as hipóteses de aplicação na norma e, mesmo nas situações ventiladas, persiste um certo grau de subjetivismo.
Ainda do ponto de vista exclusivamente processual, é grande a confusão entre diferentes institutos processuais. Uma coisa é que o chamamos de interesse de agir; outra, muito distinta, são os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo (início de prova material). Uma terceira coisa, que fica em outro andar, são os efeitos financeiros, sendo que estes devem coincidir com a DER ou data em que preenchidos os requisitos ensejadores do benefício, nos termos do artigos 49, II, 54 e 57, § 2º, da Lei 8.213/1991. Ausente o interesse de agir ou início de prova material, o feito deve ser extinto, sem resolução de mérito, conforme artigo 485, inciso IV e VI, do CPC (Temas 350/STF e 629/STJ). Uma vez sanados tais vícios, os efeitos financeiros, em nova ação, deverão ser fixados na DER ou data em que preenchidos os requisitos ensejadores do benefício. A demora na comprovação do direito tem como (única) consequência a demora na implantação do benefício. Simples assim. Não se pode confundir o “direito” com a “prova do direito”.
Colocando as coisas em termos didáticos
O legislador expressamente interveio, nos artigos 49, II, 54 e 57, § 2º, da Lei 8.213/1991, para dizer que o termo inicial dos efeitos financeiros deve coincidir com a data do requerimento. Ele intervém para impedir a subtração de valores devidos desde a DER. Com base na obra de Lenio Streck, é possível indicar em quais hipóteses o magistrado pode desaplicar a lei: a) quando a lei for inconstitucional; b) quando for o caso de aplicação de regra de antinomia; c) quando for o caso de aplicação da interpretação conforme; d) quando for o caso de utilização da arguição de nulidade sem redução de texto; e) quando for o caso de utilização da arguição de nulidade com redução de texto. Bem compreendido isso, se o STJ deixar de aplicar tais dispositivos, afastando da legalidade vigente sem que esse distanciamento esteja respaldado em controle de constitucionalidade (jurisdição constitucional), estará violando o artigo 37 da CF/1988.
Para terminar, eu gostaria de acrescentar mais uma coisa: preocupa-me os pré-juízos inautênticos que gravitam em torno do tema, com muitos juízes comprando a narrativa do INSS, no sentido de que os processos são mal instruídos, até mesmo, propositalmente. O (quase) medo de muitos juízes é no sentido de que a tese incentive um comportamento descomprometido, pouco responsável dos advogados.
A decisão contempla apenas a visão da autarquia – e daí o “perigo de uma única história” (livro de Chimamanda Ngozi Adichie), como bem lembrado por uma das advogadas, em sua brilhante sustentação oral. A propósito, a não leitura do voto era um indicativo do que estava por vir – e serve de parâmetro de observação da importância que se deu ao tema.
Cumpre pergunta: por que o advogado deixaria de apresentar os documentos que separam o segurado do seu direito? Ainda, o INSS alega que os processos são incompletos. Contradições ao infinito, no processo judicial, mesmo diante da documentação adequada, ele sinaliza com falhas, contesta e recorre até a última instância. Na maioria dos casos, a partir do mesmo conjunto probatório apresentado na via administrativa, o Poder Judiciário reconhece o direito do segurado.
Sem advogado, o segurado fica à própria sorte. Vários estudos já foram produzidos, abordando as relações entre o mundo do trabalho e o alfabetismo no contexto digital. Um destes estudos é o “Indicador de Alfabetismo Funcional”, de 2018.[2] O analfabetismo funcional, que afeta cerca de 29% da população brasileira, dificulta o acesso e navegação no sistema do INSS (“Meu INSS”), bem assim impede o cidadão de compreender a complexidade e, até mesmo, a importância de cada documento.
Mas não é só isso. O sistema está programado para indeferir de forma sumária. Da análise dos dados apresentados nos quadros 24 e 25 do Boletim Estatístico da Previdência Social, de janeiro a junho de 2024, depreende-se uma situação preocupante: o elevado número de indeferimentos de benefícios em comparação com o volume de processos pendentes de cumprimento de exigências documentais por parte dos segurados:
Competência | Indeferido | Aguardando Exigência | % indeferimentos sem exigência |
Janeiro | 416.659 | 271.800 | 34,76% |
Fevereiro | 419.283 | 259.329 | 38,14% |
Março | 505.905 | 273.889 | 45,86% |
Abril | 526.802 | 274.047 | 47,97% |
Maio | 468.917 | 246.272 | 53,90% |
Junho | 461.472 | 254.402 | 44,87% |
A tabela demonstra que, em média, quase metade dos processos indeferidos não apresenta qualquer tipo de exigência documental por parte do INSS, ou seja, o instituto conclui esses processos administrativos com a documentação deficiente, sem dar ao segurado a oportunidade de complementação.
Outro dado alarmante nesse contexto é o percentual de benefícios indeferidos – na relação com os concedidos. Num apanhado do primeiro semestre de 2024 [3]:
Competência | Benefícios Concedidos (Demais Benefícios) | Benefícios Indeferidos (Demais Benefícios) | Percentual de Indeferimento |
Janeiro | 216.163 | 202.971 | 48,41% |
Fevereiro | 207.673 | 195.809 | 48,52% |
Março | 221.433 | 204.470 | 48,01% |
Abril | 254.144 | 232.432 | 47,77% |
Maio | 213.495 | 200.270 | 48,38% |
Junho | 240.860 | 202.896 | 45,70% |
Nesse quadro capturado pelos sinais dos tempos atuais, o Judiciário não serve para um mundo ideal. Quando o judiciário ignora isso, ou tenta achar culpados (que existem e, por isso, o Judiciário é acionado), ele acaba reproduzindo essa triste realidade, ele coloca um “selo jurídico”! É claro que o problema é multifacetado, sendo necessária a colaboração de todos, desde servidores interessados na vida do cidadão, de carne, osso e história; passando por advogados mais diligentes; até mudanças estruturantes, como a vinculação da administração aos precedentes judiciais, etc.
A discussão, no Tema 1.124, não resolve esse problema, que é complexo, mas atenua os sintomas. A resposta, por óbvio, não pode ser punir o cidadão e/ou premiar a administração com a subtração dos valores devidos desde o preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício. Não estão em condições de igualdade, trabalhador, empresa e INSS. Isso exige do judiciário uma postura diferenciada, a saber, orientada para o equilíbrio de forças desiguais. Isso significa forçar um dos lados, como quando se desempena uma madeira, tal como fez o STJ no Tema Repetitivo 1.018/STJ.
Vale lembrar que, após a leitura da tese sugerida, pediu vista o ministro Paulo Domingues, então, é possível uma reviravolta. Vale lembrar que o Direito constitui uma prática social, logo, a justiça previdenciária perde sua função por aquilo que ignora, a saber: a realidade. Aproveito para deseja a todos um ótimo 2025!
Bah1: Nesse sentido é a jurisprudência do TRF4: “A ausência de exigências administrativas específicas por parte do INSS e a ausência de advogado no processo administrativo não podem prejudicar a parte autora, sendo aplicável o entendimento de que a via administrativa não é pressuposto para a judicialização do pedido (STJ, Súmula 77).” (TRF-4, AC 5009156-43.2023.4.04.7122, 5ª Turma, relator para Acórdão HERMES SIEDLER DA CONCEIÇÃO JÚNIOR, julgado em 25/02/2025)
Bah2: INAF. Disponível em: <https://alfabetismofuncional.org.br/> Acesso em: 30 out. 2024.
Bah3: MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Disponível em: <https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-social/dados-estatisticos-previdencia-social-e-inss>. Acesso em: 30 out. 2024
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