Opinião

É legítima a liberdade de expressão que afronta a democracia?

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  • é advogado doutor e mestre em Direito pela PUC-RS pós-doutorado em Direito pela Universidade de Santiago de Compostela e membro da Social Science and Humanities Research Association.

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5 de março de 2025, 17h13

A liberdade de expressão é um dos elementos estruturantes do Estado Democrático, no âmbito do qual o cidadão deve ter espaço para manifestar livremente seus pensamentos.

Como instrumento para a circulação de ideias, a liberdade de expressão pressupõe também um direito à informação, que permite ao cidadão a obtenção do conhecimento necessário ao seu pleno desenvolvimento no meio em que vive.

Embora o consenso acerca da sua essencialidade para aprimoramento das instituições e da vida em sociedade, a liberdade de expressão revela-se problemática quando assume uma discursividade que viola a sua própria fonte normativa, ou seja, quando afronta a ordem constitucional do Estado Democrático. Casos assim são flagrantemente paradoxais, pois denotam um exercício autofágico do direito à liberdade de expressão.

No Brasil, o preâmbulo da Constituição apregoa que nosso país é um Estado Democrático. Diante dessa premissa constitucional, uma questão parece desafiadora no âmbito jurídico: é possível admitir a legitimidade do direito ao uso da expressão quando seu conteúdo mostra-se contrário à própria democracia?

Tensionamentos no Estado Constitucional

Com a emergência do Estado Democrático e da sociedade liberal, em que toda forma de poder resulta da própria vontade do povo, ressaltam correlações de forças de nuances variadas, envolvendo indivíduos e grupos sociais.

Esses tensionamentos são potencializados pela própria matriz constitucional dos regimes democráticos, pois o reconhecimento de direitos fundamentais implica, em contrapartida, deveres correspondentes, sejam eles em um nível vertical, que se projeta na relação entre o Estado e o particular, ou numa posição horizontal, abarcando as relações entre sujeitos privados.

Parece um contrassenso que a Constituição potencialize situações conflitivas entre sujeitos sociais, pois antes deveria, pela sua normatização hierarquicamente superior, neutralizá-las. No entanto, embora o texto constitucional tenha como pressuposto uma composição formal e material entre os diversos atores envolvidos no processo dialógico que levou à redação das normas constitucionais, isso não elimina a possibilidade de rompimentos posteriores, além das divergências que se sucedem no âmbito das relações individualizadas na sociedade.

Pérez Luño (2001, p. 52-53) lembra que as forças políticas que mais diretamente concorreram para a redação da Constituição Espanhola de 1978 alcançaram um consenso sobre a necessidade de atribuir aos direitos fundamentais um protagonismo no sistema jurídico-político, mas sem que isso implicasse um acordo sobre o conteúdo e função desses direitos. Para os setores conservadores, a Constituição foi uma meta de chegada do processo de transição, mas para as forças progressistas significou o ponto de partida de um amplo programa de renovação.

A Constituição de 1988 igualmente resultou de uma momentânea composição entre parcelas conservadoras e setores progressistas. Desde então, ambos os lados estão em constante disputa nas iniciativas de concretização da Constituição.

O extenso elenco de direitos fundamentais das Constituições contemporâneas dá margem a situações em que esses direitos se colocam em contraposição.

É o que sucede com o direito à informação e o direito à privacidade, o direito de greve e o direito da população à continuidade dos serviços públicos, o direito de manifestação pública e o direito de livre circulação, o direito de fruição da propriedade e a função social da propriedade, o direito à livre iniciativa e o direito a um ambiente ecologicamente sustentável. Todos esses casos ilustram hipóteses que implicam confronto entre polos de interesses que, a depender dos elementos circunstanciais, revelam alto grau de antagonismo.

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O posicionamento equivalente de direitos principiológicos não admite a anulação de um em face de outro, mas, sim, a escolha daquele que deve preponderar à luz do caso concreto, diferentemente do que sucede nos casos em que a situação conflitiva não se reveste de matriz principiológica, porque, despojados de fundamentalidade jurídica, se encontram no nível ordinário da estrutura normativa.

Na conhecida concepção de Robert Alexy (1993, p. 86-87), os princípios são mandamentos de otimização, notadamente normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível. O cumprimento dos princípios se dá com maior elasticidade dentro da sua área de incidência. Já as regras são normas que não possuem maior flexibilidade, haja vista que só admitem o seu estrito cumprimento ou não. Sendo válida a regra, cumpre observar exatamente o seu comando, nem mais nem menos.

A própria Constituição prevê mecanismos direcionados a solucionar os confrontos que se projetam sob suas bases normativas, tarefa levada a efeito fundamentalmente pelo controle jurisdicional. Uma breve análise de julgados paradigmáticos do STF versando sobre a liberdade de expressão permitirá a verificação da delimitação do seu uso legítimo diante de outros direitos contrapostos.

A liberdade de expressão e sua leitura constitucional

No Habeas Corpus 831.257/DF, foi discutida denúncia penal do Ministério Público Militar contra o autor do livro Feridas da Ditadura Militar, no qual foram narrados fatos considerados ofensivos ao Exército pelo referido órgão ministerial, o que teria enquadramento no artigo 219 do Código Penal Militar.

Embora o deferimento do pedido de Habeas Corpus tenha sido pautado em ponto de vista alheio ao direito de liberdade de expressão, sem adentrar no seu conteúdo e na sua abrangência jurídica, notadamente na ausência de configuração fática do tipo contido no referido dispositivo penal, ponto a destacar nesse julgado é que foi realçado o exercício da liberdade de expressão como direito imprescindível à própria existência do Estado Democrático de Direito, o que denota a amplitude da dimensão jurídica desse direito no contexto da Constituição de 1988.

A decisão proferida no Habeas Corpus 824.242/RS, que ficou conhecido como Caso Ellwanger, consolidou um dos mais emblemáticos julgados envolvendo os limites da liberdade de expressão na jurisprudência do STF. O caso concreto abarcava fato consistente na redação, edição e distribuição de livros com conteúdo antissemita, pautados em revisionismo de fatos históricos e apologia de ideias nazistas.

No voto condutor do julgado, o ministro Maurício Corrêa enfatizou que a liberdade de expressão não se trata de direito cujo exercício seja incondicionado, porquanto deve ser exercido nos limites traçados pela própria Constituição, que garante sua efetividade, mas ao mesmo tempo restringe seu alcance em face de outros direitos de estatura constitucional.

O Habeas Corpus 83.996-7/RJ envolveu denúncia que imputava ao paciente a prática de ato obsceno, que ocorrera ao término da apresentação do espetáculo Tristão e Isolda, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde o denunciado, inconformado com as vaias, teria simulado ato de masturbação e exibido as nádegas ao público que se encontrava no local.

Na decisão, ficou consignado que a atitude do sujeito denunciado, ainda que tenha sido objeto de repulsa por parte dos presentes, se inseria integralmente no âmbito do exercício legítimo da liberdade de expressão, não sendo cabível a ele, portanto, a imputação de prática de crime.

A Ação Originária 1.390/PB envolveu críticas tecidas por político endereçadas ao presidente do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba no contexto de processo eleitoral. Na sua defesa, o demandado alegou que teria atuado no exercício regular de um direito, por ser a liberdade de expressão garantida constitucionalmente.

A tese de defesa foi refutada pelo STF, porque a liberdade de expressão não é ilimitada nem absoluta, devendo observar os demais direitos fundamentais, como a honra, a intimidade e a privacidade. Ademais, embora as pessoas públicas estejam submetidas a críticas pelo desempenho de suas funções, essa sujeição não pode dar margem a acusações infundadas e ofensivas à reputação do destinatário.

Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 187/DF, foi discutida a possibilidade de ser conferida interpretação conforme à Constituição ao artigo 287 do Código Penal, excluindo qualquer exegese que ensejasse a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos em espaços públicos.

Restou assentada, na ocasião, a relevância da função contramajoritária do STF, tendo em conta que, no caso em debate, o direito à propagação de ideias, por grupos minoritários, como a chamada “Marcha da Maconha”, ainda que sejam desagradáveis, chocantes ou impopulares, não pode ser oprimido pelas maiorias no âmbito do Estado Democrático.

Sob a perspectiva constitucional, segundo o julgado, revela-se legítima a realização de assembleia, reunião, passeata, marcha ou qualquer outro encontro no espaço público, com o objetivo de obter apoio para proposta de legalização do uso de drogas, de criticar o modelo penal de repressão e punição ao uso dessas substâncias, de propor alterações na legislação penal, de formular sugestões sobre o sistema nacional de políticas públicas sobre drogas e de promover atos em favor das posições sustentadas pelos manifestantes. Conforme decidido, a liberdade de expressão e manifestação de ideias, pensamentos e convicções, embora não tenha caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico, não pode ser impedida pelo Poder Público, nem submetida a ilícitas interferências do Estado.

Os limites da liberdade de expressão no âmbito do debate público também foram objeto de análise do STF no Recurso Extraordinário 600.063/SP. Os fatos envolveram vereador que, em sessão da câmara municipal, portanto no exercício do mandato, teria se manifestado de forma a ofender ex-vereador.

Para o STF, as ofensas pessoais proferidas no âmbito da discussão política não são passíveis de reprimenda judicial, desde que sejam respeitados os limites previstos na Constituição. Dessa forma, a imunidade parlamentar que garante a inviolabilidade dos vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato na circunscrição municipal, se configura como uma proteção adicional à liberdade de expressão, como forma de resguardar o fluxo do debate público e, em última análise, a própria democracia.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815/DF, a questão discutida envolveu o disposto nos artigos 20 e 21 do Código Civil, referentemente à necessidade de autorização prévia para divulgação de obras biográficas literárias ou audiovisuais.

Na ocasião, ficou decidido que o exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceado pelo Estado, nem pelo particular. A autorização prévia constituiria censura prévia particular. Em face da inviolabilidade do direito à intimidade e à privacidade da pessoa biografada há normas, embora não proibitivas do direito de expressão, pelas quais é assegurada, em caráter reparatório, em momento posterior, a responsabilidade dos autores da ação indevida.

Conforme ponderações do ministro Luís Roberto Barroso, a liberdade de expressão deve ser tratada como uma liberdade preferencial, o que implica uma transferência de ônus argumentativo, pois aquele que pretender afastar a liberdade de expressão tem o dever de demonstrar por quais motivos deve prevalecer sua pretensão. Essa preferencialidade decorre do fato de que não há plenitude de outros direitos fundamentais sem a livre circulação de fatos, opiniões e ideias.

Por fim, na Reclamação 38.782/RJ o STF afastou restrições judiciais à exibição da obra Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo. Nessa decisão, foi assinalada a importância da livre circulação de ideias em um Estado Democrático. E isso significa que a vedação à divulgação de determinado conteúdo deve ocorrer apenas em casos excepcionalíssimos, quando configurar prática ilícita, incitação à violência ou à discriminação, bem como propagação de discurso de ódio.

Considerações finais

É hora de voltarmos nossa atenção ao questionamento inicial.

Os julgados do Supremo Tribunal Federal evidenciam que o direito à liberdade de expressão não é um direito cujo exercício seja ilimitado e incondicionado, pois deve ser exercido nos limites traçados pela própria Constituição, que garante sua efetividade, mas ao mesmo tempo restringe e relativiza seu alcance.

Esses limites vêm sendo construídos pela jurisprudência constitucional de forma a não mitigar ou atenuar a plena juridicidade do direito à liberdade de expressão, considerando-o legítimo até mesmo quando seu conteúdo causar aversão ou inquietude, ou quando veicular ideias consideradas pela maioria como desagradáveis, insuportáveis ou chocantes. Trata-se, como ressalta das decisões analisadas, de um ônus decorrente do convívio social no âmbito de uma sociedade democrática.

As bases jurídicas que autorizam restrições ao exercício da liberdade de expressão são, como visto, bastante estreitas.

Vivenciamos, há pouco tempo, grupos de pessoas na frente dos quartéis postulando a volta dos militares ao poder.

Essas manifestações deveriam ter sido admitidas?

Não tenho dúvida que sim, como de fato o foram. Refiro-me, aqui, bem entendido, ao direito de expressão em essência, não às consequências que eventualmente decorreriam dessas manifestações.

A manifestação pacífica deve ser tolerada, ainda que seu conteúdo seja antidemocrático. As exceções a essa regra abrangem os casos em que há violação à moralidade pública ou aqueles atos que estejam revestidos de viés discriminatório e de incitação ao ódio e à violência.

A democracia não se concretiza se não for admitido amplamente o exercício da liberdade de expressão. A história brasileira é pródiga em confirmar essa afirmação.

 


ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

PÉREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. Décima edición. Madrid: Tecnos, 2001.

STF, HC 831.257/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 16/12/2003.

STF, HC 824.242/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado em 17/09/2003.

STF, HC 83.996-7/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 17/08/2004.

STF, AO 1.390/PB, Rel. Min. Dias Toffoli, julgada em 12/05/2011.

STF, ADPF 187/DF, Rel. Min. Celso de Mello, julgada em 15/06/2011.

STF, RE 600.063/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 25/02/2015.

STF, ADI 4.815/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia, julgada em 10/06/2015.

STF, Reclamação 38.782/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgada em 03/11/2020.

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