Reequilíbrio ou Intervenção? Desafios da Resolução CMED nº 2 para a indústria farmacêutica e o setor público
2 de março de 2025, 8h00
A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), criada pela Lei nº 10.742/2003, é o órgão interministerial responsável por regular e controlar os preços dos medicamentos no Brasil. Suas principais funções incluem a definição do preço máximo ao consumidor (PMC) e do preço fábrica (PF) dos medicamentos, a regulamentação do reajuste anual de preços com base em fatores como inflação, produtividade do setor farmacêutico e concorrência, além da análise e aprovação de preços para novos medicamentos antes de sua comercialização.
Além disso, especificamente para o mercado público, a CMED é responsável por definir o Coeficiente de Adequação de Preços (CAP). O CAP é um desconto obrigatório para toda a cadeia de fornecedores (distribuidoras, as empresas produtoras de medicamentos, os representantes, os postos de medicamentos, as unidades volantes, as farmácias e drogarias) aplicável sobre o PF. Com isso, existe um teto de preços de medicamentos especificamente para vendas a governos, o Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG). A principal justificativa para a existência de um teto específico e inferior para vendas a governos é a que leva em consideração que as compras governamentais, por serem em larga escala, justificam condições comerciais mais vantajosas.
Esses diferentes tetos de preço são ajustados ao longo do tempo, em regra anualmente. Além do reajuste ordinário anual, a CMED pode promover reajustes extraordinários como mecanismos excepcionais de alteração de preços de medicamentos, aplicáveis em situações específicas que justifiquem a necessidade de um ajuste fora do reajuste anual regular. Esses reajustes podem ocorrer tanto para aumentar quanto para reduzir preços, a depender da análise da CMED sobre o impacto econômico e de abastecimento do produto no mercado.
Um exemplo de justificativa que pode ensejar reajustes extraordinários são situações em que os custos de insumos farmacêuticos ativos (IFA), embalagens, logística ou outras etapas da cadeia produtiva sofrem aumentos expressivos e imprevisíveis, tornando inviável a manutenção do preço fixado. Outro exemplo são variações bruscas do real frente a moedas estrangeiras, elevando os custos e justificando um ajuste de preço, dada a dependência do mercado brasileiro de medicamentos e insumos estrangeiros. Ainda, quando há indícios de que um laboratório pode interromper a produção ou a comercialização de um medicamento essencial devido à inviabilidade econômica, a CMED pode autorizar um reajuste extraordinário para garantir a continuidade do fornecimento.
A solicitação de um reajuste extraordinário pode ser feita pelo próprio laboratório titular do medicamento, que deve apresentar documentação técnica e econômica para justificar a necessidade do ajuste. O pedido é analisado pela CMED, que pode aprovar, rejeitar ou definir um percentual diferente daquele solicitado. Além dos pedidos formulados pelas empresas, a CMED também pode, de ofício, determinar um reajuste extraordinário caso identifique distorções significativas no mercado que comprometam a concorrência ou o acesso da população ao medicamento.
Embora menos comuns, os reajustes extraordinários também podem ser aplicados para reduzir o preço de um medicamento. Isso pode ocorrer quando a CMED verifica que o preço fixado originalmente não reflete mais a realidade do mercado, seja porque houve uma redução dos custos de produção, porque a concorrência se intensificou, ou porque há práticas que levam a preços excessivos sem justificativa técnica. Nesses casos, a Câmara pode determinar a revisão para baixo do preço máximo autorizado.
Desoneração do ICMS e o reajuste extraordinário
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 574.706, decidiu que o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins, pois não se trata de faturamento ou receita bruta das empresas, mas de um imposto estadual que deve ser repassado ao governo. A tese fixada pelo STF teve efeito vinculante e erga omnes, garantindo sua aplicação a todos os casos semelhantes. O caso transitou em julgado em 9 de setembro de 2021, mas a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins passou a valer a partir de 15 de março de 2017, data do julgamento de mérito do recurso, ressalvadas as ações judiciais e procedimentos administrativos já protocolados até essa data.
Anos depois, apenas em 12 de agosto de 2024, a CMED, por meio da Resolução nº 2/2024, decidiu pela realização de reajuste extraordinário dos preços-teto de medicamentos no país, com base nos efeitos do RE 574.706. Essa medida tem implementação prevista a partir de 31 de março de 2025. Com a nova resolução, foram ajustados os fatores de conversão utilizados no cálculo do PF e do PMC, refletindo a desoneração do ICMS. Esses ajustes resultaram em uma redução de até 3,45% nos Preços Fábrica e de até 2,59% nos Preços Máximos ao Consumidor para diversos medicamentos [1].
Desde a criação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos em 2003, os reajustes anuais de preços de medicamentos no Brasil têm sido predominantemente positivos, acompanhando índices inflacionários e outros fatores econômicos. Embora a CMED possua mecanismos para ajustar preços específicos quando necessário, seja para corrigir distorções de mercado ou refletir mudanças nos custos de produção e tributação, não há registros de uma redução generalizada nos preços-teto de todos os medicamentos antes da medida prevista para 2024.

Em 2015, por exemplo, o Ministério da Saúde e a Anvisa anunciaram uma nova metodologia de cálculo para o ajuste de preços de medicamentos, com expectativa de que o percentual médio de reajuste ficasse abaixo da inflação, resultando em uma redução de aproximadamente R$ 100 milhões nos gastos com medicamentos em um ano [2]. No entanto, essa medida não representou uma redução generalizada dos preços-teto, mas sim uma contenção no aumento dos preços.
O cenário inédito de redução geral dos preços-teto da CMED decorrente da Resolução nº 2/2024 gera enormes problemas práticos no campo das licitações e fornecimento de medicamentos para o SUS.
Ocorre que, no país, centenas de Atas de Registro de Preço e Contratos Administrativos foram firmados levando em conta os preços-teto definidos originalmente pela CMED para o período vigente.
Em geral, os reajustes de preço da CMED ocorrem sempre em percentuais positivos. Isso implica, na prática, que os compromissos firmados entre farmacêuticas e distribuidoras e o poder público não são afetados. Por mais que os tetos sejam elevados para corrigir o incremento do custo de produção e comercialização desses produtos, isso não é repassado ou dá ensejo de forma direta ao reequilíbrio econômico-financeiro desses ajustes firmados com a administração.
Nesse caso, os preços registrados continuam, mesmo após o reajuste, regulares perante a CMED, porque seguem abaixo do novo teto definido. Isso ocorre mesmo para preços registrados no limite do PMVG. No cenário de redução generalizada dos preços-teto, as implicações são distintas.
Com efeito, no caso de uma redução generalizada dos preços-teto, todos os preços registrados perante contratantes públicos em valor próximo ao teto estarão imediatamente sob forte insegurança jurídica. Aqui estamos falando de dezenas, possivelmente centenas de atas e contratos com as diversas entidades federativas e autarquias brasileiros com potencial de impacto decisivo sobre o regular abastecimento do SUS.
No caso de uma Ata/Contrato com preços unitários no limite do PMVG ou próximo ao teto vigente, a partir de 31 de março de 2025 qualquer ato de concretização de venda poderá estar, em tese, sujeito às penalidades prevista para infração dos limites estabelecidos pela CMED.
As empresas que não respeitam os tetos de preço estabelecidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos estão sujeitas a penalidades previstas na Lei nº 10.742/2003 e na Resolução CMED nº 2/2018. A penalidade principal para quem comercializa medicamentos acima dos preços máximos permitidos é a aplicação de multa, que pode chegar a mais de R$ 10 milhões.
Por outro, as farmacêuticas e distribuidoras que firmaram essas atas/contrato não estarão obrigadas a fornecer medicamentos por preços inferiores aos registrados. A modificação dos preços registrados – obrigando o fornecimento em valores inferiores – depende de reequilíbrio econômico-financeiro dos respectivos ajustes.
O reequilíbrio pode ser solicitado quando ocorrem eventos supervenientes e imprevisíveis, ou previsíveis, mas de consequências incalculáveis, que alteram substancialmente os custos originalmente estabelecidos no contrato ou na ata de registro de preços. Para que seja concedido, é necessário demonstrar que houve um fato gerador extraordinário que impactou a equação econômico-financeira do contrato, tornando sua execução excessivamente onerosa para uma das partes. Entre os eventos que podem justificar o pedido de reequilíbrio estão o aumento abrupto nos preços de insumos, variações cambiais significativas, criação ou majoração de tributos que afetem diretamente os custos do contrato, alterações regulatórias, e eventos de força maior ou caso fortuito que impactem a execução contratual.
O evento que motiva o pedido de reequilíbrio deve necessariamente ter ocorrido após a assinatura do contrato, ou seja, não pode ser um fator preexistente ou conhecido pelas partes no momento da contratação. Ocorre que o Recurso Extraordinário 574.706, indicado expressamente como causa de reajuste extraordinário dos preços teto no âmbito da Resolução nº 2 transitou em julgado em 2021, portanto já há vários anos. Ou seja, as farmacêuticas e distribuidoras ao ofertarem proposta nas licitações que deram origem às atas/contratos hoje vigente já consideraram em seu orçamento a alteração de carga tributária definida pelo citado julgado.
É dizer: haverá um impasse com relação às atas/contratos em que, por um lado, a compra/venda pode ser sancionada pela CMED, entretanto, por outro lado, não há qualquer direito de reequilíbrio em benefício da Administração, nem dever de que farmacêuticas e distribuidoras reduzam os preços registrados. E mais: um desconto adicional muitas vezes será inviável comercialmente, especialmente no caso de distribuidoras (que garantem o atendimento capilarizado do SUS) já que estas operam com margem de lucro reduzida (em média 5%). Esse entrave pode trazer graves consequências ao regular abastecimento do SUS nos mais variados rincões do país.
Ao que parece, a Resolução nº2, realizada de forma tão extemporânea, é uma manobra para reduzir a inflação de medicamentos de forma artificial. Isso parece estar em linha com a chamada “modernização do marco legal de preços de medicamentos” que entrou na lista de 25 medidas da agenda econômica do Ministério da Fazenda para o biênio de 2025-2026 [3]. Essas mudanças estão sendo discutidas pela CMED e pelos Ministérios da Saúde, Casa Civil, Fazenda e Justiça, com escassa transparência e sem a participação efetiva do setor regulado.
Esse viés é reforçado quando se observa a apreciação isolada de um fator extemporâneo para fins de redução dos tetos de preço. Por exemplo, não se levou em consideração a recente valorização do dólar frente ao real tem impactado diretamente os preços dos medicamentos no Brasil. Isso ocorre porque a indústria farmacêutica brasileira depende majoritariamente de insumos importados, como os Ingredientes Farmacêuticos Ativos, que são cotados em moeda estrangeira. Em 2024, o dólar registrou uma valorização significativa de 27,34% em relação ao real, encerrando o ano cotado a R$ 6,18 [4].
Não parece legítimo a CMED, por meio da Resolução nº2, realizar um reajuste extraordinário geral de preços de medicamentos levando em conta apenas o Recurso Extraordinário 574.706, transitado em idos de 2021, desconsiderando completamente outros fatores que de forma evidente tem impacto decisivo sobre a formação de preços dos medicamentos comercializados no País.
Ao lado disso, a enorme insegurança jurídica e dificuldades para a gestão da assistência farmacêutica do SUS que resultarão da implementação da Resolução nº 2/2024 deveriam ser suficientes para sensibilizar a CMED. É necessário uma solução geral para esse impasse, seja para garantir a continuidade de abastecimento do SUS, seja para evitar abusos do poder público em face do particular contratado. Isso implica excetuar a aplicação do novo teto descontado para os ajustes já firmados com o poder público. Essa medida de ponderação deve ser adotada pela própria CMED, mediante nova resolução específica, ou alcançada pelo setor regulado perante o Judiciário.
[1] SIMTAX. Nova regra CMED: redução de preços de medicamentos e impacto na lucratividade. 2024. Disponível em: https://simtax.com.br/nova-regra-cmed-reducao-de-precos-de-medicamentos-e-impacto-na-lucratividade/. Acesso em: 29 fev. 2025.
[2] SAÚDE BUSINESS. Ministério e Anvisa anunciam novo cálculo para preço de medicamentos. 2015. Disponível em: https://www.saudebusiness.com/artigos/ministrio-e-anvisa-anunciam-novo-clculo-para-preo-de-medicamentos. Acesso em: 29 fev. 2025.
[3] FOLHA DE S. PAULO. Governo vai reformular regulamentação de preços de medicamentos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/01/governo-vai-reformular-regulamentacao-de-precos-de-medicamentos.shtml. Acesso em: 27 fev. 2025.
[4] ESTADÃO CONTEÚDO. Dólar avança 27,34% em 2024, na maior alta dos últimos quatro anos. UOL Economia, São Paulo, 31 dez. 2024. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2024/12/31/dolar-avanca-2734-em-2024-na-maior-alta-dos-ultimos-quatro-anos.htm. Acesso em: 27 fev. 2025.
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