Contratação irregular e enriquecimento injusto da Administração Pública
31 de janeiro de 2025, 10h22
Adianta-se, desde já, que o objetivo do presente artigo é abordar, sem qualquer intenção definitiva, a dificultosa temática dos contratos irregulares e suas consequências no âmbito da Administração Pública, abrindo espaço para novas discussões decorrentes da vertente principal enraizada na vedação do enriquecimento ilícito por uma das partes.
É notório que o caminho natural para a formação de um vínculo contratual com a Administração Pública decorre de um prévio processo licitatório, amplamente detalhado na Lei nº 14.133/2021. Logo, salvo hipóteses antecipadamente previstas em norma jurídica, o contrato administrativo perpassa por uma objetividade quanto à escolha do contratado.
Teoricamente, mesmo nos contratos administrativos (ou simplesmente contratos, conforme nomenclatura da Lei das Estatais — Lei nº 13.303/2016) que decorrem de contratação direta, há um vínculo contratual naturalmente formalizado, que singulariza a neutralidade da Administração contratante e em plena adstrição aos vários elementos enumerados no instrumento convocatório, nomeadamente ao prazo de duração do contrato.
Certo é que, alheia à catalogação legislativamente definida como perfeita, a realidade fática demonstra situações que configuram, por um ou mais aspectos, contratações irregulares (contratos sem precedência de licitação, prorrogação verbal de contratos com prazo de duração finalizado, dentre outros inumeráveis exemplos), as quais podem ser contundentemente mais acentuadas ou menos graves, sendo certo que, em todos os casos, prepondera o informalismo.
Porém, das contratações irregulares surgem efeitos concretos, cujo embate quase sempre não é pacífico. Doutrina e jurisprudência tateiam diversos caminhos, em busca de saídas que acolham o interesse (público primário) da Administração Pública e, ao mesmo tempo, não causem prejuízos ao contratado (epíteto de utilização possivelmente equivocada em se tratando de vínculos irregulares).
Todavia, inegável que o receio quanto à vulgarização — como se regra fosse — do irregular vínculo contratual em que se submete a Administração Pública como contratante contrai os órgãos de controle, inibindo qualquer ousadia interpretativa. Este é, sem dúvidas, o primeiro e mais delicado aspecto a ser enfrentado.
Trata-se de um tema recorrente, em que a ilegalidade não pode ocultar o benefício alcançado pela Administração Pública, do qual sobressai a necessidade de ressarcimento e, para confrontar o pagamento das devidas compensações, diversas vias são utilizadas — enriquecimento injusto, revisão pelos órgãos de controle interno, responsabilidade contratual, perdas e danos (…).
Porém, como acima mencionado, todas estas vias acabam sendo questionadas pelos órgãos consultivos ou de fiscalização, os quais, apegados ao mundo da normatividade ideal, tendem a rotulá-las como fraudulentas ou excepcionais e, por vezes, como impassíveis de qualquer compensação. Além do mais – e como reforço à designação de fraudulenta —, entona-se uma técnica de responsabilidade exclusiva do contratado, na tentativa de liberar o dever de indenizar imposto à Administração.
Avanço
É fato notório que houve um significativo avanço quanto ao saneamento das irregularidades pela Lei nº 14.133/2021, bem como uma inconteste melhoria na técnica da declaração das nulidades e seus efeitos, contidos, especialmente (mas sem prejuízo de outras dispositivos legais), no artigo 147 da referida lei.
Conquanto já não mais vigente, o parágrafo único do artigo 59 da anterior Lei nº 8.666/1993 já possibilitava a indenização ao contratado pelo que houvera sido executado, independentemente da nulidade apontada. Todavia, a ressalva quanto à indenização — mesmo sendo nulo o ato praticado e declarada sua nulidade — constava na parte final do referido parágrafo único, confinando o direito à compensação apenas se a nulidade não fosse imputável ao contratado.
Portanto, a despeito da literalidade da norma-regra, a compensação indenizatória muitas vezes era retida pelos órgãos de controle, apegando-se ao argumento de uma pretensa hipossuficiência da Administração Pública em identificar contratados fraudulentos e atribuindo a estes a exclusividade do dano causado. Neste espaço de máxima interpretação subjetiva (usualmente exercida pelos órgãos de controle e fiscalização), enriquecimentos ilícitos ganharam terreno.
Seguindo quase que a mesmíssima redação do parágrafo único do artigo 59 da Lei nº 8.666/1993, o artigo 149, da Lei nº 14.133/2021 parece priorizar a vedação do enriquecimento ilícito, mantendo, lastimavelmente, a mesma tônica subjetiva de transferência da culpa ao contratado:
“Art. 149. A nulidade não exonerará a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que for declarada ou tornada eficaz, bem como por outros prejuízos regularmente comprovados, desde que não lhe seja imputável, e será promovida a responsabilização de quem lhe tenha dado causa.”
Considerando que esse “desvio irregular” não é privilégio apenas da Administração Pública brasileira, soluções devem ser buscadas, inclusive no Direito Comparado. Como um bom exemplo, a Espanha tem se valido (a depender, por certo, das comunidades autônomas e órgãos julgadores, bem como da singularidade de cada caso em concreto), de diferentes vias para confrontar a contratação irregular e suas controvérsias: a) enriquecimento sem causa; b) revisão de ofício; c) responsabilidade extracontratual; d) responsabilidade contratual; e) reconhecimento extrajudicial de créditos [1].
Mesmo não existindo uma perfeita identidade entre o Direito Administrativo Espanhol e o ordenamento jurídico brasileiro, importa registrar, contudo, que as soluções encontradas no Direito Comparado irrompem algumas barreiras, sendo possível refletir sobre o tema de maneira mais ampla e aberta.
Não há no Brasil — assim como no Direito Administrativo espanhol (nosso simplório paradigma) — uma sintonia perfeita entre os órgãos de controle e fiscalização quanto à metódica de como proceder nos casos de contratos irregulares. O caminho menos problemático – entretanto, mais injusto – é atribuir a culpa ao empresário contratado, liberando a Administração de qualquer dever de compensação.
Ausência de responsabilidade
Na verdade, a persecução dos órgãos de controle, nos mais variados graus e searas (improbidade administrativa, responsabilização nos tribunais de contas e, até mesmo, o acossamento penal), inspira a ausência de responsabilidade pela Administração, entusiasmando-a ao não pagamento do objeto executado até a declaração da nulidade (redação do artigo 149, da Lei nº 14.133/2021).
Convém assinalar, por outro ângulo, que, a despeito da “imputabilidade” (expressão normativa contida no mencionado artigo 149) do contratado, o dever de indenização caminha por travessa paralela à responsabilização, seja qual for a seara em que se perscruta a culpabilidade.
A lógica para o atingimento de tal afirmação parte de um pressuposto simples, isto é, o de que só haveria indenização se não houvesse imputabilidade ao contratado, de modo que o dever de ressarcir ficaria condicionado à espera — e finalização — de todos os trâmites processuais, que, derradeiramente, atestassem a não imputabilidade do parceiro privado. Este cenário não é o ideal, porquanto embrulha a indenização (compensação) a eventos futuros, como se o dever de reparar e a irregularidade pavimentassem um só caminho.
Sob a égide da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, várias soluções, que atestam a necessidade de ressarcimento ao contratado, podem ser encontradas, tudo sob a ótica, em especial, do parágrafo único do artigo 147: “solução da irregularidade por meio da indenização por perdas e danos”.
E, em plena aderência ao disposto no citado parágrafo único do artigo 147 — cujos incisos asseguram um vasto caminho até a ultimação da nulidade —, o artigo 151 sinaliza que a fórmula ideal para a indenização por perdas e danos, que contemple a irregularidade contratual, encontra-se em algum método alternativo de solução de controvérsia, especialmente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
Por se tratar de um tema cuja abordagem é substancialmente extensa, há espaço para muito mais debate e aprofundamentos. Nada obstante, devemos inaugurar essa discussão com a premissa de que a Lei nº 14.133/2021 criou um ambiente propício para uma mais equânime interpretação da contratação irregular, afastando-se da ideia de que toda a causa é iniciativa do particular, astucioso sujeito capaz de ludibriar a poderosa máquina contratante, acobertada em questionáveis prerrogativas administrativas.
Sem embargo da busca pela responsabilização administrativa de quem deu causa à contratação irregular, tudo indica que a Lei nº 14.133/2021 aponta no sentido de equalizar as relações compensatórias entre as partes, significando um grande passo para o melhor enfrentamento da matéria.
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[1] Para melhor compreensão da matéria, Manuel Rebollo Puig.
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