Processo Tributário

Instrumentalidade, Súmula 115/STJ e o agravo de instrumento

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2 de março de 2025, 8h00

A teor do que dispõe o Código de Processo Civil em vigor em relação ao sistema recursal, o artigo 994 [1] define denotativa [2] e taxativamente as espécies de recurso, de modo a oportunizar a correção de eventuais errores decisórios praticados no curso do processo.

Por isso as lições de Pontes de Miranda [3], ao dizer acertadamente que, “[q]uem recorre exige a prestação jurisdicional em novo curso (re-cursus)”, seja em relação a questão de ordem processual (vício de atividade) ou material (vício de juízo), seja perante as instâncias ordinárias (primeiro e segundo graus) ou excepcionais (Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal).

Assim, baseado no diploma de 2015, cujas alterações vieram em prol da instrumentalidade processual, podemos identificar os seguintes atos decisórios recorríveis, quais sejam, as sentenças sem ou com resolução de mérito (artigos 203, § 1º [4] cc 485 [5] e 487 [6]), as decisões interlocutórias parciais sem ou com resolução de mérito (artigos 354 parágrafo único [7] e 356 [8]), as decisões interlocutórias (artigo 203, § 2º [9]), os acórdãos (artigo 204 [10]) e as decisões monocráticas produzidas em tribunal (artigos 932 [11], 1.030 [12] e 1.037, § 10 [13]).

Não se pode incluir nesse rol os despachos. Isso porque, além de não possuírem conteúdo de decisão por se tratarem de atos meramente ordinatórios em prol da organização e o impulsionamento do processo, podendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário (artigo 203, §§ 3º [14] e 4º [15], do CPC), são eles de toda sorte irrecorríveis (artigo 1.001, do CPC).

Por ora deteremos nossa atenção para as significativas alterações no Código de Processo Civil, que tratam do processamento e julgamento perante o agravo de instrumento.

Dedicarnos-emos ao agravo de instrumento, uma vez que, pela sua natureza, detém carga recursal para, agora, desafiar os julgamentos antecipados parciais de mérito (artigos 354, parágrafo único [16] e 356, §5º [17]), as decisões interlocutórias (artigo 1.015 [18] e parágrafo único [19]), bem como aquelas decisões sobre distinção entre a questão a ser decidida e aquela a ser julgada em recurso afetado como repetitivo (artigo 1.037, § 13, inciso I [20]).

Outro critério para o cabimento do agravo

Não podemos deixar de destacar que o agravo de instrumento com muita frequência se sujeita à análise e definição sobre as suas hipóteses de cabimento perante o Superior Tribunal de Justiça [21], por supostamente ter o Código de Processo Civil de 2015 restringido suas hipóteses de cabimento. A esse respeito tivemos importante julgamento realizado sob a sistemática dos recursos repetitivos, nos autos do Recurso Especial nº 1.704.520/MT, em que a Corte Superior, por meio do Tema 988, definiu a tese de que o “rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”.

Com isso queremos demonstrar, no que toca ao agravo de instrumento, que nessa oportunidade foi fixado outro critério para o cabimento desse recurso para além daquelas hipóteses indicadas no artigo 1.015 do CPC, pois, comprovada a “urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação” (efeito imediato), cabível passou a ser a interposição do agravo de instrumento.

Em questões tributárias, considerando o que tratamos até então, a sorte deve ser a mesma, até porque esse instrumento recursal é reiteradamente manejado pelos patronos dos contribuintes e também pelas procuradorias fiscais quando se insurgem, por exemplo, “contra decisão proferida na ação anulatória de débito fiscal relacionado com o lançamento de ICMS, que declarou a decadência de parte dos créditos tributários” [22], ou, “contra decisão de primeira instância que, acolhendo o incidente de desconsideração de personalidade jurídica, julgou procedente o pedido formulado pela Fazenda Nacional e determinou a inclusão do agravante no polo passivo da execução fiscal” [23].

Assim, independentemente das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, fato é que, como todo e qualquer recurso, por quem quer que seja a sua interposição, ele sempre se sujeita à sua respectiva observância constitucional, legal, e às orientações jurisprudenciais, particularmente do Superior Tribunal de Justiça, isso porque, como sói ser, cabe a essa corte dar a interpretação final da lei federal.

Merece a devida observância o tópico que trata acerca do pressuposto de regularidade formal, mais especificamente, aquele relacionado à instrução da petição do agravo de instrumento, pois, nessa espécie recursal, o seu cumprimento se revela obrigatório (artigo 1.017, inciso I [24]), facultativo (artigo 1.017, inciso III [25]) ou até mesmo dispensável (artigo 1.017, §5º [26]).

Quanto ao inciso I, fazendo um comparativo com o revogado Código Processual de 1973, o atual texto, além de exigir as desde antes já reputadas peças essenciais,  decisão agravada, certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado, somou ainda a esse rol a obrigatoriedade da juntada de cópias da petição inicial, da contestação, da petição que ensejou a decisão agravada e algum outro documento oficial que comprove a tempestividade que não a certidão de intimação.

Quanto ao inciso III, não promoveu nenhuma alteração relevante, posto que foi mantida a facultatividade de juntada no ato da interposição do agravo de instrumento de “outras peças que o agravante reputar úteis”.

É no § 5º do artigo 1.017, sem correspondente no Código de Processo Civil de 1973, que nos deparamos com inserção normativa de vanguarda, que busca, inexoravelmente, compatibilizar o CPC/2015 com os ditames da Lei nº 11.419 de 2006, que trata da “informatização do processo judicial”, em prol dos “benefícios advindos da substituição da tramitação de autos em meio físico pelo meio eletrônico, como instrumento de celeridade e qualidade da prestação jurisdicional” (CNJ, Resolução nº 185 de 18/12/2013[27]).

Eis os termos do § 5º do artigo 1.017 do CPC/2015:

“Sendo eletrônicos os autos do processo, dispensam-se as peças referidas nos incisos I e II do caput , facultando-se ao agravante anexar outros documentos que entender úteis para a compreensão da controvérsia”.

Como se nota, ainda que o tema tratado esteja relacionado ao meio pelo qual os autos serão processados, não podemos negar que a instrumentalidade se manifesta de modo contundente à inovação e à tecnologia instalados no nosso ambiente jurisdicional.

Soma-se a isso o disposto no artigo 6º do CPC/2015 que revela a necessidade da cooperação processual e que é direcionada – e deve ser respeitada – por todos os sujeitos do processo, ou seja, aqueles que praticam atos de qualquer natureza, como  partes, Ministério Público, perito e também o juiz, esse último na medida em que atua “como dirigente do órgão que fica equidistante dos demais sujeitos e com a responsabilidade de solucionar o litígio” [28].

Resistência

A par dessas premissas, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, é notório que o § 5º do artigo 1.017 dispensou a juntada, pelo recorrente, dos documentos essenciais ao agravo de instrumento, na exclusiva hipótese de processo eletrônico, não importando em que grau de jurisdição estiver esse recurso sendo processado e julgado.

No entanto, não obstante todo contexto da novel norma processual, ela vem encontrando resistência de aplicabilidade no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, nos julgamentos de recursos especial ou agravo em recurso especial sujeitos às disciplinas do Código de Processo de 2015, manejados contra acórdãos proferidos nos tribunais locais em agravo de instrumento.

Isso por conta do que dispõe o enunciado da Súmula nº 115/STJ, cuja redação é a seguinte:

“Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos”.

Por força da literalidade textual dessa súmula, estabeleceu-se no âmbito do STJ o entendimento de que a dispensa legal “aplica-se a interposição do agravo de instrumento e está voltada à primeira e à segunda instâncias de jurisdição, não alcançando as instâncias superiores, diante da impossibilidade de acesso deste Tribunal Superior aos autos eletrônicos originais” [29].

Em que pese essa orientação jurisprudencial, ela não parece ser a mais acertada.

Primeiramente, porque a mencionada súmula foi aprovada perante o Superior Tribunal de Justiça em 27/10/1994, com vistas, à interpretação e aplicação à luz do Código Processual Civil de 1973. Portanto, considerando a época em que ela foi editada, não se deve admitir a sua incidência na modalidade eletrônica de tramitação de Agravo de Instrumento, cuja aplicação do § 5º do artigo 1.017 deve ser de rigor.

Não bastasse, deve-se entender pelo fundamento da “impossibilidade” de acesso aos autos eletrônicos originais apenas se realmente não fosse localizada, por exemplo, a procuração, a respectiva cadeia de substabelecimentos ou se se tratar de processo sujeito a segredo de justiça (o que eventualmente justificaria a exigência de juntada de cópia dos documentos essenciais).

Entretanto, e mesmo assim, a melhor solução é aquela prevista no § 3º do artigo 1.017, em que “[n]a falta da cópia de qualquer peça ou no caso de algum outro vício que comprometa a admissibilidade do agravo de instrumento, deve o relator aplicar o disposto no art. 932, parágrafo único”, ou seja, a concessão de prazo de cinco dias para a devida correção.

Hora de revisão

Por fim, não se pode ignorar que um enunciado sumular não pode prevalecer diante da superveniência de lei federal cuja norma textualmente determina em sentido contrário. Na hipótese, a Súmula nº 115/STJ não pode ser aplicada em detrimento do novel § 5º do artigo 1.017 do Código de Processo Civil.

Nesse sentido, acresça-se que, em virtude do disposto nos artigos 22, inciso I [30], e 96, inciso I, alínea “a” [31], da Constituição, além da necessária observância pelos tribunais da legislação sobre normas processuais, cuja edição é de competência da União, as leis federais processuais devem prevalecer sobre os enunciados sumulares e atos normativos internos dos tribunais em geral.

Forçoso concluir que não se pode desprestigiar o § 5º do artigo 1.017 do Código de Processo Civil de 2015, fruto das modernas conquistas processuais edificadas a partir dos princípios da cooperação, da instrumentalidade, celeridade e primazia do julgamento do mérito, motivos pelos quais sua incidência, especialmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, deve ser a melhor medida de direito nas hipóteses de julgamento de recursos especial ou agravo em recurso especial no bojo de agravo de instrumento.

Já é hora de revisão desse entendimento, com o necessário afastamento da Súmula 115/STJ.

 


[1] Art. 994. São cabíveis os seguintes recursos:

I – apelação;

II – agravo de instrumento;

III – agravo interno;

IV – embargos de declaração;

V – recurso ordinário;

VI – recurso especial;

VII – recurso extraordinário;

VIII – agravo em recurso especial ou extraordinário;

IX – embargos de divergência.

[2] Defnição denotativa é aquela em que são enumerados os objetos que compõem determinada classe ou, por outras palavras, compreende o conjunto de objetos que estão inseridos nessa classe (no contexto do artigo: na classe de recursos).

[3] Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo VII, Forense, São Paulo, 1975, p. 34.

[4]  Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485  e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.

[5] O juiz não resolverá o mérito quando: […].

[6] Haverá resolução de mérito quando o juiz: […].

[7] A decisão a que se refere o caput [arts. 485 e 487, incisos II e III ] pode dizer respeito a apenas parcela do processo, caso em que será impugnável por agravo de instrumento.

[8] O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: […].

[9] Decisão interlocutória é todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre no § 1º [arts. 485 e 487].

[10] Acórdão é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais.

[11] Incumbe ao relator: […]

[12]  Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá: […].

[13] O requerimento a que se refere o § 9º [“…distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso especial ou extraordinário afetado…”] será dirigido: […].

[14] São despachos todos os demais pronunciamentos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte.

[15] Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário.

[16] A decisão a que se refere o caput [arts. 485 e 487, incisos II e III ] pode dizer respeito a apenas parcela do processo, caso em que será impugnável por agravo de instrumento.

[17] A decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento.

[18] Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre: […].

[19] Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário.

[20] Da decisão que resolver o requerimento a que se refere o § 9º [“…distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso especial ou extraordinário afetado…”] caberá: I – agravo de instrumento, se o processo estiver em primeiro grau;

[21] Confira-se: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/STJ-define-hipoteses-de-cabimento-do-agravo-de-instrumento-sob-o-novo-CPC.aspx

[22] STJ, AgInt no REsp 2.160.422/RS.

[23] STJ, AgInt no AREsp 2.275.587/SP.

[24] I – obrigatoriamente, com cópias da petição inicial, da contestação, da petição que ensejou a decisão agravada, da própria decisão agravada, da certidão da respectiva intimação ou outro documento oficial que comprove a tempestividade e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado;

[25] III – facultativamente, com outras peças que o agravante reputar úteis.

[26] § 5º Sendo eletrônicos os autos do processo, dispensam-se as peças referidas nos incisos I e II do caput , facultando-se ao agravante anexar outros documentos que entender úteis para a compreensão da controvérsia.

[27] https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/1933

[28] José Augusto Delgado, Sujeitos do Processo, Revista de Processo: RePro, São Paulo, v. 8, n. 30, abr./jun. 1983, pág 66.

[29] Dentre outros, citamos exemplificativamente: o AgInt no AREsp 2628789/MS, o AgInt nos EDcl no AREsp 2643003/SP e o AgInt no AREsp 1907625/BA.

[30] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito […] processual, […];

[31] Art. 96. Compete privativamente: I – aos tribunais: a) […] elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, […];

Autores

  • é mestre em Direito Tributário, pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade de Salamanca (Espanha), especialista em Direito Processual Tributário, professor do Ibet, pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e advogado.

  • é especialista em Direito Processual Civil, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Viçosa e advogado.

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