Opinião

Da prerrogativa dos advogados à palavra pela ordem

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  • é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor de Direito Civil da Faculdade de Direito do Mackenzie e do Ibmec.

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31 de janeiro de 2025, 6h04

Dedico este texto ao professor José Rogério Cruz e Tucci, advogado que me inspira, me serve de modelo e que, por isso, procuro imitar

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A palavra advogado vem do latim advocatus, particípio de advoco, que significa aquele que é chamado ao auxílio de alguém [1]. Todo aquele que falava em defesa de alguma pessoa ou instituição era chamado de advogado. Daí que só recentemente [2] a palavra advogado passou a denotar exclusivamente o profissional habilitado que atua na defesa dos interesses jurídicos de outrem.

O uso da palavra escrita e verbal é condição de possibilidade do exercício da advocacia, isto é, da função de representar interesses jurídicos alheios.

Por essa razão, os advogados sempre lutaram para falar e os tiranos sempre lutaram para calá-los.

Em seu O advogado e a Moral, Maurice Garçon, ao narrar a reação de Napoleão a um decreto que restituía prerrogativas aos advogados, conta que as palavras do déspota foram: “O decreto é absurdo. Tira-nos os meios de acção contra os advogados. São uns facciosos, uns fautores de crimes e de traições. Enquanto tiver esta espada à cinta, não assinarei tal decreto. Quero que se possa cortar a língua de quem dela se servir contra o Governo” [3].

Esse é só um dos inúmeros exemplos de ataque dos poderes públicos aos advogados [4].

Visando justamente ao livre exercício de sua função para a eficaz defesa dos interesses que lhe foram confiados, os advogados sempre lutaram para que lhes fossem garantidos certos “direitos” — cuja denominação técnica é prerrogativas.

Não se trata, como poderia parecer, de mera questão semântica. Quando se diz que alguém é titular de um direito, está-se a falar do que se convencionou chamar de direito subjetivo, que, em linhas gerais, é uma vantagem que serve ao seu titular.

Já quando se diz que alguém tem certas prerrogativas, está-se referindo à titularidade de vantagens que necessariamente servem a terceiros.

As prerrogativas dos parlamentares federais, como a imunidade por opiniões, palavras e votos [5]; as prerrogativas dos membros do Judiciário e do Ministério Público, como a inamovibilidade, e as prerrogativas dos advogados, como a de se avistar com seus clientes mesmo presos, mostram claramente que o interesse protegido pelas prerrogativas [6] é o de terceiros, isto é, dos eleitores, jurisdicionados e clientes.

Há entre as prerrogativas dos advogados [7] cinco que dizem diretamente com o uso da palavra, quais sejam: (1) dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada; (2) realizar a sustentação oral no recurso interposto contra a decisão monocrática de relator que julgar o mérito ou não conhecer dos seguintes recursos ou ações: recurso de apelação; recurso ordinário; recurso especial; recurso extraordinário; embargos de divergência; ação rescisória, mandado de segurança, reclamação, habeas corpus e outras ações de competência originária; (3) usar da palavra, pela ordem, em qualquer tribunal judicial ou administrativo, órgão de deliberação coletiva da administração pública ou comissão parlamentar de inquérito, mediante intervenção pontual e sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, a documentos ou a afirmações que influam na decisão; (4) reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento; (5) falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da administração pública ou do Poder Legislativo.

Neste primeiro texto [8], analisaremos a prerrogativa do uso da palavra pela ordem.

1. Uso da palavra pela ordem

Em que pese a Ordem dos Advogados do Brasil ter sido criada em 1930, somente em 1963 ela foi estruturada, o que se deu pela Lei nº 4.215/63, primeiro Estatuto da Ordem dos Advogados [9].

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Em seu artigo 89, essa lei arrolava os direitos (rectius: prerrogativas) dos advogados e em seus incisos X e XI [10] incluía os de: X – pedir a palavra, pela ordem, durante o julgamento, em qualquer juízo ou tribunal para, mediante intervenção sumária e se esta lhe for permitida a critério do julgador, esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam ou possam influir no julgamento; XI – ter a palavra, pela ordem, perante qualquer juízo ou tribunal, para replicar a acusação ou censura que lhe sejam feitas, durante ou por motivo do julgamento.

Segundo Ruy de Azevedo Sodré [11], esses dispositivos tiveram origem na Lei nº 2.970/1956.

Essa lei, batizada informalmente de lei Castilho Cabral, em homenagem ao seu autor, alterou o artigo 875 do Código de Processo Civil de 1939, para permitir que o advogado sustentasse oralmente suas razões após o voto do relator.

Na justificação ao seu projeto [12] (Projeto nº 44/51), aduziu que:

“(…) Nada mais torturante para os advogados, que, crentes da “oralidade”, ainda se dão ao trabalho de sustentar na tribuna forense os direitos que defendem – do que não poderem retificar erros ou equívocos de um relatório falho e defeituoso, porque, muitas vezes, só no voto, propriamente dito, é que o relator do feito refere fato ou circunstância importante omitidos na exposição.

Um simples aparte do advogado desfaria o erro ou o equívoco do relator, possibilitando aos juízes que não examinaram o processo um melhor conhecimento da causa. O aparte, porém, – mesmo que o “breve e conciso” do estilo parlamentar – proibido com tal rigor que, quando a ele se atreve um advogado mais afoito ou dedicado, é recebido como uma afronta ao Tribunal.

Conta o eminente professor de Direito e advogado Noé Azevedo, presidente do Conselho da Ordem, secção de São Paulo, em seu “Notas Jurídicas”, pg. 119 – que a intromissão de um aparte de advogado provocou tal reação no tribunal paulista que, em assento tomado por suas Câmaras Conjuntas,

“Se erigiu em verdadeiro crime a interrupção de um voto, com o esclarecimento que o advogado pretendesse ministrar. Deixou-se o presidente armado de sanções, verdadeiramente fulminantes, para impedir a renovação dessas tentativas.”

Difícil será encontrar um advogado militante que, em sua vida profissional, não conte pelo menos um caso de íntima revolta contra o silêncio que a lei processual, ou o regimento ou assentos do tribunal, lhe impôs ante o equívoco ou erro, que um aparte rápido desfaria, do relator do feito.

Em defesa de um aparte que, certa vez, não sopitamos frente ao tribunal, assim o justificamos:

*”Não sopitou, porque insopitável é um grito d’alma, e de alma de quem em toda a sua vida mais não fez do que lutar pelo Direito e pela Liberdade.

E, cáia embora sôbre êle a ira sagrada do Olimpo! – de sopitar não seria, mesmo que sopitável fôsse. Acima dos homens, e dos tribunais, está o Direito. Acima da praxe, está a Justiça. Castigado por clamar Justiça, não é ser castigado, é ser honrado.

Clamando Justiça. VIEIRA, que era VIEIRA, e era padre, ousou dizer a Deus, que era, e é Deus: ‘Não hei de pedir pedindo senão protestando, e argumentando; pois esta é a licença, e liberdade. que tem, quem não pede favor, senão justiça.’*

Se VIEIRA, que era VIEIRA, e era padre, assim ousou imprecar a Deus, que era, e é Deus – e não foi castigado; justo é que o não seja também o advogado que não imprecou ao Tribunal, nem tão ousadamente protestou, mas somente não impediu saísse de seu peito, sem estrépito desrespeitoso, mas em apenas audível voz, a frase que, ela sim, por si mesma, clamava por justiça, pela correção de um equívoco manifesto de um Juiz, que é juiz, e ilustre, e honrado, mas não é Deus!”

Outras vezes, sucedem-se na tribuna os patronos do recorrente e do recorrido; esgotam, com proficiência e dedicação, os fatos e o mérito da causa, para, logo em seguida, perceberem quão inútil e fastidioso foi o seu esforço, de vez que o relator dá, e os demais juízes que não examinaram o processo o seguem, por uma preliminar inexpressiva…

A correção da falha processual não estaria em se permitir, em lei, o aparte nos julgamentos dos juízes coletivos, dada a dificuldade de bem contê-lo nos limites impostos pela austeridade da Justiça.

A nosso vêr, a modificação proposta no presente projeto de lei melhor soluciona o problema.

A simples transferência do debate oral para depois de proferido o voto integral do relator, proporcionará aos advogados a correção, respeitosa, de qualquer erro de fato ou equívoco de direito praticado pelo relator, que, em seguida, manterá ou não o seu entendimento, na forma que estipular o regimento interno do tribunal. (…)”

Dois dias depois de sua entrada em vigor, o Supremo Tribunal Federal julgou essa lei inconstitucional sob o argumento de que ela violava o regimento interno do tribunal. Como lenitivo, o então Estatuto da Ordem dos Advogados incluiu os dispositivos citados.

A prerrogativa de uso da palavra pela ordem contava, então, com dois regimes jurídicos diversos. Pelo inciso X, o advogado teria o direito de pedir a palavra pela ordem e, se essa lhe fosse concedida, poderia esclarecer o equívoco ou dúvida.

Já pelo inciso XI, o advogado teria o direito de tomar a palavra pela ordem para replicar acusação ou censura que lhe fossem feitas durante ou por razão do julgamento.

Percebe-se que a prerrogativa era pouco eficiente porque, para a situação mais necessária — que é a de apontar equívoco do magistrado –, seu exercício dependia de licença do tribunal.

Com a entrada em vigor da Lei nº 8.906/94 — atual Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil —, a prerrogativa do uso da palavra pela ordem se tornou bastante mais efetiva.

Com efeito, em sua redação original, o inciso X do artigo 7o dispunha que é prerrogativa do advogado usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas.

A utilização da palavra pela ordem, portanto, independe de licença ou concessão do magistrado, tribunal ou de qualquer outra autoridade.

Exerce-se a prerrogativa interrompendo-se o orador que está com a palavra mediante a locução pela ordem, seguida imediatamente do esclarecimento ou apontamento que deva ser feito. Isto é, não se aguarda que a palavra pela ordem seja concedida pela autoridade que preside o ato [13].

Cabe apontar que a Lei 14.365/2022, supondo ampliar os direitos dos advogados, alterou substancial e desatentamente o Estatuto da OAB [14].

O inciso X do artigo 7o passou a ter a seguinte redação: usar da palavra, pela ordem, em qualquer tribunal judicial ou administrativo, órgão de deliberação coletiva da administração pública ou comissão parlamentar de inquérito, mediante intervenção pontual e sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, a documentos ou a afirmações que influam na decisão.

A nova redação incluiu tribunais administrativos, órgãos da administração pública e comissões parlamentares de inquérito, mas, sem querer — esperamos — revogou os trechos legais que garantem o uso da palavra pela ordem em juízo singular e para replicar acusação ou censura que forem feitas ao advogado.

É evidente que a interpretação sistemática da norma autoriza afirmar que tais prerrogativas continuam plenamente em vigor, mas não deixa de ser lamentável o descuido do legislador.

2. Questão de ordem

No meio jurídico há certa confusão sobre o uso da palavra pela ordem e a oposição de questão de ordem.

A oposição de questão de ordem refere-se à intervenção do advogado – ou de quem quer que tenha legitimidade – para apontar o descumprimento de norma jurídica.

No glossário do Congresso Nacional, lê-se que a questão de ordem é o ato por meio do qual o parlamentar suscita dúvida sobre a interpretação do regimento interno, na sua prática exclusiva ou relacionada com a Constituição Federal [15].

O Estatuto da Advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil, embora sem se valer da expressão questão de ordem, reconhece-a como prerrogativa dos advogados.

Com efeito, o inciso XI do artigo 7o do EAOAB dispõe que é prerrogativa do advogado reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento.

Assim, e a título de exemplificação, imaginemos dois casos: no primeiro, durante a prolação do voto, o relator afirma que determinada pessoa faleceu quando na verdade está viva; no segundo, o presidente da sessão de julgamento determina que o advogado do apelado sustente oralmente antes do advogado do apelante, quando o regimento interno do tribunal determina o contrário.

No primeiro caso, deve o advogado valer-se da palavra pela ordem para apontar o erro de fato do julgador, isto é, para dizer que a pessoa que ele supunha morta está viva; no segundo, o advogado deve opor questão de ordem, apontando a violação da norma regimental e postulando que seja observada.

Tal qual o exercício da prerrogativa do uso da palavra pela ordem, a prerrogativa de opor verbalmente questão de ordem independe de licença ou concessão da autoridade que preside o ato.

Conclusão

De acordo com vetusta lição de Direito Administrativo, não há hierarquia entre órgãos com diferentes competências.

Quando o artigo 6o do EAOAB dispõe que não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos, nada mais faz do que declarar questão de direito.

A diversidade de competências implica, porém, a diversidade de funções, razão pela qual cada sujeito do processo tem papel específico e insubstituível.

Se é verdade que o advogado tem as prerrogativas da palavra pela ordem e da oposição de questões de ordem, é igualmente verdadeiro que cabe ao juiz presidir a audiência e, munido do poder de polícia – que carece aos advogados e membros do Ministério Público –, manter a ordem e o decoro dos trabalhos.

O caráter conflitivo dos interesses submetidos a julgamento não pode ser desculpa para que advogados e juízes extrapolem seus papéis. A cordialidade e a boa educação, longe de serem sinais de fraqueza ou submissão, são instrumentos retóricos utilíssimos para o convencimento alheio.

Não nos esqueçamos do que disse Desdêmona ao Mouro de Veneza: “Entendo a cólera de vossas expressões, não as palavras”.

 


Referências bibliográficas

BRASIL. Glossário legislativo: questão de ordem. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/legislacao-e-publicacoes/glossario-legislativo/-/legislativo/termo/questao_de_ordem.  Acesso em: 21 jan. 2025.

BRASIL. Projeto de Lei n. 44, de 1951. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1221615&filename=Dossie-PL%2044/1951.  Acesso em: 21 jan. 2025.

DOMINGUES, Alexandre de Sá. Pela ordem! A essência da defesa das prerrogativas nos tribunais. In: SICA, Leonardo (Org.). Honorários e prerrogativas: pilares da advocacia. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024. p. 24.

GARÇON, Maurice. O advogado e a moral. Arménio Amado editor, Coimbra 1967, tradução de A.S. Madeira Pinto, p. 42

SODRÉ, Ruy de Azevedo. A ética profissional e o estatuto do advogado. 4. ed. São Paulo: LTR, 1991.

TORRINHA, Francisco. Dicionário latino-português. Porto: Gráficos Reunidos LDA, 1937, verbete revelar, p. 25

[1] TORRINHA, Francisco. Dicionário latino-português. Porto: Graficos Reunidos LDA, 1937, verbete revelar, p. 25

[2] Até a criação da Ordem dos Advogados Brasileiros, pelo decreto 19.408/1930, qualquer um, independentemente de ter cursado faculdade de direito, poderia advogar.

[3] GARÇON, Maurice. O advogado e a moral. Arménio Amado editor, Coimbra 1967, tradução de A.S. Madeira Pinto, p. 42

[4] Não nos enganemos pensando que o ódio à voz dos advogados é matéria do passado. Se o velho Napoleão queria cortar literalmente a língua dos advogados, o novíssimo Conselho Nacional de Justiça cortou-a metaforicamente ao editar a hedionda Resolução n. 591/2024, que, na prática, acaba com o direito dos advogados à sustentação oral.

[5] Embora recentes decisões do Supremo Tribunal Federal possam sugerir o contrário, essa prerrogativa constitucional ainda não foi formalmente revogada.

[6] A Lei Orgânica da Magistratura foi técnica ao nomear como garantias e prerrogativas, e não direitos, as normas que visam a assegurar a independência do magistrado (arts. 25 a 34 da lei Complementar 35/79). Já o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil equivocadamente usou a expressão “direitos do advogado” (art. 7o da lei 8.906/1994).

[7] Confira-se o artigo 7o da lei 8.906/1994.

[8] Parafraseando Machado de Assis, em tendo tempo, talento e papel, escreverei sobre cada uma das prerrogativas do advogado; por enquanto só tenho o papel.

[9] Para a história completa da criação da OAB, confira-se, de Ruy de Azevedo Sodré, a obra A ética profissional e o estatuto do advogado, LTR, São Paulo, 4a edição, 1991.

[10] Por erro material, consta da lei inciso XII quando o correto é XI.

[11] SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit, p. 581.

[12] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1221615&filename=Dossie-PL%2044/1951

[13] Neste sentido, DOMINGUES, Alexandre de Sá. Pela ordem! A essência da defesa das prerrogativas nos tribunais. In: SICA, Leonardo (Org.). Honorários e prerrogativas: pilares da advocacia. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024. p. 24.

[14] Entre os equívocos da lei, figura em lugar de honra a revogação da imunidade profissional do advogado contra injúria e difamação.

[15] Disponível em https://www.congressonacional.leg.br/legislacao-e-publicacoes/glossario-legislativo/-/legislativo/termo/questao_de_ordem

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