Virtualização subverte objetivos da audiência de custódia, que completa dez anos
6 de março de 2025, 8h52
Criado para resguardar garantias fundamentais e dar maior segurança aos processos criminais, o instituto da audiência de custódia completou dez anos na semana passada sob a sombra da virtualização e com questionamentos à sua eficácia prática.

Maioria das audiências de custódia foi feita de forma virtual, o que contraria seus próprios objetivos
Dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que houve mais de dois milhões de audiências desde 2015, e que, em 59% dos casos, as prisões foram mantidas. Foram mais de 150 mil situações em que foram constatadas tortura e violência (7% do total).
Em um recorte mais recente, de dados de audiências feitas desde agosto do ano passado, a maioria (54%) delas foi, no entanto, virtual, o que subverte seus próprios objetivos, dizem advogados, defensores e magistrados entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
A digitalização crescente, além de ir de encontro à proposta da audiência, que é colocar o acusado frente a frente, fisicamente, com a autoridade da magistratura, também passa por cima do que o Supremo Tribunal Federal decidiu em 2023 (ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305). Os ministros afirmaram, em meio à discussão sobre o juiz das garantias, que a audiência de custódia só seria virtual “em caso de urgência”.
“O afastamento do juiz e do promotor da pessoalidade do advogado e do acusado desumaniza a Justiça. É só um rostinho em uma tela, e quando estamos tratando de audiência de custódia isso tem um impacto severo”, diz Guilherme Carnelós, criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
“Essa pessoa (que passa pela audiência virtual) é colocada em uma sala com uma câmera para poder falar se ela sofre um abuso. Ela não tem a segurança de falar o que quiser. O carcereiro está ali do lado. Perde o sentido da audiência de custódia e vira só mais um passo burocrático rumo à condenação. E, se for para ser só mais um passo da burocracia, tem algo errado.”
Além de descumprir a determinação do STF, a profusão de audiências virtuais também atropela o Código de Processo Penal, que determina que a norma seja cumprida presencialmente, até 24 horas depois da prisão. É obrigatória a presença de um advogado ou defensor público, e de um membro do Ministério Público. A ConJur ouviu relatos, no entanto, de que muitas vezes a promotoria não comparece e argumenta com um documento genérico, em geral, pedindo a conversão da prisão em preventiva.
Se por um lado houve avanços na implementação da audiência de custódia, por outro há discussões sobre seu alcance e até sobre o conteúdo dos diálogos entre o preso em flagrante e a autoridade judiciária, afirma o advogado criminalista Yuri Félix, conselheiro seccional da OAB-SP.
“Algumas vezes em audiência de custódia são debatidas questões de mérito que envolvem o objeto da acusação. ‘O senhor roubou ou não roubou? Participou ou não participou?’. Isso não é discussão que visa avaliar se os requisitos da prisão cautelar estão presentes”, diz o advogado.
“Dependendo do que é dito, isso será utilizado quando houver a discussão de mérito e, na maioria das vezes, não benéfica ao réu.”
Para Félix, a virtualização das audiências de custódia corrói os direitos fundamentais do acusado e acaba suprimindo a única forma de contato com a autoridade judiciária, em que o preso poderia expor sua versão dos fatos. “É um direito fundamental estar pelo menos uma vez diante da autoridade que irá julgá-lo. E a autoridade também, para que alcance uma maior fidedignidade do que será julgado”, diz.
O desembargador Marcelo Semer, que integrou a 13ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo até semana passada (ele faz parte agora da 10ª Câmara de Direito Público), diz que o contato direto do magistrado com o acusado “ajuda muito na decisão sobre a custódia cautelar — que agora é tomada após contraditório”.
“As audiências devem ser ampliadas, garantindo-se que, salvo impedimento concreto, sejam sempre presenciais, e havendo maior atenção dos juízes quanto a questões ligadas aos casos de violência.”
Mera formalidade
Em 2023, o STF decidiu que todos os tipos de prisão devem observar, obrigatoriamente, a audiência de custódia. A Reclamação 29.303 foi ajuizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro e seus efeitos foram vinculantes. Responsável pela ação, o defensor público Eduardo Newton teme, todavia, que o procedimento tenha se tornado mera burocracia para o percurso do acusado à prisão.
“Tenho a sensação de que se tornou apenas um ritual de passagem, para indicar que o acusado está entrando no sistema prisional” diz Newton.

Tráfico e furto são os tipos penais mais registrados em audiências de custódia
Ele cita um caso que exemplifica a transformação da audiência em mero ato formal, o Processo 0151479- 95.2024.8.19.0001, em que o juiz, mesmo com a constatação da prescrição executória da pena do acusado, manteve sua prisão. O magistrado argumentou que a audiência examina apenas questões administrativas, e não judiciais.
O defensor cita que o caso ilustra outro ponto que acabou subvertido: a tentativa de desjudicialização e de economia do Judiciário com as audiências. Em 2015, o então ministro do STF Ricardo Lewandowski afirmou que o instituto poderia gerar R$ 4,3 bilhões anuais de economia aos estados. De lá pra cá, todavia, a população carcerária não teve mudança substancial, e o país continua com a terceira maior quantidade de presos no mundo, o que onera os cofres públicos.
“Se olharmos o percentual de conversões (de flagrante para preventiva), a lei não pegou para esse fim, de fazer o Estado economizar”, sentencia Newton.
O advogado Davi L. Szuvarcfuter, do escritório Bottini & Tamasauskas, corrobora a apreensão de que a audiência de custódia tem caminhado para se tornar apenas um rito de passagem do acusado para a prisão.
“O que vemos na prática é que o juiz acaba ignorando tudo. A única pergunta que ele faz, por uma preocupação com a Lei de Abuso de Autoridade, é checar se houve violência. Muitas vezes, o laudo do Instituto Médico Legal não chega a tempo da audiência, então fica pela palavra do preso. Mas, fora isso, nenhuma análise é feita”, diz.
Newton e Szuvarcfuter também enxergam mais traços negativos do que positivos em relação à virtualização.
“Saímos de um extremo, aquela burocracia toda, para outro extremo, que é um encantamento com o virtual. Esquece-se que o objetivo da prestação jurisdicional é encarar no olho o preso”, afirma o defensor.
Mudou, mas nem tanto
Para quem dispõe de advogado particular, diz Carnelós, do IDDD, a virtualização das audiências pode ter um impacto menor, ainda que a prática continue sendo contraditória à natureza do instituto.
No caso das defensorias, que assumem as defesas de parte considerável dos infratores, muitas vezes não há pessoal para uma atuação mais fiscalizatória, insistindo para que o juiz analise a petição. Os juízos, dessa forma, tendem a manter as prisões, o que mostra que as mudanças provocadas pelas audiências, na prática, ainda são tímidas.
Além da economia bilionária citada pelo ministro aposentado Lewandowski, atual comandante do Ministério da Justiça, um dos objetivos da criação das audiências era o desencarceramento, o que também não surtiu efeito.
Prova disso é o enorme contingente de presos provisórios, que não arrefeceu nos últimos dez anos. Em 2016, havia pouco mais de 230 mil presos sem julgamento, levando em conta o sistema carcerário e as prisões domiciliares; em 2024, cerca de 215 mil pessoas estavam presas provisoriamente. O número total também não mudou muito, e gira em torno de 800 mil presos.
Os dados são dos relatórios de informações penais da Secretaria Nacional de Políticas Penais. Cada preso custa aos cofres públicos entre R$ 2 mil e R$ 3 mil mensais.
Os recortes de tipificação também mostram que as audiências não têm cumprido seu papel: segundo o CNJ, tráfico de drogas e furto correspondem a 37% de todas as audiências de custódia feitas desde agosto de 2024. No sistema carcerário, quase 200 mil pessoas estão presas por tráfico ou associação, enquanto outras 70 mil estão privadas de liberdade por conta de furto.
A título de comparação, a soma de todos os encarcerados por crimes contra a pessoa (homicídio, violência doméstica, lesão corporal etc.) resulta em 126 mil presos. “Se o Estado é capaz de criar uma estrutura repressiva, ele tem de criar a estrutura correspondente para garantir direitos”, afirma Carnelós.
Dados das audiências de custódia
— Desde 2015, foram feitas mais de dois milhões de audiências, segundo o CNJ;
— Na série histórica, em 59% das audiências, as prisões foram mantidas e, em 41%, os acusados foram soltos;
— Em 153 mil casos, foram constatados relatos de tortura e violência por parte das autoridades;
— De agosto de 2024 para cá, foram 357,4 mil audiências de custódia;
— Neste recorte, a maioria das audiências de custódia (54%) foi virtual;
— Tráfico de drogas (34%), furto (13%) e violência doméstica (7%) são os tipos penais que mais foram computados nas audiências
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!