Opinião

O free-rider e a companhia: um conflito contemporâneo

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  • é advogado no escritório Reis Advogados pós-graduado em Direito Societário pelo Instituto Insper (SP) com especialização em Processo Civil pela Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP (Lato Sensu).

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7 de março de 2025, 21h25

A criação teórica da pessoa jurídica foi o avanço que permitiu o desenvolvimento da atividade econômica, ensejando a limitação dos riscos do empreendedor ao patrimônio destacado para tal fim.

Abusos no uso da personalidade jurídica justificaram, em lenta evolução jurisprudencial, posteriormente incorporada ao direito positivo brasileiro, a tipificação de hipóteses em que se autoriza o levantamento do véu da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios e sociedades do mesmo conglomerado econômico, que dela dolosamente se prevaleceram, frisa-se, para finalidades ilícitas.

Especificamente, a confusão patrimonial é um estado fático com relevância para o Direito, na medida em que lhe empresta importante significação, especialmente quando se trata de tutelar o credor, além de preservar a ordem econômica. Os efeitos dessa situação são funestos, para credores, funcionários, a economia e a credibilidade do próprio ordenamento jurídico, em que destacamos:

– Desvio: subutilização ou não utilização dos ativos em atividade produtiva, causando prejuízo à função de produção e aos credores;

– Desprestígio das normas societárias, distorção das da função de garantia do patrimônio e aumento dos custos de transação.

Sobre essa casuística, há uma repressão a este comportamento, nos dizeres de Calixto Salomão Filho, de “free-rider”.

Assim sendo, leciona o ilustre mestre [1]:

“Como free-rider define-se o agente que quer gozar das vantagens, mas não dos custos da responsabilidade limitada, ou seja, aquele agente que usa a responsabilidade limitada não passivamente, como meio de salvação no caso extremo de falência, mas ativamente, como elemento estratégico para a externalização de riscos em maneira diversa daquela prevista no ordenamento. O ordenamento deve intervir, consequentemente, para eliminar esses abusos e repristinar a distribuição de riscos desejada”.

A responsabilidade limitada é, portanto, uma distribuição de riscos, como forma de proteger o empresário, em caso de insucesso nos negócios; uma porta de saída do mercado, sem custos insuportáveis (ruína pessoal).

Todavia, essa benesse legal, não pode ser desvirtuada, para fins ilícitos, como fraude e ocultação de patrimônios, como forma de lesar credores.

Assim sendo, a desconsideração, não será mais do que uma repristinação da distribuição de riscos pretendida pelas partes, em manifesta aplicação da cláusula rebus sic stantibus com relação à solvabilidade da empresa devedora do grupo econômico.

Portanto, a empresa não pode ser instrumento de fraudes e ocultação de patrimônio. Em termos econômicos, deve ser analisada como uma unidade econômica de negócios, geradora e distribuidora de caixa, com responsabilidade social perante os seus stakeholders.

A riqueza constrói-se, como bem dissertado pela escritora Ayn Rand [2] mediante o ato de “fazer dinheiro” criado com trabalho ético, como essência da moralidade humana, em contraposição ao ato de “ganhar dinheiro” encarado aqui como uma quantidade estática a ser tomada, pedida, herdada, repartida, saqueada ou obtida como favor.

As empresas brasileiras devem ainda, cumprir com a função social outorgada a elas pela Carta Magna (artigo 170), abastecendo o mercado com produtos e serviços, defrontando com as necessidades e as expectativas de fornecedores e clientes, em um ambiente que prestigia a concorrência, livre iniciativa, eticidade e pontualidade dos seus negócios.

Cumpre, pois, a sua função social, quando imersas em uma externalidade positiva, gerando riquezas, tributos, empregos, com práticas empresariais idôneas, contribuindo para o desenvolvimento econômico do local onde se situa, respeitando os direitos de consumidores, fornecedores e credores, na consecução de suas atividades e obrigações.

Em face da importância da sua função social, o ordenamento jurídico consagra o princípio da preservação da empresa, protegendo-se a sua atividade econômica, como objeto de direito, tendo em vista seu alcance como fonte geradora de empregos, produtos, serviços, tributos e diversos benefícios sociais.

Nesta linha de pensamento veja-se que na desconsideração da personalidade jurídica não se atinge o ato constitutivo, mas tão somente a eficácia da separação patrimonial.

Spacca

Deste modo, o instituto resguarda a atividade econômica da empresa, inibindo o abuso da personalidade jurídica, para readequá-la a sua função social, como uma forma de atendimento próprio, bem como dos interesses coletivos, dentre eles, os credores prejudicados.

Noutros termos, o instituto extrapola os interesses pecuniários das partes mostrando-se como importante vetor em defesa da função social da propriedade, nos termos do inciso III, do artigo 170 da Constituição Federal.

Por sua vez, a função social tem como desdobramentos a criação de empregos, pagamento de tributos, respeito aos direitos trabalhistas e dos consumidores, bem como, a adoção de práticas sustentáveis no mercado, honrando compromissos assumidos com credores e fornecedores.

O Recurso Especial 2.072.206/SP

Feito esse introito, observamos com muita preocupação o recente entendimento do e. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 2.072.206/SP [3], com a possibilidade de condenação em honorários sucumbenciais após a improcedência do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ).

No voto, o ministro Villas Bôas Cueva ressaltou a possibilidade de fixação de honorários advocatícios em caso de rejeição de pedido formulado em incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Segundo o relator, a desconsideração, apesar de ser tratada como um incidente processual, possui natureza jurídica de demanda incidental, com partes, causa de pedir e pedido, o que justifica a fixação de honorários.

O relator destacou que, ao se rejeitar o pedido de desconsideração, o advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar tem direito aos honorários, já que houve uma pretensão resistida.

Cueva frisou que a natureza dos honorários é remuneratória, e a fixação deve levar em conta o êxito do advogado, sendo desnecessária uma previsão legal específica para tal condenação. O ministro citou ainda a jurisprudência da corte que admite a fixação de honorários em incidentes processuais que envolvem mérito.

Com base nesses fundamentos, o relator concluiu que, em situações como a desconsideração da personalidade jurídica, a fixação de honorários advocatícios é legítima, inclusive quando o pedido for rejeitado.

Todavia, há argumentos convincentes para refutar esse entendimento, em que pese todo o nosso respeito.

De início, destacamos o princípio da legalidade.

O artigo 85, § 1º do Código de Processo Civil não prevê a fixação de honorários de sucumbência em incidentes.

O referido dispositivo legal dispõe que:

“são devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente.”

Assim, não é cabível a fixação da verba honorária nessa casuística. A condenação nos ônus de sucumbência é atrelada às decisões que tenham natureza jurídica de sentença, ressalvadas as hipóteses do § 1º do artigo 85, acima transcrito.

A decisão que desacolhe incidente de desconsideração da personalidade jurídica é interlocutória, nesta situação não há previsão legal expressa a respeito da possibilidade de fixação de honorários.

Como se sabe, a decisão resolve apenas o incidente e não o processo executivo, que seguirá seu curso. Tanto é verdade que o legislador atribuiu de forma expressa a natureza de decisão interlocutória ao IDPJ, nos termos do artigo 136 do Código de Processo Civil.

Desse modo é dispensável a perquirição da causalidade e da sucumbência, porquanto a decisão de extinção de incidente não está presente no rol do artigo 85, caput e § 1º, do Código de Processo Civil.

Levando em consideração esses aspectos, afastada, de forma expressa, a natureza sentencial e não ressalvada a possibilidade de condenação em honorários advocatícios, essa pretensão revela-se juridicamente impossível.

Interpretação a contrário sensu, representaria um precedente perigoso para o Judiciário “legislar”, em manifesta violação a tripartição de funções outorgada pela Carta Magna.

Todo o poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição Federal, conforme expressa previsão em seu parágrafo único do artigo 1º.

Logo, a omissão do Legislativo quanto a previsão de honorários de sucumbência sobre o tema não é exatamente uma omissão. Ela expressa a vontade política da sociedade. Cabe a todos, e, também ao Judiciário, respeitar essa vontade.

In casu, volta-se aquela velha discussão sobre legalidade e legitimidade. Os membros do judiciário não são submetidos ao crivo da escolha popular para exercerem suas funções de modo vitalício, surgindo a necessidade de averiguar a legitimidade democrática dos magistrados para atuarem na omissão do Poder Legislativo, visto que a Constituição da República estabelece que o poder de legislar emana da vontade popular por meio do voto.

E, mais, conforme dito acima, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, é uma medida autônoma e excepcional, e, portanto, não deve ser tratado como uma demanda, que justifique a fixação de honorários.

Nesse compasso, rebatendo o argumento de que se trata de demanda jurídica de natureza incidental, o IDPJ é um remédio constitucional para preservar a ordem econômica e a função social da propriedade, e por conseguinte, a própria higidez financeira do mercado, exorbitando a esfera da demanda processual e a questão da causalidade/sucumbência.

O Direito não é um fenômeno isolado no mundo fático. É necessária uma reflexão e o auxilio das demais ciências como a economia na hermenêutica das normas jurídicas em face das complexidades no mundo dos negócios.

Com efeito, em face da tecnologia atual e das sofisticadas opções de capital de “guarda”, como criptomoedas, planejamentos sucessórios e offshore, a comprovação de fraudes e blindagens patrimoniais, são frequentemente complexas e envolvem a análise de diversos elementos, sendo, portanto, um desafio significativo, especialmente para credores tecnicamente hipossuficientes.

Em consequência, não é incomum defrontarmos com a dificuldade do credor, reunir provas robustas que demonstrem a intenção de fraudar, mesmo sendo ele uma grande organização, o que pode levar a julgamentos improcedentes.

A questão deveria ser vista sob outro ângulo: o combate a litigância predatória, tanto pelos devedores, como também aos credores.

Na casuística explorada, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica ajuizado de forma manifestamente infundada sem quaisquer indícios de prova quanto ao abuso da personalidade personalidade, deveria ser o alvo de sanções processuais e dos efeitos da causalidade e sucumbência, em defesa da própria lisura do certame processual e coerência dos dispositivos processuais.

Como corolário, o IDPJ recebido e processado com sérios indícios de abusos da personalidade jurídica, em que pese ter sido improcedente no final do certame, não pode acarretar o ônus da sucumbência ao credor sob pena de afetar a própria eficácia do instituto, enquanto remédio constitucional, e até mesmo, em última análise, dificultar o acesso à justiça, especialmente para credores em situações adversas, como hipossuficiência técnica, a dificuldade de fazer provas no âmbito do judiciário, como se vê em alguns julgados [4], dentre outros.

Até porque, não é incomum deparar para quem milita na recuperação de crédito o fato do credor obter evidências robustas para o êxito de seu IDPJ somente após o seu ajuizamento e da coerção judicial que obrigue o devedor a trazer as provas dos pressupostos de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, muitas vezes, protegidas pelo sigilo fiscal.

A discussão, portanto, transcende a questão da sucumbência, ora secundária e pequena face o direito ao acesso a justiça e da garantia a ordem econômica aqui elencada.

Deve-se aplicar a lei e não usar a lei. Há necessidade de equilíbrio nesse celeuma e acima de tudo, a defesa da preservação constitucional do acesso a justiça, da legalidade e da separação dos poderes.

O inimigo, portanto é outro; não é o credor diligente e responsável que para fins de satisfazer o seu crédito analisa e escolhe os meios processuais adequados para solver seu crédito e sim aquele que utiliza, na própria origem, esse instituto, de forma contrária a sua função constitucional, de forma predatória, merecedora de fato das devidas reprimendas processuais e do ônus da sucumbência.

A repreensão deve ser a litigância predatória, frisa-se na origem do ajuizamento do incidente, ou seja, na detida análise quanto a idoneidade dos indícios apresentados, se são capazes de levantar o véu da personalidade jurídica/possibilidade jurídica dos pedidos, e assim, estar apta para ser recebida e processada, daquelas, infundadas, que devem  ser tolhidos e indeferidas de plano.

O credor, ainda que vencido no final, busca apenas a satisfação de seu crédito, não podendo o Judiciário quedar-se indiferente com a dificuldade na comprovação de fraudes empresariais, que podem, comumente, ser a causa preponderante de insucesso nesse certame.

Afinal de contas, vigora em nosso ordenamento processual o princípio da primazia do julgamento de mérito, incluída a atividade satisfativa, nos termos do artigo 4º do Código de processo civil.

Em suma, o credor está apenas no exercício regular de direito visando a satisfação do seu crédito, não podendo, ser penalizado nos ônus da sucumbência ao advogado do seu devedor, por absoluta falta de previsão legal, e acima de tudo, por ser contrário aos mandamentos constitucionais aqui expostos.

Eis aqui uma reflexão quanto à necessidade de o Judiciário pensar nas consequências econômicas de seus atos; não somente em defesa da integridade da ordem constitucional, segurança jurídica, mas como dos seus impactos macroeconômicos.

Sobre o tema, leciona o mestre Canotilho [5]:

“a legislação seria execução da constituição, pertencendo aos tribunais ou a uma jurisdição constitucional fiscalizar a conformidade formal e material dos actos legislativos (princípio da constitucionalidade das leis)”

O acesso à justiça, a busca da primazia do julgamento de mérito, o princípio da legalidade, a defesa da ordem econômica e da função social da propriedade são fundamentos constitucionais de observância e validade a todo ordenamento jurídico.

Esperamos, assim, que a discussão restrinja-se ao free-rider, o irresponsável que se utiliza de forma predatória do processo, e não àquele credor que, embora vencido no certame de IDPJ, apenas exerceu um exercício regular de direito ao ver processado o seu pedido, sob pena de ineficácia do instituto, violação ao princípio da legalidade e de embaraços ao acesso à justiça e premiar, em contrapartida, a inadimplência e seus efeitos nefastos a ordem macroeconômica, como aumento no custo do crédito e recessão econômica.

 


[1] SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo Direito Societário. Malheiros editores. 2ª edição. Pág. 209.

[2] RAND, Ayn. A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged). Editora Sextante. 2º volume.

[3] REsp nº 2072206. Rel. min. Ricardo Villas Boas Cueva. Julgado em 13/02/25. Corte especial do E. Superior Tribunal de Justiça.

[4] TJ-SP; Apelação Cível 1106366-37.2023.8.26.0100; Relator (a): Elói Estevão Troly; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 28ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/01/2025; Data de Registro: 30/01/2025; Apelação Cível 1009907-93.2024.8.26.0566; Relator (a): Mendes Pereira; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Carlos – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/01/2025; Data de Registro: 29/01/2025.

[5] CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 219. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.

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