Licitação, registro de preços de dois anos e realidade de mercado
7 de março de 2025, 11h19
A Lei nº 14.133/21 (Licitações e Contratos Administrativos) ampliou em seu artigo 84 o prazo máximo de vigência das atas de registro de preços para até dois anos. Essa mudança, que inicialmente parecia representar um avanço para a gestão pública, tem se revelado fonte de insegurança jurídica e conflitos diante da volatilidade de mercado.
Inovação legislativa e confronto com a realidade mercadológica
O legislador, ao possibilitar a vigência de atas de registro de preços por até dois anos, pretendeu reduzir o volume de procedimentos licitatórios e proporcionar mais estabilidade nas contratações públicas. No entanto, a prática tem demonstrado que essa extensão de prazo não pode ser utilizada para muitos dos objetos demandados pelos entes públicos.
A Lei 14.133/21, em seu artigo 18, estabelece claramente a obrigatoriedade de que, na fase de planejamento da contratação, sejam considerados aspectos técnicos e mercadológicos relevantes para a contratação específica. Entretanto, uma tendência ampliada da adoção do prazo máximo de dois anos em editais, sem análise mais acurada de particularidades dos objetos e condições de mercado, tem levado a problemas.
Limitação prática do Decreto nº 11.462/2023 e regulamentos similares
O Decreto nº 11.462/2023, que regulamenta o Sistema de Registro de Preços em âmbito federal, embora trate da “alteração ou atualização dos preços registrados” em seu artigo 25 e da “negociação de preços registrados” em seus artigos 26 e 27, não tem resolvido as situações com a eficácia esperada, pois uma “taxa” elevada de indeferimentos de pleitos das empresas tem sido constatada.
Máxima vênia, com relativa frequência ocorrem decisões com entendimento restritivo, sob o argumento de que oscilações de mercado constituem risco ordinário do negócio a ser suportado exclusivamente pelo “contratado”. Por exemplo, ainda que empresas apresentem provas robustas das alterações significativas nas condições econômicas, em muitos casos os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro são indeferidos, gerando considerável litigiosidade entre fornecedores e entidades públicas.
Essa posição vai contra a segurança jurídica, do artigo 5º da Lei nº 14.133/21, pois mesmo em edital com regras sobre alterações possíveis nas atas, no cenário prático, situações não são revertidas, de modo que parte dos registros de preços por dois anos tem se evidenciado como de alto risco para fornecedores.
Aquelas empresas que dependem de insumos de fabricação ou produtos integralmente importados, portanto, com sujeição à variação cambial, ficam dependentes de divergentes entendimentos, em um cenário de caso a caso, sobre o que seria oscilação normal ou excepcional, além de adicionais fatores de instabilidade por razões globais, de geopolítica e interferências logísticas e nos custos de operações do exterior, o que complica a manutenção de preços fixos por dois anos.
Por exemplo, no caso de equipamentos de defesa, de produtos médico-hospitalares e outros de tecnologia, cuja fabricação depende de componentes importados, certos problemas recentes foram verificados, o que se complica com o expressivo de custos de frete internacional, além da variação de câmbio significativa.
Mesmo que não seja o caso de citar precedentes, que se atualizam com certa frequência, há notória visão do Tribunal de Contas da União e de outros entes de controle externo pelo indeferimento de pleitos de aspectos ligados ao comércio exterior, na maioria dos casos, ao passo que o Superior Tribunal de Justiça e outros tribunais judiciais resguardam direitos das empresas com mais evidência, nos pleitos ligados a negócios com o governo.

De outro lado, lembre-se que mesmo a nível de Brasil a inflação de um lapso temporal de dois anos não tem sido coberta pelos normais reajustes contratuais, sendo que o pedido de reequilíbrio do que ficaria acima do patamar alcançado pelo reajuste, como algo excepcional, em muitos casos, não é entendido como situação de força maior ou das outras hipóteses para alteração de preços, mas apenas risco do negócio.
Isso tudo causa sérios conflitos entre empresas privadas e entes públicos, sendo oportuno notar que muitos regulamentos “subnacionais”, que são similares em conteúdo ao Decreto nº 11.462/2023 (federal), tem evidenciado os mesmos problemas práticos, enfim, com afastamento real da norma do artigo 37, inciso XXI, da Constituição (“mantidas as condições efetivas da proposta”).
Impactos eleitorais e mudanças de gestões
Outro aspecto relevante e pouco discutido refere-se ao impacto das mudanças políticas nas administrações municipais e estaduais sobre as atas de registro de preços. Com ciclos eleitorais a cada dois anos (alternando eleições municipais e estaduais e federais), as atas com vigência de dois anos inevitavelmente atravessarão períodos de transição política.
A experiência recente demonstra que as novas administrações, com frequência, mudam as prioridades, alteram planos de contratação de ano inteiro e, não raramente, forçam as empresas a “baixarem” valores de preços já registrados, ao argumento de negociação ou, do contrário, decisão pelo fim de atas da gestão anterior. Isso gera imprevisibilidade tanto para fornecedores quanto para as próprias entidades públicas.
Diretrizes para uma aplicação razoável do prazo de dois anos
Diante do cenário tratado, torna-se fundamental estabelecer diretrizes para uma aplicação razoável e juridicamente segura do prazo de dois anos para as atas de registro de preços.
Algumas sugestões incluem a análise casuística obrigatória, com a definição do prazo de vigência da ata precedida de análise técnica específica sobre a volatilidade histórica dos preços do objeto a ser contratado, com manifestação expressa sobre a adequação do prazo às condições mercadológicas atuais, e a diferenciação por categorias de bens e serviços, que tornam o prazo de dois anos até presumivelmente inviável, salvo justificativa técnica robusta em sentido contrário.
Por fim, é importante a mudança de linha de análise dos pleitos de reequilíbrio, para visão mais realista e próxima do que está ocorrendo no mercado, inclusive, sem indeferimentos sumários, ou seja, abrindo-se diligências para a empresa até complementar informações e documentos, para que se preserve a utilidade do processo e se alcance o fim legal, de viabilizar a manutenção do equilíbrio do ajuste.
Conclusão: necessidade de aplicação equilibrada e realista da legislação
A inovação trazida pela Lei 14.133/21, ao possibilitar atas de registro de preços com vigência de até dois anos, representa potencial avanço para a eficiência das contratações públicas, mas sua aplicação indiscriminada, sem consideração das particularidades de cada objeto e da volatilidade do mercado e seus aspectos reais, tem se revelado fonte de insegurança jurídica e ineficiência econômica.
Nesse cenário, é essencial que gestores públicos não apliquem a regra dos dois anos com amplitude sem prévias e detidas reflexões, considerando, inclusive, o mandamento do artigo 18 da Lei nº 14.133/21, que exige consideração dos aspectos mercadológicos na fase de planejamento da contratação.
Por fim, é importante a revisão de entendimentos administrativos restritivos quanto aos pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro, reconhecendo que em um ambiente de alta volatilidade econômica, a manutenção do equilíbrio contratual não representa favor ao contratado, mas garantia do próprio interesse público na continuidade e qualidade das contratações.
Somente a aplicação equilibrada e realista da legislação, sensível às particularidades de cada contratação e às condições concretas do mercado, trará o potencial de eficiência e segurança jurídica prometido pela reforma do sistema de licitações brasileiro.
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