Lançamento definitivo do crédito tributário como condição objetiva de punibilidade
31 de janeiro de 2025, 13h21
Na perspectiva de tutelar criminalmente a ordem tributária, extensas discussões foram e ainda são realizadas no âmbito do sistema jurídico pátrio, a fim de evitar a criminalização infrutífera dos agentes dessa espécie delitiva. Neste contexto, em dezembro de 2009, fora consolidada no Supremo Tribunal Federal, a Súmula Vinculante nº 24 [1], dispondo que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90 [2], antes do lançamento definitivo do tributo”. Tal comando teve como precedente o Habeas Corpus nº 81.611-SP [3], no qual, consideravam-se inexistentes os elementos para justa causa de ação penal que pendesse de decisão definitiva a respeito do lançamento de crédito tributário em sede administrativa.
O caso em que se desenvolveu o precedente constava em sua denúncia que o réu, sócio majoritário de uma empresa de imóveis na cidade de São Paulo, firmou dois contratos entre agosto de 1991 e novembro de 1993, envolvendo a venda de sua empresa e uma prestação de serviços referentes a um outro empreendimento. De acordo com o Ministério Público, a Receita Federal, ao verificar que não continha nenhum rendimento nas declarações apresentadas pelo réu referente aos anos de 1991 a 1993, decidiu iniciar procedimento de fiscalização em face dos contratos firmados, o que levou a apreensão destes posteriormente.
Na ocasião, foi atestado que ainda que demonstrados os recibos fiscais emitidos com suas receitas devidamente auferidas, o réu nunca havia lançado tais valores no livro contábil de sua empresa, o qual, segundo o MP, sequer tinha certeza se existia. Assim, decidiu o parquet oferecer a denúncia em face do réu pela prática do crime do artigo 1º da Lei nº 8.137/90 [4], qual seja, o de suprimir ou reduzir tributo.
Denúncia e Habeas Corpus
A denúncia foi recebida pelo Juízo da 4ª Vara Criminal de São Paulo, e a defesa imediatamente impetrou habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 3ª região, sob os fundamentos de que a denúncia havia sido oferecida e recebida antes da apreciação definitiva do lançamento do tributo em sede administrativa. Nas razões apresentadas defensivamente, utilizava-se como parâmetro legal o Decreto nº 70.235/1972 [5], que rege o procedimento administrativo fiscal. Além disso, sustentava-se o artigo 83 da Lei nº 9.430/1996 [6] como sendo requisito de procedibilidade a comunicação da apuração do suposto crime tributário ao Ministério Público somente após o exaurimento da via administrativa.
No entanto, a ordem foi denegada, argumentando o Juízo que o MP poderia promover a ação penal tributária quando possuísse elementos suficientes de autoria e prática delitiva e que a comunicação da Receita Federal ao órgão acusador sobre a apuração da infração não era condição de procedibilidade para as ações penais.
Após incansáveis interposições recursais, a defesa novamente impetrou HC, desta vez no Supremo Tribunal Federal, restando assim sua ementa decisória:
EMENTA: I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 – que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal. 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo. (HC 81611, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2003, DJ 13-05-2005 PP-00006 EMENT VOL-02191-1 PP-00084)
Condição objetiva de punibilidade
A meticulosa discussão teve como voto protagonista o do relator à época, ministro Sepúlveda Pertence, que concedeu a ordem do HC com base em argumentos que divergiram de posições da Corte. Um dos mais contestados foi o de que o lançamento definitivo do tributo atuaria como condição objetiva de punibilidade do ilícito penal. Isto significa condicionar o delito do crime tributário a uma condição externa, neste caso, o lançamento do crédito em via administrativa.
Não obstante, mediante todas as contestações em face do HC nº 81.611-SP [7], o precedente foi tomado como base para a criação da Súmula Vinculante nº 24 [8], sedimentada em 2009, tendo sido ultrapassado mais de dez anos e, ainda assim continua a causar controvérsias no meio jurídico. Na súmula, restou definido que não se tipificaria crime contra a ordem tributária antes do exaurimento da questão em sede administrativa. Infere-se, portanto, a caracterização de uma suposta condição objetiva de punibilidade, que, como será demonstrado, é afronta direta ao princípio da independência de instâncias.
Para melhor compreensão, cumpre contextualizar o assunto na ótica do direito tributário e do direito penal. A priori, lembra-se que o crédito tributário é constituído a partir de seu efetivo lançamento, assim como preceitua o artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN) [9]. Por lançamento tributário, aduz Hugo de Brito Machado como sendo:
O procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível [10].
Obrigação tributária surge com o fato gerador
A obrigação tributária surge quando identificado o fato gerador do dever de pagar determinado tributo, contido em norma legal. Por conseguinte, o lançamento do crédito é o procedimento em que se averigua a origem do tal fato gerador. Havendo o lançamento, poderá o contribuinte impugná-lo administrativamente ou efetuar seu pagamento. Só após decorrida esta fase é que se tem a constituição definitiva do crédito.
À vista disso, dos argumentos que sustentam a SV 24, depreende-se que para o início do processo penal contra crime tributário, haverá de se aguardar o fim do citado procedimento administrativo, ou seja, a constituição definitiva do crédito.
Em rasa percepção, até compreensível o fato de que, do lançamento tributário é que se identificam o sujeito ativo e passivo da relação, bem como a liquidez da obrigação de pagar tributo. Entretanto, em outra ótica, a súmula impede que a persecução penal seja iniciada antes de findado o procedimento administrativo tributário, evidenciando um enfrentamento ao princípio da independência das instancias, uma vez que o início do processo penal estaria dependente de outra esfera, qual seja, a administrativa.
É crucial lembrar que determinada conduta pode ser caracterizada como um ilícito penal, cível e administrativo, concomitantemente. Da mesma forma que pode se caracterizar como um ilícito administrativo e cível, mas distante de um ilícito penal. Por isso, conferir autonomia às respectivas esferas julgadoras é de extrema importância, uma vez que não se pode penalizar um indivíduo de maneira totalmente desproporcional ao ato por ele cometido e jamais em esfera distinta daquela em que ele infringiu.
Vinculação do Código de Processo Penal
Por sua vez, o Código de Processo Penal (CPP) consubstancia mediante o artigo 386, incisos I e IV [11], as hipóteses em que haverá a vinculação de esferas, indicando casos em que a decisão da seara criminal ordenará as demais:
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
I – estar provada a inexistência do fato; (…)
IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal
Notório tratar de hipóteses de sentenças penais absolutórias em que se conclui pela inexistência de fato ou negativa de autoria. Não há como não vincular decisões em outras esferas à essa, uma vez que é impossível condenar administrativamente ou civilmente uma pessoa que, ou não cometeu um ilícito, ou esse ilícito não aconteceu.
Todavia, a súmula abordada neste texto ignora as hipóteses excedentes do CPP quando vincula o processo penal à decisão meramente administrativa.
Da súmula, compreende-se que o procedimento administrativo tributário serve como standard probatório suficiente para o processo penal, satisfazendo ao julgador apenas o elemento produzido em sede administrativa, que por vez, ignora princípios basilares do processo penal, como a própria presunção de inocência, de forma a obstar o crivo do contraditório judicial, como assertivamente destacou Rogério Fernando Tafarello:
Ignoram, destarte, as distinções de standards probatórios entre a seara administrativa e a criminal, bem como o fato de que a operatividade própria do processo administrativo tributário contenta-se, muita vez, com presunções inaceitáveis no processo penal — em que só a inocência se presume —, e ignoram que, para o Direito Processual Penal, prova é, por conceito, aquela produzida em contraditório judicial.[12]
Entendimento anterior do STF
Outro fato curioso e, diga-se de passagem, controverso, é que antes da SV 24, o entendimento que vigorava na Suprema Corte era o de que, por ser o delito de supressão ou redução de tributo um crime de ação pública incondicionada, o Ministério Público poderia iniciar a persecução penal a qualquer momento, desde que preenchidos os requisitos mínimos de autoria e materialidade.
Indo além, essa corrente era defendida ainda que existente o artigo 83 da Lei nº 9.430 de 1996 [13], que determinava às autoridades da administração tributária o aguardo do lançamento definitivo para só então levarem o fato ao conhecimento do Ministério Público para a propositura da ação penal. De acordo com a corte, essa obrigação era destinada somente aos agentes, exclusivamente, administrativos.
Inclusive, lembra-se voto do ministro Néri da Silveira no HC 77.002 [14] expressando exatamente o entendimento predominante aquela época:
[..] Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei n° 9430, de 27.12.1996, art. 83. 3. Arguição de inconstitucionalidade da norma impugnada por ofensa ao art. 129, I, da Constituição, ao condicionar a notitia criminis contra a ordem tributária “a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário”, do que resultaria limitar o exercício da função institucional do Ministério Público para promover a ação penal pública pela prática de crimes contra a ordem tributária. 4. Lei n° 8.137/1990, arts. 1o e 2o. 5. Dispondo o art. 83, da Lei n° 9.430/1996, sobre a representação fiscal, há de ser compreendido nos limites da competência do Poder Executivo, o que significa dizer, no caso, rege atos da administração fazendária, prevendo o momento em que as autoridades competentes dessa área da Administração Federal deverão encaminhar ao Ministério Público Federal os expedientes contendo notitia, criminis, 15 acerca de delitos contra a ordem tributária, previstos nos arts. 1o e 2º, da Lei nº 8.137/1990. 6. Não cabe entender que a norma do art. 83, da Lei n° 9.430/1996, coarcte a ação do Ministério Público Federal, tal como prevista no art. 129, I, da Constituição, no que concerne à propositura da ação penal, pois, tomando o MPF, pelos mais diversificados meios de sua ação, conhecimento de atos criminosos na ordem tributária, não fica impedido de agir, desde logo, utilizando-se, para isso, dos meios de prova a que tiver acesso. 7. O art. 83, da Lei n° 9.430/1996, não define condição de procedibilidade para a instauração da ação penal pública, pelo Ministério Público. 8. Relevância dos fundamentos do pedido não caracterizada, o que é bastante ao indeferimento da cautelar. 9. Medida cautelar indeferida.
Contudo, essa vertente acabou superada anos depois, tendo a decisão majoritária contrariado seus próprios ideais e agindo de forma arbitrária para vincular esferas distintas em prol de uma suposta “segurança jurídica”.
Dessa forma, oportuno salientar que a vinculação do poder judiciário à decisão administrativa obsta, não somente as garantias e princípios do processo penal, como também abre margem para eventuais impunidades estatais, uma vez que em situação hipotética, poderá haver material probatório suficiente para o início da persecução penal, ainda que em sede administrativa haja decisão diversa daquela que comanda a SV 24 para o início do procedimento. Nesse sentido, ficaria o Estado impedido de agir, mesmo havendo indícios de que o deveria fazer.
[1] Idem
[2] Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
[3] Idem
[4] Idem
[5] BRASIL. Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972. Dispõe sobre o procedimento administrativo fiscal e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d70235cons.htm. Acesso em: jun./2023.
[6] Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Habeas Corpus 81.611-8. Paciente: Luiz Alberto Chemin. Impetrante: José Eduardo Rangel de Alckmin e outro. Relator: Sepúlveda Pertence, 10 de dezembro de 2003. Disponível em: < https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur95121/false>. Acesso em: jun./2023.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 24. Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo. Sessão Plenária de 02/12/2009. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula773/false> Acesso em: jun./2023.
[9] Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
[10] SEGUNDO, Hugo de Brito M. PROCESSO TRIBUTÁRIO. Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559774357. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559774357/. Acesso em: 20 mai. 2023.
[11] Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
I – estar provada a inexistência do fato;
IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal;
[12] FERNANDO TAFARELLO. Rogério. INSEGURANÇA JURÍDICA NOS CRIMES TRIBUTÁRIOS E PREVIDENCIÁRIOS E O PAPEL DOS TRIBUNAIS. Conjur, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-23/rogerio-taffarello-crimes-tributarios-previdenciarios-tribunais
[13] Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.
[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Habeas Corpus 7702/QO/RJ. Paciente: Augusto Pinto Boal. Impetrante: Renato Neves Tonini e outros. Relator: Min. Néri Da Silveira, 21 de novembro de 2001. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur100327/false>. Acesso em: jun./2023.
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