Fim da improbidade administrativa culposa: decisão deve permitir revisão de penas já transitadas em julgado
7 de março de 2025, 7h15
A recente apreciação do Tema 309 pelo Supremo Tribunal Federal, realizada em outubro de 2024, afirmou que o dolo é elemento indispensável à configuração de qualquer ato de improbidade administrativa, reconhecendo a inconstitucionalidade da modalidade culposa prevista nos artigos 5º e 10º, da redação originária da Lei nº 8.429/1992.
Sobre o assunto, em artigo publicado na ConJur, em 26 de dezembro de 2024, o professor Rafael Carvalho Rezende Oliveira teceu considerações sobre a (in)segurança jurídica ocasionada no julgamento do RE 656.558/SP, diante do impacto da decisão nas condenações por improbidade culposa ocorridas desde 1992, ano da promulgação da Lei de Improbidade Administrativa e anteriores à reforma da Lei 14.230/2021. Segundo a publicação, seria necessário aguardar os embargos de declaração opostos pelo Ministério Público de São Paulo, pendentes de julgamento, para que, na hipótese de manutenção da inconstitucionalidade da modalidade culposa, seja realizada uma modulação de efeitos, a fim de impossibilitar a propositura de ações rescisórias e garantir “a integridade e coerência das decisões da própria Suprema Corte a respeito do tema” [1].
Apesar da brilhante contribuição do professor neste artigo, pretendemos oferecer uma perspectiva diversa sobre a matéria, uma vez que a jurisprudência do STF, antes da decisão do Tema 309, demonstra um alinhamento com princípios constitucionais que rejeitam sanções desproporcionais e a aplicação punitiva baseada em culpa, em especial no âmbito do direito administrativo sancionador.
Debate sobre sanções da lei
Desde a edição da LIA em 1992, o Brasil enfrentou intensos debates sobre o alcance das sanções aplicáveis aos gestores públicos. A inclusão da improbidade culposa gerou profundas controvérsias, devido às severas penalidades impostas por erros administrativos sem dolo, cujo excesso sancionatório não apenas penalizava de forma desproporcional, mas também inibia a iniciativa e a tomada de decisão em funções públicas, com gravidade suficiente para sepultar carreiras políticas.
No Tema 897 de Repercussão Geral, o STF rejeitou a tese da imprescritibilidade do ressarcimento para os atos culposos, mantendo apenas para os dolosos (RE 852.475/DF, relator ministro Teori Zavascki, j. 3/3/2016). Essa decisão foi um marco ao distinguir de forma inequívoca a gravidade e os efeitos jurídicos entre atos cometidos com dolo, que evidenciam desonestidade e má-fé, de meros erros administrativos.
Posteriormente, na ADI 6678, o ministro Gilmar Mendes afastou a aplicação da suspensão dos direitos políticos para atos culposos, consolidando um movimento de revisão crítica que refletia a percepção de que a legislação vigente não respeitava plenamente os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (ADI 6678/DF, relator ministro Gilmar Mendes, j. 27/10/2021).
Improbidade culposa
Essa tendência culminou na promulgação da Lei nº 14.230/2021, que extinguiu a previsão de improbidade culposa. Contudo, a norma não abordou explicitamente os atos praticados sob a legislação anterior, suscitando questionamentos sobre a continuidade de ações judiciais que estavam em curso. Esses questionamentos não apenas destacavam a tensão entre a segurança jurídica e a eficiência normativa, mas também expunham um dilema fundamental: como assegurar o equilíbrio entre a retroatividade benigna sem criar uma insegurança jurídica? Seria legítimo, então, continuar penalizando gestores com base em uma modalidade de infração já extinta?

Em uma primeira resposta, o STF fixou tese no Tema 1.199 de Repercussão Geral, definindo que a nova lei poderia ser aplicada a processos ainda não transitados em julgado (ARE 843.989/PR, relator ministro Alexandre de Moraes, j. 8/4/2022). No entanto, essa orientação não exauriu a matéria e gerou uma nova indagação: se os gestores que tinham processos em andamento poderiam exigir a aplicação da nova lei, não teriam o mesmo direito aqueles cujos processos já se encerraram?
Essa argumentação não era despropositada. Pelo contrário. No direito penal, mesmo quem já esteja cumprindo pena é beneficiado pela extinção do crime pelo qual foi condenado. Como as punições da LIA consistem em uma modalidade do poder punitivo estatal, era razoável que seguissem a mesma lógica.
Assim, a tese recentemente fixada no julgamento do Tema 309 de repercussão geral trouxe uma solução definitiva para afirmar, enfim, a extinção integral da modalidade culposa, de modo a beneficiar também os agentes públicos condenados por sentença transitada em julgado.
Dolo é necessário para configuração
Na deliberação, encerrada em outubro de 2024, a Suprema Corte afirmou que “dolo é necessário para a configuração de qualquer ato de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da Constituição Federal), de modo que é inconstitucional a modalidade culposa de ato de improbidade administrativa prevista nos arts. 5º e 10 da Lei nº 8.429/92, em sua redação originária”.
Ainda que tardia, essa decisão possui dois efeitos centrais: um pedagógico, ao estabelecer que não se pode considerar ímprobo quem age sem intenção, sem dolo; e um prático, ao possibilitar a revisão de condenações já transitadas em julgado, cuja declaração de inconstitucionalidade reforça os limites ao poder punitivo estatal e reafirma os direitos fundamentais dos agentes públicos.
Podemos afirmar que, se o Tema 1.199 havia deixado uma lacuna ao restringir a aplicação da Lei nº 14.230/2021 aos atos de improbidade administrativa culposos sem condenação transitada em julgado, o Tema 309 afastou essa limitação e abriu um precedente significativo para a revisão de erros históricos e para a consolidação de uma doutrina jurídica mais coerente e justa.
Isso porque o artigo 525, § 15, do Código de Processo Civil admite a ação rescisória para desconstituir condenações baseadas em lei posteriormente declarada inconstitucional pelo STF, de modo que, após o trânsito em julgado do acórdão do Tema 309, todos aqueles condenados por ato culposo de improbidade poderão buscar no Poder Judiciário a rescisão das decisões condenatórias. Ou seja, terão tratamento idêntico àqueles que tinham processos em curso.
Correção de premissa no direito administrativo
O voto vencedor do ministro Dias Toffoli, no Tema 309, corrige ainda uma premissa equivocada no direito administrativo brasileiro, que por muito tempo confundiu negligência, imprudência ou imperícia com improbidade, ao ressaltar que “existem outros mecanismos jurídicos menos graves, inclusive na seara civil, mas ainda assim muitíssimo eficazes, para combater a conduta do agente que, não sendo desonesto, atua de maneira inábil, isso é, age com negligência, imprudência ou imperícia”.
Nesse contexto, ousamos dizer que a tentativa do Ministério Público de São Paulo de modulação de efeitos — para limitar os impactos do Tema 309 a processos em andamento — é contraproducente. Esse argumento, por mais importante que seja para fins acadêmicos, afronta diretamente o princípio da isonomia, ao perpetuar a desigualdade entre gestores que cometeram erros semelhantes, como também coloca em xeque a segurança jurídica ao sugerir que decisões baseadas em normas declaradas inconstitucionais possam permanecer vigentes.
Se foram necessárias décadas de amadurecimento jurisprudencial para reconhecer a inconstitucionalidade dos artigos 5º e 10 da LIA, não há fundamento jurídico legítimo para diferenciar condenados por improbidade culposa com processos em andamento daqueles cujas ações já se encerraram.
Portanto, decisão de declarar inconstitucional a improbidade culposa e possibilitar a correção de condenações equivocadas não apenas alinha a legislação à Constituição, como também deve ser celebrada como um marco na proteção dos direitos fundamentais e no fortalecimento da segurança jurídica.
[1] Oliveira, Rafael Carvalho Rezende. STF, inconstitucionalidade da improbidade administrativa culposa e segurança jurídica. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-26/stf-inconstitucionalidade-da-improbidade-culposa-e-seguranca-juridica/
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