Garantias do Consumo

Lei nº 15.100/25 proíbe aparelhos eletrônicos pessoais na educação básica em prol dos hipervulneráveis

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6 de março de 2025, 10h33

O uso de equipamentos eletrônicos intensificou-se nas últimas décadas, sobretudo no decorrer do contexto pandêmico, que ocasionou o isolamento dos sujeitos. O ambiente digital tornou-se extremamente necessário para a interação e a sobrevivência humana, mas também terminou agravando as consequências negativas, dentre as quais, a utilização desmedida e viciada dos referidos aparelhos. Sem embargo, desde o ano 2014, a American Psychiatric Association vem  discutindo o que se intitula de nomofobia, ou seja, o transtorno compulsivo pela imprescindível presença de tais instrumentos [1]. Trata-se de termo cunhado, em 1945, pelo antropólogo australiano John Arundel Barnes, para se referir aos laços fortes na interação entre os indivíduos que compunham as redes da sociedade. Diante do incremento desta grave situação, no ano 2018, a Organização Mundial de Saúde classificou a malfadada moléstia. No envolver do atual século, o cenário alastrou-se de forma tal que o apego doentio aos sobreditos aparatos passou a atingir todos os seres humanos, desde as mais tenras idades.

Os reflexos no ensino-aprendizagem de crianças e adolescentes, engendrados pelo exorbitante manuseio de equipamentos eletrônicos pessoais, são irrefragáveis, razão pela qual, em 2023, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, no Relatório de Monitoramento Global da Educação, apontou preocupação perante a problemática. De acordo com a Unesco, dados fornecidos pelo Programme for International Student Assessment (Pisa) desvelam “uma correlação negativa entre o uso excessivo das Tecnologias de informação e comunicação (TIC) e o desempenho acadêmico”. Aponta a entidade que “a simples proximidade de um aparelho celular era capaz de distrair os estudantes e provocar um impacto negativo na aprendizagem em 14 países” e alerta que “a tecnologia pode ter um impacto negativo se for inadequada ou excessiva” [2]. Nessa senda, assevera que uma média de 25% dos países já vedaram o uso de tais instrumentos eletrônicos nas instituições educacionais.

O uso da tecnologia pelos estudantes em salas de aula e em residências, segundo a Unesco, “pode ser uma distração, prejudicando a aprendizagem”, pois os dados do Pisa indicam “uma associação negativa entre o uso das TIC e o desempenho dos estudantes acima do limiar de uso moderado”. De acordo com a organização, os professores “entendem o uso de tablets e telefones como algo que prejudica a gestão da sala de aula”, porquanto “mais de um em cada três professores em sete países participantes do ICILS 2018 concordaram que o uso das TIC em salas de aula distrai os estudantes”. Enuncia que a aprendizagem online apoia-se “na habilidade do estudante de se autorregular e pode colocar os estudantes com menor desempenho e os mais novos em risco cada vez maior de abandono escolar” [3]. Os perigos e as desvantagens do uso imoderado de aparelhos eletrônicos, nas instituições de ensino, conduziram diversos países à previsão de regras limitadoras [4].

Os debates e as discussões acerca do panorama vivenciado ensejaram referência no Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, apresentado em 2024. Neste documento, a OCDE corrobora a advertência concernente à gravidade da nomofobia no setor educacional devido aos malefícios causados para as crianças e os adolescentes [5]. Na União Europeia,  a despeito de inexistir um procedimento único para os 27 países integrantes do bloco, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, aduz que se tenciona instituir uma política para minimizar o uso de celulares nas salas de aulas [6]. Itália, França, Espanha, Grécia e Suécia já dispõem de regras limitadoras sobre a questão em virtude da elevada quantidade de problemas identificados. A Inglaterra também vem restringindo o manuseio ilimitado de tais instrumentos no setor educacional, e como aponta Miriam Rahali, pesquisadora do Departamento de Mídia e Comunicação da London School of Economics, deve haver uma “maior vigilância sobre o uso” [7].

O apego excessivo dos infantes e dos adolescentes aos aparelhos eletrônicos é perceptível nas diversas partes do mundo, influenciando no desempenho das atividades escolares; o que causa resultados negativos.  Nos Estados Unidos, vários estados propuseram medidas restritivas, como se observa com Utah, Ohio, Arkansas, Louisiana, Texas, Montana, Mississípi, Virgínia, Texas e Flórida [8]. Da mesma forma, o México optou pela adoção de providências destinadas a limitar a utilização dos aludidos instrumentos no âmbito dos estabelecimentos educacionais, demonstrando o cuidado e o zelo com os estudantes. Dado o amplo consenso relativo aos efeitos maléficos do uso excessivo destes equipamentos no campo escolar, no Brasil, em 2024, iniciou-se a tramitação do Projeto de Lei nº 4.932/2024, cujo objeto era a disciplina da matéria e a prevenção de danos ao aprendizado, com enfoque na saúde dos discentes [9].

Na trilha dos demais países, em 13 de janeiro de 2025, o Brasil editou a Lei nº 15.100, que dispôs sobre a utilização, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais nos estabelecimentos públicos e privados de ensino, iniciando-se a sua vigência em caráter imediato [10]. Encontra-se composta por um exíguo conjunto de cinco artigos que versam sobre o objetivo projetado, o campo de incidência normativa, as exceções quanto à vedação e as estratégias para o tratamento da temática. A intenção do legislador é “de salvaguardar a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes” diante do uso exacerbado de equipamentos eletrônicos [11]. Nota-se que a coibição não se restringe aos telefones celulares e estende-se a todo e qualquer equipamento que possa ser trasladado pelos infantes e jovens para o seu uso próprio. Ademais, a sistemática, a ser adotada, abrange todos os estabelecimentos de ensino, públicos e privados, que ministrem a educação básica [12].

Em consonância com o artigo 21, inciso I, da Lei nº 9.394/96, que disciplina as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a educação básica é composta pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Com efeito, observa-se que a Lei nº 15.100/25  não se aplica à educação superior executada pelas universidades e faculdades, em sede de graduação e pós-graduação, latu sensu e/ou stricto sensu. Ainda no que concerne à seara de aplicação, importante salientar que, conforme o parágrafo único do artigo 1º da novel lei, a coibição refere-se a todos os espaços escolares em que são desenvolvidas atividades pedagógicas, sob a orientação de profissionais de educação, considerando-os como “sala de aula”. Além de delimitar o aspecto espacial da incidência normativa, no artigo 2º, o legislador disciplinou a vertente temporal, eis que não se circunscreveu a proibir o manejo dos equipamentos eletrônicos tão somente durante as aulas, pois o vetou no recreio ou intervalos entre estas.

Limitações coadunam-se com a proteção do consumidor hipervulnerável

Admite-se o manuseio, em sala de aula, nos termos do § 1º, para fins estritamente pedagógicos ou didáticos, conforme orientação dos profissionais de educação. Foram previstas exceções no § 2º daquele mesmo dispositivo e no artigo 3º, incisos I a IV, que podem ser agregadas em três blocos interligados com os direitos fundamentais: 1) resguardo da incolumidade do sujeito; 2) a inevitabilidade; e 3) a necessidade por questões de saúde. Excepcionou-se a vedação para as situações de estado de perigo, estado de necessidade ou caso de força maior [13], visto que justificam a utilização do equipamento. A garantia da acessibilidade, da inclusão [14] e do atendimento às condições de saúde dos estudantes pressupõe a liberação do uso dos multicitados instrumentos. Não se pode olvidar que as limitações impostas, quanto aos estabelecimentos privados de ensino, coadunam-se com a proteção dos consumidores hipervulneráveis, nos termos dos artigos 4º, inciso I [15], e 39, inciso IV, do CDC [16].

Propugna o artigo 4º, §§ 1º e 2º, da Lei n.º 15.100/25, que as redes de ensino e as escolas elaborem estratégias para tratar do tema do sofrimento psíquico e da saúde mental dos estudantes da educação básica. O foco será a informação sobre os riscos do uso imoderado dos aparelhos eletrônicos, inclusive celulares, e do acesso a conteúdo impróprio, bem como treinamentos periódicos para a detecção, a prevenção e a abordagem dos sinais sugestivos [17]. Previu-se ainda a disponibilização de espaços de escuta e de acolhimento para o atendimento daqueles que estejam sendo afetados, principalmente pelo uso imoderado de telas e pela nomofobia [18]. Na esfera educacional privada, o Código de Defesa do Consumidor resguarda a saúde e a segurança dos destinatários finais. Preconiza diligência e atenção acentuadas para os hipervulneráveis, categoria na qual se encaixam as crianças e os adolescentes, e atribui o dever de o poder público fiscalizar os serviços prestados. Entrementes, a efetividade da legislação dependerá da contribuição de todos os atores, incluindo-se não somente os prestadores das atividades de ensino, mas também das famílias e da sociedade em geral perante a gravidade da questão.

 


[1] Cf.: AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM-5. Tradução de Maria Inês Corrêa Nascimento et al. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. 948 p. KING, A. L. S. et al. Nomophobia: Dependency on virtual environments or social phobia? Computer in Human Behavior, v. 29, p. 140-144, 2013. BRAGAZZI, N. L.; DEL PUENTE, G. A proposal for including nomophobia in the new DSM-V. Psychology Research na Behavior Management, v. 7, p. 155-160, 2014.

[2] UNESCO.  A tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?  Relatório de Monitoramento Global da Educação, 2023, p. 8. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000386147_por/PDF/386147por.pdf.multi. Acesso em: 19 jan. 2025.

[3] UNESCO.  A tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?  Relatório de Monitoramento Global da Educação, 2023, p. 16. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000386147_por/PDF/386147por.pdf.multi. Acesso em: 19 jan. 2025.

[4] GOMES, Tamiris. Celular na escola: quais países proíbem o aparelho em sala de aula? A restrição do uso de celulares não é uma medida inédita no mundo. Entre os países que anunciaram a proibição estão França, Espanha, Grécia, México, entre outros. 23/09/2024 às 15:36. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/educacao/celular-na-escola-quais-paises-proibem-o-aparelho-em-sala-de-aula/. Acesso em: 19 jan. 2025.

[5] Cf.: https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/publications/reports/2024/05/students-digital-devices-and-success_621829ff/9e4c0624-en.pdf. Acesso em: 19 jan. 2025.

[6] EURODICAS. Europa discute proibição de celulares nas escolas – veja a situação nos principais países. 05 de dezembro 2024. https://www.eurodicas.com.br/proibicao-de-celulares-nas-escolas/. Acesso em 10 jan. 2025.

[7] Cf. : https://blogs.lse.ac.uk/politicsandpolicy/does-the-evidence-support-a-school-ban-on-smartphones/. Acesso em: 19 jan. 2025.

[8] SINGER, Natasha. Escola é lugar de celular? regras rígidas impostas nos EUA dividem opiniões de estudantes, pais e educadores. Lei aprovada no estado da Flórida exige que escolas públicas vetem o uso de celulares durante as aulas; em um condado, os estabelecimentos ampliaram a restrição para todo o período escolar. 01/11/2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/11/01/escola-e-lugar-de-celular-regras-rigidas-impostas-nos-eua-dividem-opinioes-de-estudantes-pais-e-educadores.ghtml. Acesso em: 17 jan. 2025. MELO, João Ozorio de. Prestes a ser aprovada, lei da Flórida vai proibir uso de redes a menores de 16 anos. Revista Conjur, 29 de janeiro de 2024, 10h31. https://www.conjur.com.br/2024-jan-29/prestes-a-ser-aprovada-lei-da-florida-vai-proibir-uso-de-redes-a-menores-de-16-anos/. Acesso em: 15 jan. 2025.

[9] Cf. https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2024/dezembro/aprovado-pl-que-restringe-uso-de-celular-nas-escolas. Acesso em : 25 dez. 2024.

[10] Cf.: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/529732/lei_de_diretrizes_e_bases_1ed.pdf. : 25 dez. 2024.

[11] Cf.: CARDOSO, A. Nomofobia: dependência do computador, internet, redes sociais? Dependência do telefone celular? São Paulo: Atheneu, 2014, p. VIII.

[12] Cf.: SAVIANI, Dermeval. A lei da Educação: LDB – Trajetória, Limites e Perspectiva. São Paulo: Autores Associados, 2016, p. 76.

[13] Examinar: MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. São Paulo: Borsoi, 1954,  tomo II, § 186, p. 341.

[14] Verificar: OLIVER, Michael. The Politics of Disablement. London: MacMillan, 1990, p. 78-88.

[15] Consultar: MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao art. 4º do CDC. In: MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 221-265.

[16] Cf. : MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 393-412.

[17] KING, A. L. S.; NARDI, A. E. A. O que é Nomofobia? Histórico e Conceito. In: KING, A. L. S.; NARDI, A. E.; CARDOSO, A. (Ed.). Nomofobia: dependência do computador, internet, redes sociais? Dependência do celular? São Paulo: Atheneu,, 2014b. p. 1-28.

[18] COSTA, M. L.; GÓES, D. S.; ABREU, C. N. de. Dependência de Celular. In: ABREU, C. N. de; EISENSTEIN, E.; ESTEFENON, S. G. B. (Org.). Vivendo esse mundo digital: impactos na saúde; na educação e nos comportamentos sociais. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 104-115.

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