Opinião

Plano Diretor: entenda como ele pode valorizar ou desvalorizar seu imóvel

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6 de março de 2025, 19h16

O Plano Diretor é um instrumento fundamental para o planejamento urbano das cidades, impactando diretamente a propriedade privada. Ele pode valorizar ou desvalorizar imóveis ao estabelecer regras que influenciam diretamente o parcelamento, o uso e a ocupação do solo. Mas até que ponto essas mudanças afetam seu patrimônio? 

A visão da propriedade privada urbana no Brasil, até os dias atuais, preserva muitos elementos das raízes profundas cravadas pelo cearense Clóvis Beviláqua no Código Civil de 1916, que regeu a vida dos brasileiros por mais de 80 anos e atravessou praticamente incólume seis constituições, desde textos autoritários até os mais garantistas. 

A rigor, inspirado no Código Napoleônico e seguindo a tradição liberal da época, Beviláqua estabeleceu a propriedade privada como um direito absoluto, conferindo ao seu titular os poderes plenos de usar, fruir, dispor e reivindicar, assegurando-lhe amplo domínio sobre o bem. 

O conceito de propriedade privada, conforme estabelecido no Código Civil de 1916, distanciava-se da ideia moderna de função social da propriedade, princípio este que só foi plenamente consagrado na Constituição de 1988. A função social da propriedade, especialmente a função social da propriedade privada urbana, teve no Brasil seu embrião, ainda que de forma incipiente e sem aplicabilidade prática, nas Constituições de 1934 e 1946. O debate sobre o tema foi aprofundado no Congresso de Quitandinha, em 1947, onde se discutiu o papel do Estado na regulamentação da propriedade privada em prol do interesse coletivo. Esse conceito passou por uma mudança paradigmática com a edição da Constituição de 1988. 

Em linhas gerais, pode-se afirmar que, por opção do Poder Constituinte Originário, a propriedade privada urbana, para ser reconhecida como tal e para que seu titular exerça plenamente os poderes a ela inerentes, deve atender à função social e ambiental (GRAU, 2010, p. 316)i. Essa exigência encontra sua fundamentação política e instrumental no Plano Diretor, conforme interpretação lógica e sistemática dos artigos 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º e 225 da Constituição Cidadã de 1988.  

Essa concepção foi consolidada após a edição do Estatuto da Cidade, em 2001, e do Código Civil, em 2002. Do artigo 39 do Estatuto da Cidade e do § 1º do artigo 1.228 do Código Civil, extrai-se que a função social da propriedade urbana somente será atendida quando forem observadas as diretrizes estabelecidas no Plano Diretor. Este, por sua vez, deve assegurar, no mínimo, o atendimento das necessidades dos cidadãos em relação à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas no território das cidades brasileiras.  

Deve-se salientar, ainda, que o Plano Diretor é obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes, bem como para municípios que integram regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, como Guarulhos (SP) e São Gonçalo (RJ). A exigência também se aplica a localidades de interesse turístico, como Paraty (RJ) e Porto de Galinhas (PE), visando à preservação do patrimônio histórico e ambiental. Além disso, municípios impactados por grandes empreendimentos ou atividades de significativo impacto ambiental, como Suape (PE) e São Francisco do Conde (BA), devem elaborar o Plano Diretor. Por fim, a obrigatoriedade inclui cidades vulneráveis a desastres naturais, como Petrópolis (RJ) e Blumenau (SC), onde há riscos frequentes de deslizamentos e inundações. 

Dito isso, para compreender como o Plano Diretor pode afetar o seu imóvel, é essencial destacar que o presente estudo aborda as limitações e flexibilizações urbanísticas e ambientais que podem impactar diretamente a propriedade privada em decorrência das diretrizes estabelecidas pelo Plano Diretor e pelas legislações acessórias, haja vista que estabelecem as diretrizes para o parcelamento, o uso e a ocupação do solo, bem como para o zoneamento urbano e ambiental, além dos instrumentos urbanísticos aplicados ao território das cidades. Assim, os regramentos definidos nesses dispositivos podem tanto limitar quanto potencializar as capacidades econômicas de um imóvel e da área em que ele se encontra inserido. 

Para uma melhor compreensão, apresentaremos situações hipotéticas que demonstram como as normas urbanísticas podem restringir ou ampliar os ganhos econômicos das propriedades privadas. 

Casos práticos: perda e valorização do imóvel do parcelamento do solo 

Sabe-se que, além das disposições da Lei Federal nº 6.766/1979, que estabelece normas gerais sobre o parcelamento do solo urbano, aplicam-se também, de forma objetiva, as legislações municipais de planejamento urbano. 

Situação A – limitação da ocupação do solo 

Imagine que você seja proprietário de um terreno urbano que ainda não foi objeto de parcelamento — ou seja, sua subdivisão em lotes destinados à edificação, com ou sem aproveitamento do sistema viário existente, ainda não ocorreu. Sendo assim, você é titular de uma gleba urbana.

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Suponha que essa gleba, embora localizada em uma região de urbanização consolidada, ainda possua áreas parcialmente ocupadas e contenha atributos ambientais relevantes. Além disso, encontra-se inserida em uma zona que margeia uma área de preservação dos ecossistemas e dos recursos naturais, como faixas de proteção de recursos hídricos ou áreas litorâneas. 

Agora, imagine que uma alteração no Plano Diretor, acompanhada de uma nova legislação municipal de parcelamento do solo, passe a considerar essa área essencial para a recuperação ambiental da região. Com isso, são impostas restrições ao uso e à ocupação do solo, proibindo-se a realização de novos parcelamentos. Como consequência, apenas as glebas anteriormente loteadas podem ser ocupadas, enquanto aquelas que ainda não passaram por esse processo ficam impedidas de parcelamento e ocupação. 

A legislação urbanística local, a Lei Federal nº 6.766/1979 e o Código Civil (artigo 1.299) estabelecem que nenhum imóvel urbano pode ser ocupado irregularmente. O parcelamento do solo deve ser aprovado e registrado, garantindo o ordenamento territorial, a infraestrutura adequada e o respeito às diretrizes do Plano Diretor. Além disso, o parcelamento clandestino do solo no Brasil é considerado crime, sujeito a pena de reclusão de um a quatro anos e multa. Na forma qualificada, a pena pode chegar a cinco anos de reclusão, conforme disposto no artigo 50 da Lei nº 6.766/1979.  

Dessa forma, uma única decisão de política urbana pode impactar drasticamente o valor econômico de um terreno, refletindo a prevalência do interesse público urbanístico-ambiental sobre o interesse particular, em respeito à função socioambiental da propriedade. 

Situação B – flexibilização para promoção da habitação 

Agora, suponha que, em vez da restrição mencionada na situação A, uma nova decisão de política de desenvolvimento urbano altere o Plano Diretor e a legislação municipal de parcelamento do solo, inserindo a área da gleba em um zoneamento destinado à promoção de habitação de interesse social. 

Com essa mudança, são estabelecidas condições que incentivam o parcelamento do solo para a implementação de projetos habitacionais voltados à população de baixa renda, como os empreendimentos do programa Minha Casa, Minha Vida. Nesse contexto, o regramento urbanístico não apenas flexibiliza parâmetros de ocupação do solo, como também reduz as exigências relativas à destinação de áreas públicas para zonas verdes e equipamentos institucionais. Além disso, há diminuição das exigências de infraestrutura viária e a possibilidade de emissão simultânea de licenças urbanísticas e autorizações para obras de infraestrutura. 

Dessa forma, a nova política urbana agregaria valor direto ao terreno, tornando-o economicamente mais atrativo e facilitando sua comercialização para incorporadoras e construtoras interessadas em explorar o potencial habitacional da área. Além do aumento no valor da terra, o proprietário se beneficiaria de um trâmite administrativo mais ágil, acelerando a viabilização de projetos imobiliários. 

Do direito de construir 

O direito de construir não é absoluto. Ele deve ser interpretado à luz da constitucionalização do Direito Civil e da política urbana, bem como da obrigatoriedade do respeito à função socioambiental da propriedade urbana. A leitura conjunta da Constituição Federal (artigos 170, III, 182, § 2º, 216, V, 225), do Código Civil (artigo 1.229) e do Estatuto da Cidade (artigo 2º, XII) leva à conclusão de que o proprietário pode exercer seu Direito de Construir para edificar em seu terreno conforme seus interesses, desde que respeite os regulamentos urbanísticos, ambientais e administrativos. Assim, o titular de um imóvel não pode exercer esse direito de forma irrestrita, mas sempre dentro dos limites do interesse público e da função socioambiental da propriedade urbana. 

Situação A – restrição ao direito de construir 

Imagine que você seja proprietário de um imóvel urbano localizado em uma área central, com ocupação consolidada, e situado nas proximidades de bens públicos ou privados de valor histórico, artístico e cultural. Você é proprietário desse imóvel há mais de duas décadas, mantém o pagamento de todas as obrigações tributárias em dia e deseja construir um prédio residencial, utilizando a totalidade dos parâmetros urbanísticos permitidos pelo zoneamento vigente, em especial o gabarito (altura máxima permitida para edificações), que, no caso hipotético, é de 50 metros. 

Contudo, no momento em que realizava a análise de viabilidade econômica e financeira do empreendimento, sem ainda ter solicitado o licenciamento urbanístico e ambiental, a municipalidade aprova uma alteração no Plano Diretor e na legislação municipal de uso e ocupação do solo. Com essa modificação, a área onde se encontra o imóvel passa a ser classificada como zona especial de preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural, impondo novas limitações urbanísticas para proteger a paisagem e os bens arquitetônicos históricos da cidade. 

Dentre as restrições aplicadas, há limitações quanto à altura, volumetria e tipologia arquitetônica das construções. A altura máxima permitida, que antes era de 50 metros, passa a ser de apenas 20 metros, visando evitar que novas construções descaracterizem conjuntos arquitetônicos tombados e comprometam a paisagem urbana original. 

Como resultado, o seu projeto arquitetônico torna-se inviável, gerando impactos econômicos significativos na rentabilidade do seu modelo de negócio. Diante dessa situação, você pode questionar: “Eu não teria direito adquirido? Meu imóvel foi adquirido antes da alteração legislativa. Essa mudança pode afetar meu direito de construir?” 

A resposta é que você deverá cumprir as novas determinações legais, pois não havia obtido uma licença de construção antes da alteração normativa. O direito adquirido, embora previsto no § 2º do artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), não se aplica automaticamente ao direito de construir, o que gera debates doutrinários sobre o tema. 

A jurisprudência majoritária do Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado de que o Direito de Construir não é elemento intrínseco à propriedade, mas sim um desdobramento do “ius utendi” (direito de usar), estando sujeito às limitações urbanísticas, ambientais e administrativas (RE 178.836, relator: Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ 20/8/1999). 

Contudo, há uma situação em que o direito adquirido pode ser reconhecido, a saber, o instituto do “direito de protocolo”, consolidado pela doutrina, jurisprudência e legislação local de cidades como São Paulo. Esse instituto possibilita a aplicação ultrativa da legislação vigente no momento do protocolo do pedido administrativo, mesmo que posteriormente sejam editadas normas urbanísticas e ambientais mais restritivas ao direito de construir. 

O direito de protocolo configura um mecanismo vinculado ao direito adquirido ao direito de construir, fundamentado nos padrões admitidos pela legislação vigente no momento do protocolo do pedido, mesmo que, após a tramitação administrativa e/ou a emissão do alvará de construção, sobrevenha nova legislação mais restritiva a esse direito de construir. Esse instituto decorre da necessidade de garantir a segurança jurídica, a boa-fé objetiva e a proteção da confiança legítima, princípios consagrados na Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, XXXVI), no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), na Lindb (artigos 23 e 30) e na Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019).  

Apesar de sua relevância para a estabilidade das relações urbanísticas, sua aplicação tem gerado controvérsias, sendo objeto de análise pelos tribunais superiores. A jurisprudência reconhece que o direito de protocolo pode ser considerado uma expressão prática do direito adquirido, desde que o requerente tenha ingressado com o pedido de licenciamento sob a legislação vigente e cumprido os requisitos normativos exigidos. Contudo, esse instituto não é absoluto, devendo ser avaliado caso a caso, especialmente quando houver impacto em normas de interesse público, como as de proteção ambiental, conforme decisões do STF (RE 1.254.786/SP; ARE 1.469.756/SP; ARE 1.516.730/SP), STJ (AgInt no AREsp 1.227.040/SP; AgInt no AREsp 1.884.087/SP) e TJ-SP (ADI 2028122-62.2018.8.26.0000; Apelação Cível 1043020-10.2019.8.26.0053). 

Ressalte-se, no entanto, que essa proteção não se aplica a processos administrativos irregulares ou que contenham vícios que possam levar à anulação da licença. Além disso, caso haja uma revogação da licença por interesse público, a municipalidade poderá fazê-lo mediante indenização ao proprietário. 

Situação B – flexibilização e valorização do direito de construir 

Agora, imagine que você seja o mesmo proprietário do imóvel descrito na Situação A, com o mesmo projeto de um edifício residencial, planejado para atingir 50 metros de altura. Considerando que, para um prédio de múltiplos apartamentos, a altura média dos pavimentos é de 3 metros por andar, seu edifício teria 15 andares residenciais + térreo, totalizando 16 andares. 

No entanto, dessa vez, uma nova decisão de política urbana amplia os parâmetros urbanísticos da área. A alteração no Plano Diretor e na legislação de uso e ocupação do solo reclassifica a região, inserindo-a em uma poligonal de zoneamento especial voltada à descentralização do desenvolvimento urbano, à equidade na distribuição de oportunidades econômicas e à sustentabilidade urbana e ambiental. 

Esse novo zoneamento flexibiliza os parâmetros urbanísticos, permitindo edificações de até 90 metros de altura. 

Dessa forma, você pode revisar seu projeto para maximizar o potencial construtivo da gleba, o que resultaria na possibilidade de construir um edifício de até 90 metros de altura, com 28 andares residenciais + térreo, totalizando 29 andares. 

Em comparação ao projeto anterior (50 metros, 16 andares), essa mudança permite a construção de 13 andares adicionais, aumentando a densidade habitacional e ampliando o potencial de retorno econômico sobre o investimento imobiliário. 

O impacto do plano diretor na vida e no bolso do proprietário 

Sem a pretensão de esgotar o tema, este artigo busca provocar reflexões e incentivar a pesquisa sobre doutrina e jurisprudência no campo do Direito Urbanístico. Nosso objetivo é demonstrar a relevância prática das previsões contidas na legislação urbanística e ambiental, especialmente aquelas estabelecidas no Plano Diretor e nas normas correlatas. 

O impacto das decisões políticas no planejamento urbano manifesta-se diretamente na vida dos cidadãos, pois a cidade é o espaço onde se desenrolam todas as relações humanas, econômicas e sociais. O acesso à terra urbanizada e a efetivação do direito à cidade e ao desenvolvimento sustentável  são desafios centrais para a promoção da  justiça social urbana. 

Contudo, como bem afirmou Delfim Netto, ”a parte mais sensível do corpo humano é o bolso”. Dessa forma, este artigo destaca como as políticas urbanas — em especial aquelas relacionadas ao Plano Diretor e aos processos de sua revisão — podem impactar diretamente o sentimento de propriedade privada, influenciando tanto sua valorização quanto a eventual perda de potencial econômico. 

Por fim, o artigo reforça a importância da participação ativa da população na formulação das diretrizes urbanísticas. Afinal, o princípio da gestão democrática da cidade, consagrado no Estatuto da Cidade, confere aos cidadãos o direito e o dever de influenciar os rumos do espaço urbano em que vivem. 

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