Novos horizontes para a deserdação com a reforma do Código Civil
2 de março de 2025, 8h00
A deserdação é a forma pela qual um herdeiro necessário é excluído da sucessão por manifestação de vontade do autor da herança, expressa exclusivamente em testamento. Ato solene de despojamento da herança imposto por quem é o “dono” do patrimônio, em reação contra um ato de ingratidão cometido pelo herdeiro ofensor. Sob esse viés, pode ser considerada a máxima expressão da liberdade testamentária, o ápice do exercício da autonomia privada no direito sucessório, além de instrumentalizar proteção ao macro princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que, no sopesamento entre dois direitos fundamentais (dignidade humana do testador e direito de herança do herdeiro), toma partido pela dignidade, considerada de maior peso e relevância. Os interesses protegidos pela exclusão sucessória hão de ser sempre os do falecido, daquele que construiu o patrimônio.
Antes de constituir um ato de vingança ou de retaliação contra um herdeiro, trata-se de excluir da linha sucessória uma pessoa com quem o testador deixou de manter vínculo de afeto. Cabe lembrar que a ordem da vocação hereditária (atualmente estabelecida no artigo 1.829 do CC/2002) [1], lista escalonada pela qual os herdeiros são chamados a suceder, por classes, leva em conta o vínculo de afetividade que o legislador pressupõe existir entre o falecido e os diversos grupos de herdeiros ali ordenados. O motivo que justifica a posição dos indivíduos em referência às classes dos sucessíveis é a organização da família, fundada no afeto.
A presunção legislativa se coaduna com a visão moderna do Direito das Famílias, onde o conceito de família (e consequentemente o de herdeiro) é construído a partir da comunhão de vidas, fundada no amor, no afeto, na solidariedade e na responsabilidade recíprocos.
Partindo dessas premissas, é possível afirmar que a deserdação representa a vitória do afeto, como principal elemento fundante da família, ao permitir que o testador exclua da sua própria sucessão aqueles sujeitos cujos atos e ações denotem a inexistência de afetividade para com o autor da herança.
As condutas que atualmente autorizam a deserdação do descendente pelo ascendente (e vice-versa), além daquelas dispostas simultaneamente para a exclusão por indignidade (CC, artigos 1.962 e 1.963) [2], caracterizam, todas elas, atos absolutos de inafetividade: ofensas físicas, mesmo as levíssimas, como um empurrão ou um tapa na cara; a injúria, que macula a honra subjetiva do testador; o desamparo moral e material ao autor da herança, agravado pelo padecimento de grave enfermidade; demonstram, por parte do herdeiro, não apenas desafeição extrema, mas completa falta de empatia e de solidariedade humana.
O PLS 4/2025 e a reforma do Código Civil
As propostas de alteração do Código Civil, trazidas com o PLS 4/2025 [3], reforçam a ideia de que o rompimento definitivo do vínculo de afetividade autoriza a deserdação.

No intuito de fortalecer a autonomia privada, o PLS 4/2025 propõe novos suportes fáticos pelos quais os herdeiros necessários serão excluídos da sucessão, quer em decorrência da prática de atos de indignidade, quer seja por vontade do testador, nos casos de deserdação. O projeto pretende que se rompa com o paradigma perverso que vitimiza o herdeiro e vilaniza o testador, invertendo, como norte de interpretação, a primazia dos interesses dos herdeiros sobre os do autor da herança. Afinal de contas, o interesse maior a ser protegido pelos dispositivos legais que regulam a exclusão sucessória é aquele do de cujus, da pessoa que construiu tanto o patrimônio hereditário como as relações afetivas com aqueles que pretendem sucedê-lo.
Fortes nessa convicção é que, no artigo 1.814, propusemos a atualização do rol taxativo das causas de exclusão por indignidade, de modo a abranger outros tipos penais diversos do homicídio [4]. A ideia é que a prática de qualquer crime doloso, ato infracional, ou tentativa destes, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente, autorize a exclusão da sucessão.
Foram acrescidos, entre os atos de indignidade, a destituição do poder familiar da pessoa de cuja sucessão se tratar e a negativa de prestação de assistência material ou assistência afetiva, seja por convívio ou visitação periódica. As inovações não são “criacionismos”. No projeto de Código Civil de Coelho Rodrigues, apresentado em 23 de fevereiro de 1893, já se previa, entre os cenários de indignidade sucessória, que não seria chamado a suceder “o pai ou a mãe que expusesse o de cujus, ou negasse-lhe o dote ou alimentos devidos, ou somente os tivesse compelido por sentença; o pai ou mãe que houvesse contestado a filiação do de cujus, reconhecido judicialmente e contenciosamente, ou tivesse sido privado do poder familiar; o descendente que, devendo alimentos ao de cujus, recusasse a prestá-los, ou somente o tivesse quando compelido por sentença” (artigo 2.397). Da mesma forma, o projeto original de Clóvis Beviláqua previa, no seu artigo 1.762, a exclusão da sucessão do pai ou da mãe “que tivesse exposto o autor da herança, que lhe houvesse negado os alimentos, ou contestado a sua filiação; o pai ou a mãe que tivesse sido privado do pátrio poder que exercia sobre o autor da herança, por ter incorrido em crime contra a honra do mesmo; aquele que, por violência ou fraude”.
Em paralelo, foram ampliadas as causas e facilitada a concretização da deserdação. Na disciplina dessa matéria, a exegese literal das disposições legais vem dificultando a efetivação da última vontade do autor da sucessão, no que tange a quem transmitir ou não transmitir os seus bens. Cito como exemplo a injúria grave e as ofensas físicas, que apesar de estarem expressamente elencadas entre as hipóteses que permitem a deserdação, são frequentemente afastadas, de acordo com a subjetividade do julgador. Exige-se, em ação judicial póstuma, a prova de que os fatos declarados pelo testador efetivamente ocorreram e que se subsumiram ao tipo legal, cuja taxatividade não admitiria qualquer flexibilização.
Se aprovada a sugestão legislativa, os artigos 1.814, 1.962, 1.963 e 1.965 do Código Civil passariam a contar com as seguintes redações, facilitando, sobremaneira, o exercício e a efetivação da deserdação:
“Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários que:
I – tiverem sido autores, coautores ou partícipes de crime doloso, ato infracional, ou tentativa destes, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, convivente, ascendente ou descendente;
II – tiverem sido destituídos da autoridade parental da pessoa de cuja sucessão se tratar;
III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
IV – que tiverem deixado de prestar assistência material ou incorrido em abandono afetivo voluntário e injustificado contra o autor da herança. (NR)
Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes:
I – ofensa à integridade física ou psicológica;
II – injúria grave;
III – desamparo material e abandono afetivo voluntário e injustificado do ascendente pelo descendente.
IV – REVOGADO (NR)
Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes:
I – ofensa à integridade física ou psicológica;
II – injúria grave
III – REVOGADO
IV – desamparo material e abandono afetivo voluntário e injustificado do filho ou neto.”
Com todo o respeito às críticas contumazes ao PLS 4/2025, muitas delas injustas ou deselegantes, não se pode negar a necessidade de uma completa reformulação nas regras da deserdação, a começar por incluir o “abandono afetivo” como justificativa para ascendentes e descendentes se excluírem reciprocamente da sucessão, por meio do testamento, além de se inverter a lógica da ação de deserdação, cuja legitimidade ativa deve ser transferida ao deserdado, a quem compete impugnar a causa da deserdação, retirando esse ônus dos demais herdeiros, em fortalecimento e valorização do princípio da prevalência da vontade do testador.
Na próxima coluna, retornarei ao tema da deserdação, para apresentar o “estado atual da arte” na jurisprudência brasileira.
[1] Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;III – ao cônjuge sobrevivente;IV – aos colaterais.
[2] Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes: I – ofensa física; II – injúria grave; III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto; IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade. Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes: I – ofensa física; II – injúria grave; III – relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta; IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade.
[3] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166998
[4] Todas as reflexões trazidas neste artigo foram levadas à Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL), criada pelo Ato do Presidente do Senado Federal (ATS) nº 11, de 2023, e encontram-se espelhadas no Anteprojeto apresentado ao Senado em meados de 2024. Como membro efetivo daquela comissão de juristas e também relator da subcomissão de sucessões, coube-me coordenar os debates, ouvir os especialistas e compilar as sugestões recebidas no que tange ao Livro V da Parte Especial do CC.
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