Direto do Carf

Novos tempos na 2ª Turma da CSRF: admissibilidade e voto de qualidade

Autores

  • é advogada licenciada especialista em Direito Tributário pelo Ibet bacharel em Administração de Empresas. Ex-auditora em Big Four e setor de óleo e gás. Atualmente exercendo mandato de conselheira na 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais).

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  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

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  • advogado licenciado especialista em Direito Tributário pelo Ibet bacharel em Ciências Contábeis. Atualmente exercendo mandato de conselheiro na 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais).

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5 de março de 2025, 9h22

Este dia que, ao mesmo tempo, põe fim às festividades carnavalescas e marca o início da Quaresma convida os católicos a refletirem sobre a mortalidade, sobre a fragilidade humana e também sobre as mudanças e transformações nessa jornada do viver.

Spacca

Sem as complexas perquirições de natureza existencial — que escapariam ao escopo de uma coluna voltada a abordar questões afetas ao direito tributário —, no simbólico dia de hoje elegemos tratar de um precedente — o acórdão nº 9202-011.429 [1] — que nos parecem bem evidenciar as transformações perpetradas na análise dos recursos especiais apreciados pela Segunda Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Carf, que pensamos terem sido impulsionadas pelas mudanças sofridas na sua composição nos últimos tempos.

Antes do mérito, a preliminar: admissibilidade do recurso especial

Uma análise histórica dos precedentes proferidos por cada uma das três Turmas da CSRF do Carf nos permite extrair interessante percepção: se fossem comparadas, veríamos que as primeira e terceira Turmas sinalizariam um maior rigor na admissibilidade do recurso especial [2] do que a segunda.

No passado, enquanto na 2ª Turma os debates acerca do preenchimento dos requisitos autorizadores do processamento do apelo especial eram mais sucintos; [3] nos demais colegiados da CSRF do Carf, eles se davam de forma mais acirrada, com apresentação de fundamentação mais delongada, que acabou por ensejar a proclamação de um volume maior de resultados por maioria [4] ou pelo voto de qualidade. [5] Segundo dados coletados no repositório de jurisprudência do órgão, o Ver, foram conhecidos, pelo voto de qualidade, 115 processos julgados pela 1ª Turma da CSRF; 104  apreciados pela 3ª Turma; e, na 2ª Turma, apenas 68 acórdãos, até o momento, exibiram tal deslinde. [6]

No acórdão nº 9202-011.429 coletados indícios de uma tendência de aproximação do comportamento exibido pelos outros colegiados da CSRF. Naquela assentada, travou a Segunda Turma entusiasmados debates sobre a (in)aptidão do único paradigma que havia superado o crivo prévio do despacho inaugural de admissibilidade.

Para algumas julgadoras, o dissídio interpretativo em situações fáticas assemelhadas não teria sido demonstrado, porquanto no Recorrido [acórdão nº 2402-007.248] o entendimento foi de que não havia estabelecida uma relação de usufruto, e sim uma relação entre empresa investida e acionista. Não é que se interpretou que o recebimento de usufruto não gozaria do benefício de isenção, e sim que a relação do usufruto não ficou corroborada. Já no paradigma apontado [acórdão nº 2401-004.568], o entendimento foi de que, numa relação estabelecida de usufruto, haveria a isenção no recebimento dos frutos pelo beneficiário. [7]

Noutra banda, entendeu a maioria do colegiado que, tanto no caso recorrido como no paradigma, não se questiona a existência (ou a possibilidade) da instituição de usufruto sobre o direito econômico de participação societária, o que foi encarado como possível em ambos os casos.

A divergência surgiu na medida que, para o acórdão recorrido, o usufrutuário não pode se beneficiar da isenção dos lucros distribuídos, eis que tal isenção foi concedida pela legislação tributária ao detentor das quotas do capital da empresa. Ou seja, para o recorrido, o beneficiário de lucros distribuídos de forma isenta somente pode ser o sócio, acionista ou o titular, que detém diretamente a participação societária.

Por outro lado, o acórdão paradigma, ao interpretar o artigo 10 da Lei nº 9.249/95 (mesmo dispositivo citado pelo recorrido), asseverou que a isenção estabelecida pela lei tributária é de natureza objetiva, pois escolheu como parâmetro um determinado fato jurídico, sem levar em consideração as condições das pessoas beneficiadas pela exceção. Desta feita, como no caso analisado o usufrutuário foi beneficiário dos lucros/dividendos, concluiu que tais rendimentos são isentos do IRPF. [8]

As turmas da CSRF do Carf se assemelham aos tribunais superiores que, na estrutura desenhada pela nossa Carta Constitucional, são instâncias excepcionais, o que acaba por elevar os requisitos de admissibilidade. Por serem uma via mais estreita, maiores são os obstáculos para o processamento dos recursos especiais e extraordinários, como demonstra levantamento realizado pelo gabinete da Vice-Presidência do Superior Tribunal de Justiça, que aponta que “95% dos recursos extraordinários interpostos contra decisões do STJ não são enviados ao Supremo.” Por não serem as Turmas da CSRF terceira instância, recrudescidos precisam ser os filtros para seu acesso.

Depois da preliminar, o mérito: imparcialidade e voto de qualidade

No próximo dia 14 de setembro, o Carf, órgão que sucedeu os antigos Conselhos de Contribuintes, baterá a casa de um século de existência, colocando sobre os ombros de todas e todos que ali estão lotados a tarefa de, cada vez mais, entregar à sociedade um exercício atípico de função judicante de excelência.

Para tanto, há muito frisamos (aqui, aqui e aqui) a imperiosidade de observância do dever de imparcialidade imposto às conselheiras e aos conselheiros que no órgão atuam — ex vi do inciso I do artigo 81 do Regimento Interno do Carf (RICarf).

Os auditores que desempenhavam trabalho de fiscalização, ao ingressarem no Carf, passam a atuar como imparciais julgadores. Não mais lhes cabe buscar elementos para a lavratura do auto de infração, e sim tão-somente a verificação daqueles já trazidos pela autoridade lançadora, de modo a chancelar ou afastar a cobrança. O mesmo ocorre com os que outrora atuavam na advocacia privada.

Com a nomeação para atuar no órgão responsável pelo julgamento do contencioso administrativo fiscal federal em segunda instância surge a incompatibilidade — tanto no papel, quanto na prática — do exercício de atividades reservadas aos ativamente inscritos junto à Ordem dos Advogados do Brasil. Deixam de ser advogadas e advogados para tornarem-se julgadoras e julgadores.

Ainda persiste a  incompreensão de que quando um litígio foi resolvido pelo voto de qualidade, teria saído vitoriosa a autoridade fazendária, pois necessariamente mantida a autuação. Tal equivocada conclusão parte da inadvertida premissa de que o voto de minerva, detido pelos Presidentes de Turmas, seria sempre em favor do erário. Tal modo de pensar não coaduna com o modo de atuação do órgão, como pretendemos ter demonstrado.

Ademais, a leitura do texto do § 9o -A do artigo 25 do Decreto nº 70.935/72 atesta a possibilidade do desempate, pelo voto de qualidade, ser favorável ou desfavorável à Fazenda Pública. A imparcialidade, umbilicalmente atrelada à atuação independente dos julgadores, é inegociável; entretanto, sempre prudente rememorar existirem uma série de deveres a serem por eles observados, sob pena de perda de mandato. [9]

No acórdão nº 9202-011.429, objeto desta coluna, o litígio encerrou-se com desempate, pelo voto de qualidade, proferido favoravelmente à tese defendida pelo sujeito passivo, cancelando-se a autuação.

A corrente defendida no voto de relatoria, sob a pena de conselheira não-fazendária, que restou vencida, foi a de que [q]uanto ao pagamento de lucros e dividendos, em específico, os dispositivos da legislação tributária não fazem qualquer menção a usufrutuários. Por conseguinte, não pode o instituto do usufruto, definido no Direito Civil e celebrado entre particulares, descaracterizar a relação jurídica tributária estabelecida nos dispositivos legais que determinam o pagamento de lucros e dividendos aos sócios/acionistas, os quais devem ser obrigatoriamente acatados pelas autoridades administrativas tributárias, ante o princípio da legalidade estrita a que estão submetidas, a teor do artigo 142 do CTN.

Os dispositivos legais do Direito Civil definem ter o usufrutuário direito à percepção dos frutos do bem, mas, como dito, essa é uma relação particular acertada entre proprietários e usufrutuário, que não pode ser oposta à definição da fonte pagadora e sujeito passivo, empresa investida e sócio/acionista, definidos na legislação tributária para os casos de pagamento de lucros e dividendos.

Essa determinação está contida nos artigos 109, 116 e 123 do CTN, que são claros ao definir que o direito privado não pode ser utilizado na definição dos efeitos tributários de institutos nele definidos; que o sujeito passivo da obrigação tributária é a pessoa que tem relação pessoal e direta com a situação que constituiu o fato gerador e que as convenções particulares não podem ser opostas à Fazenda Pública.

Portanto, o instrumento de concessão de usufruto só produz efeito entre as partes que o firmaram e não geram repercussões tributárias não previstas na legislação do Imposto de Renda.

Em resumo, o tratamento tributário dos usufrutos depende da natureza e das condições do contrato. Normalmente, usufrutos são considerados rendimentos tributáveis, a menos que haja uma isenção específica prevista na legislação tributária. Só poderíamos equipara-los a lucros ou dividendos isentos se existisse uma base legal clara para essa isenção.

Se não há uma disposição legal explícita que permita isentar os usufrutos recebidos de tributação como lucros ou dividendos, o lançamento está correto. Ou seja, diante da interpretação literal da legislação tributária que trata da isenção, na ausência de lei que atribua isenção aos valores recebidos em razão do usufruto, não há como aplicar-lhes tal benefício.

(…)
[P]or derradeiro, a Solução de Consulta Cosit nº 38 de 2018, da própria Receita Federal, é voltada para sociedades anônimas, o que não é o caso do presente processo. [10]
O entendimento divergente, externado também por conselheiro não oriundo dos quadros da Receita Federal do Brasil, foi o de que o artigo 10 da Lei nº 9.249/95 não delimitou que o beneficiário da mencionada isenção seria apenas o detentor direto de quotas do capital social, ou seja, da participação societária na empresa que distribui os lucros. A norma expõe expressamente que os lucros/dividendos não integram a base de cálculo do IR dos beneficiários (ou seja, daqueles que recebem os lucros/dividendos). Desta forma, aqueles que são os titulares do direito econômico à percepção dos lucros, também são os titulares do direito à isenção estabelecida pela lei tributária.

Sobre o tema, a lei tributária não conferiu qualquer tratamento específico ao usufrutuário de participação societária, de modo que deve-se buscar nos conceitos de direito privado os efeitos típicos deste tipo de relação.

(…)

[A] isenção prevista no artigo 10 da Lei nº 9.249/95 é de natureza objetiva, pois elegeu como parâmetro determinado fato jurídico (a distribuição dos lucros/dividendos) sem levar em consideração as condições das pessoas beneficiadas pela exceção. Ou seja, sendo a pessoa titular do direito à percepção de lucros/dividendos, o recebimento de tais valores é isento do imposto de renda, não sendo condição necessária à isenção que o beneficiário detenha participação direta na pessoa jurídica.

Sendo assim, considerar que os beneficiários da isenção prevista no artigo 10 da Lei nº 9.249/95 seriam apenas aqueles que detém participação direta na pessoa jurídica é — com a devida vênia — inovar a norma jurídica do mencionado dispositivo a fim de restringir sua aplicação. [11]

Um prognóstico em tempos de reflexão

Em espírito quaresmal, neste ano que marca o centenário do Carf, nossa intenção foi trazer pontuais reflexões sobre as principais mudanças quanto à forma de apreciação das controvérsias devolvidas às Turmas da CSRF, com enfoque na segunda.

Doravante, o que se pode esperar é um incremento no rigor da aferição dos pressupostos de admissibilidade, mormente o cotejo demonstrativo da divergência na interpretação da legislação tributária externado em minudente demonstração da identidade fática dos casos postos em confronto. Tarda o abandono de maniqueísmos que reduzem os julgadores a meros intérpretes dos desejos de suas carreiras de origem. Atuação técnica e independente, em inegociável observância aos deveres previstos no RICarf, é o que deve ser esperado — e cobrado — daqueles que optaram por compor o Carf. Que o tempo comprove o acerto das transformações feitas e das que estão porvir.

 

*Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

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[1] A controvérsia cingiu-se em determinar se o usufrutuário dos direitos econômicos de participação societária poderia beneficiar-se da isenção concedida pelo art. 10 da Lei nº 9.249/95, em relação aos rendimentos advindos dos lucros/dividendos pagos pelas pessoas jurídicas.

[2] Sobre o espinhoso tema, vale conferir a coluna de estreia da Maria Carolina Maldonado Kraljevic nesta Direto do Carf (aqui).

[3] Cf., a título exemplificativo, acórdãos que asseveram o preenchimento dos pressupostos de admissibilidade, sem análise das especificidades das decisões postas em confronto: CARF. Acórdão nº 9202-004.637, sessão de 25 de nov. de 2016; CARF. Acórdão nº 9202-007.232, sessão de 27 de nov. de 2018; CARF. Acórdão nº 9202-008.520, sessão de 28 de jan. de 2020; CARF. Acórdão nº 9202-010.405, sessão de 27 de set. de 2022; CARF. Acórdão nº 9202-010.660, sessão de 25 de abr. de 2023; CARF. Acórdão nº 9202-011.032, sessão de 24 de out. de 2023.

[4] Cf. CARF. Acórdão nº 9303-006.468, sessão de 13 de mar. de 2018; CARF. Acórdão nº 9101-006.277, sessão de 09 de set. de 2022; CARF. Acórdão nº 9101-006.308, sessão de 15 de set. de 2022; CARF. Acórdão nº 9303-016.004, sessão de 12 de set. de 2024.

[5] Vide casos em que o resultado acerca do conhecimento se deu pelo voto de qualidade: CARF. Acórdão nº 9303-007.045, sessão de 10 de jul. de 2018; CARF. Acórdão nº 9101-004.457, sessão de 09 de dez. de 2019; CARF. Acórdão nº 9101-004.431; CARF. Acórdão nº 9203-012.613, sessão de 06 de dez. de 2021; CARF. Acórdão nº 9303-013.356, sessão de 22 de set. 2022.

[6] A busca foi feita com a utilização da expressão “voto de qualidade, em conhecer.” Disponível em: <https://acordaos.economia.gov.br/solr/acordaos2_shard10_replica_n54/browse?q=%22voto+de+qualidade%2C+em+conhecer%22 >. Acesso em 1º de mar. de 2025.

[7] Cf. o voto vencido da Cons.ª Rel.ª Fernanda Melo Leal em: CARF. Acórdão nº 9202-011.429, sessão de 21 de ago. de 2024.

[8] Cf. o voto vencedor do Cons. Redator Designado Rodrigo Monteiro Loureiro Amorim em: CARF. Acórdão nº 9202-011.429, sessão de 21 de ago. de 2024.

[9] As hipóteses de perda de mandato estão elencadas no art. 85 do RICARF, dentre as quais se incluem: a inobservância de súmula editada pelo Carf, a apresentação de votos incompletos, a prática de atos de comprovado favorecimento, etc.

[10] Cf. o voto vencido da Cons.ª Rel.ª Fernanda Melo Leal em: CARF. Acórdão nº 9202-011.429, sessão de 21 de ago. de 2024.

[11] Cf. o voto vencedor do Cons. Redator Designado Rodrigo Monteiro Loureiro Amorim em: CARF. Acórdão nº 9202-011.429, sessão de 21 de ago. de 2024.

Autores

  • é advogada licenciada, especialista em Direito Tributário pelo Ibet, bacharel em Administração de Empresas. Ex-auditora em Big Four e setor de óleo e gás. Atualmente exercendo mandato de conselheira na 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais).

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período de investigação na McGill University; pós-doutora e mestra pela UFMG; vice-presidente da 2ª Seção do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); conselheira da 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf); professora.

  • advogado licenciado, especialista em Direito Tributário pelo Ibet, bacharel em Ciências Contábeis. Atualmente exercendo mandato de conselheiro na 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais).

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