Opinião

Aplicação das normas de saúde e segurança do trabalho no setor público

Autores

  • é doutor em Estado e Sociedade na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) especialista em Processo Civil e procurador do Trabalho.

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  • é procuradora do trabalho especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção da Regularidade Trabalhista na Administração Pública (CONAP/MPT).

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31 de janeiro de 2025, 16h19

O Supremo Tribunal Federal, através do seu Pleno, está discutindo nos autos da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 1.068, se os entes integrantes da administração pública direta precisam seguir as normas de saúde, higiene e segurança do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) — as normas regulamentadoras — e se a Justiça do Trabalho tem competência para julgar processos sobre a aplicação de tais normas ao ambiente de trabalho dos servidores públicos.

As normas regulamentadoras são um pilar fundamental para a proteção dos trabalhadores, seja no setor privado ou público. A Constituição, em seu artigo 7º, inciso XXII, estabelece que “é direito dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. Esse dispositivo consagra um direito social fundamental, com o objetivo de garantir um ambiente de trabalho seguro e saudável, e essa proteção não se restringe ao âmbito privado, mas também se estende aos servidores públicos, sejam eles estatutários ou celetistas.

O princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à vida, consagrados na Constituição, tornam a aplicação dessas normas uma necessidade não só para preservar a saúde dos trabalhadores, mas também para assegurar um meio ambiente equilibrado e saudável, conforme o disposto no artigo 225.

Por isso, é importante avaliar a importância do reconhecimento da aplicação das Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego para o setor público e a correlata competência da Justiça do Trabalho?

Normas regulamentadoras e servidores públicos

As normas de saúde, higiene e segurança do trabalho não se aplicam exclusivamente aos trabalhadores da iniciativa privada, como frequentemente se acredita. O ordenamento jurídico brasileiro, através da Constituição e da legislação infraconstitucional, estabelece que as normas regulamentadoras também se aplicam aos servidores públicos, incluindo os estatutários. Essa abrangência é determinada pela natureza de trabalho que é desempenhado pelo servidor público, sendo este um trabalhador como qualquer outro.

A Constituição, em seu artigo 7º, inciso XXII, assegura aos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, incluindo aqueles relativos à saúde, higiene e segurança. Ao falar em “trabalhador”, a Constituição não faz distinção entre empregado público e privado, mas trata de forma abrangente os direitos sociais de todos os trabalhadores. Além disso, o artigo 39, § 3º, da Constituição, que trata da remuneração, vencimentos e direitos dos servidores públicos, faz referência expressa a tal dispositivo (inciso XXII) ao garantir a proteção do trabalhador público, que deve ser aplicada de forma idêntica ao trabalhador privado, em termos de direitos trabalhistas.

O entendimento prevalecente no STF [1] é no sentido de que é irrelevante a natureza do vínculo jurídico, ante a precedência da proteção constitucional ao meio ambiente do trabalho.

Importante refletirmos, ainda, considerando o recente julgamento na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.135, em que o plenário do STF declarou a constitucionalidade de trecho da reforma administrativa de 1998 (Emenda Constitucional 19/1998), suprimindo a obrigatoriedade de regimes jurídicos únicos (RJU) e planos de carreira para servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas federais, estaduais e municipais, nas contratações de celetistas pelos entes da administração direta, desde que posteriores a essa decisão, o que, sem dúvida, se traduz em reforço à aplicação da Súmula 736 do STF e na aplicação das NRs a esses trabalhadores.

Com a referida decisão, a aplicação das NRs na esfera pública já justificada pelo compartilhamento do mesmo ambiente de trabalho entre trabalhadores de diferentes vínculos, estatutários, celetistas terceirizados estagiários, residentes, dentre outros, é enfatizada pelo reconhecimento da possibilidade de convivência entre trabalhadores vinculados diretamente à administração pública pelos vínculos estatutário e de emprego, não sendo possível cogitar que ostentem diversas condições de saúde e segurança no trabalho, o que feriria os princípios da isonomia, da ubiquidade e da universalidade de acesso à proteção ao meio ambiente do trabalho.

A aplicação das normas de saúde, higiene e segurança no trabalho aos servidores públicos é um reflexo dessa visão constitucional inclusiva, que entende que todo servidor público, assim como os empregados do setor privado, está sujeito a semelhantes riscos no ambiente de trabalho que devem ser minimizados ou eliminados.

Nesse cenário marcado pela multiplicidade de normas, é necessário salientar que a aplicação das normas regulamentadoras aos servidores públicos guarda sinergia com as Convenções nºs 155 e 161 que apontam, respectivamente, as medidas de segurança e saúde no trabalho e de fiscalização e de controle dos serviços de saúde do trabalhador, além do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), direcionando-as a todos os trabalhadores, inclusive expressamente aos servidores públicos.

Ilustre-se, especificamente, que, segundo a dicção do artigo 3, os servidores públicos são abrangidos pela Convenção 155 da OIT, denominada Convenção sobre a Segurança e a Saúde dos Trabalhadores.

Spacca

Na perspectiva preventiva, a Convenção nº 187 da OIT defende que a garantia do direito a condições de trabalho seguras e saudáveis exige a adoção de medidas aptas a progressivamente um ambiente de trabalho.

Ademais, vale mencionar que, no ano de 2022, por ocasião da 11ª Conferência Internacional do Trabalho, o meio ambiente de trabalho seguro e saudável foi incluído no quadro de princípios e direitos fundamentais da OIT [2].

Nessa linha de compreensão, o Estado brasileiro, signatário da Agenda 2030 da ONU, assumiu o compromisso de cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), como o ODS 8 de promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos e, especificamente, segundo a Meta 8.8., de proteger os direitos trabalhistas e promover os ambientes de trabalho seguro e protegidos para todos os trabalhadores. Também o ODS 16 estabelece que devem ser desenvolvidas pelos signatários ações para que suas instituições públicas sejam transparentes, eficazes e inclusivas.

Portanto, sob o prisma constitucional da aplicação das Normas Regulamentadoras aos servidores públicos e de análise de convencionalidade, considerando o entendimento firmado pelo STF no Recurso Extraordinário 466.343-1-SP, de que tratados internacionais de direitos humanos ostentarão status de norma supralegal e conforme a Recomendação do Conselho Nacional de Justiça nº 123/2022, conclui-se que a observância das NRs também advém do respeito às normas internacionais integradas ao ordenamento jurídico brasileiro que impõem tratamento uniforme a todos os trabalhadores, públicos e privados, assegurando-lhes a aplicação das normas de saúde e segurança do trabalho que consistem em patamar civilizatório mínimo.

Direito constitucional à proteção da saúde no trabalho

A Constituição consagra em seu artigo 225 que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. O princípio da universalidade [3] não se aplica apenas ao ambiente natural, mas também ao meio ambiente do trabalho, sendo responsabilidade do Estado, na sua atuação direta ou indireta, adotar políticas públicas que garantam a segurança e a saúde dos trabalhadores, sem discriminação entre categorias profissionais.

Quando o legislador afirma que todos têm direito a um meio ambiente equilibrado e saudável, ele está também garantindo que nenhum grupo de trabalhadores, seja ele estatutário ou celetista, seja desprovido de proteção no que tange à saúde e segurança no trabalho. Essa obrigação constitucional reforça a ideia de que a proteção à saúde no trabalho transcende a relação de emprego tradicional e deve ser extensível aos servidores públicos, assegurando-se, assim, um tratamento igualitário, consoante preceito do caput do artigo 5º da Constituição.

A proteção ao meio ambiente e à saúde está entre os pilares fundamentais da Constituição. Como aponta a doutrina abalizada (Silvia Teixeira do Vale e Rosangela Rodrigues Lacerda, “Curso de Direito Constitucional do Trabalho”, p. 508, 2ª ed., 2023), este conceito abrange não apenas as condições ambientais naturais, mas também os espaços onde o trabalho é realizado. Nesse sentido, a aplicação das normas de segurança e saúde no trabalho visa reduzir os riscos de contaminação ou acidentes no ambiente de trabalho, respeitando o direito de todos ao bem-estar e à saúde.

A Constituição, ao estabelecer a proteção ao meio ambiente e à saúde, reforça a necessidade de implementação das normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho, principalmente nos setores públicos, onde a convivência entre diferentes categorias pode gerar riscos adicionais. Isto porque não se pode esquecer que os espaços de trabalho públicos são compartilhados e é incindível o meio ambiente, de forma que prever diferentes proteções a depender do estatuto do trabalho — e não dos riscos identificados — caracterizaria uma grave violação aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Nesse cenário, avulta a aplicação da Norma Regulamentadora nº 1, que traz disposição, dada a unicidade e incindibilidade do ambiente de trabalho, os trabalhadores da contratante e da contratada devem receber medidas de prevenção de acidentes de trabalho integradas entre si.

Assim, para integrar as medidas de saúde e segurança do trabalho em prol da coletividade de trabalhadores com diferentes espécies de vínculos que laboram em um mesmo ambiente de trabalho, indubitavelmente é necessário compartilhar a mesma linha mestra, traçada pelas normas regulamentadoras, elaboradas com a expertise de profissionais de segurança e saúde do trabalho, que reportam às disposições internacionais e à legislação sanitária. [4]

Aplicação das normas e princípio da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da Constituição, deve ser observada em todas as relações de trabalho, tanto no setor privado quanto no público. O simples fato de estarem expostos a riscos comuns é fato suficiente para que todos os trabalhadores, independentemente do regime jurídico, sejam sujeitos a um regime protetivo equivalente. Assim, a adaptação das estruturas administrativas para garantir um ambiente de trabalho seguro e saudável é não apenas uma medida obrigatória, mas também uma medida salutar para garantir que o direito à vida e à saúde, garantido pela Constituição, seja efetivamente protegido.

Impõe-se a observância pela União, estados, Distrito Federal e municípios para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas dos preceitos relativos à medicina e segurança do trabalho, mesmo que as relações laborais sejam regidas pelo regime estatutário (Nota Técnica nº 83/2013/CGNOR/DSST/SIT (36068243), da Secretaria de Inspeção do Trabalho).

Revela-se, assim, inconcebível a ideia de conflito entre a autonomia administrativa e o princípio da dignidade da pessoa humana que alicerça as demais disposições constitucionais e infraconstitucionais que apontam para a proteção a saúde e segurança do trabalho, visto que a autonomia administrativa cinge-se a instrumentalizar a gestão administrativa de forma vinculada ao ordenamento jurídico, sendo defesa a utilização da assunção de custos para afastar o direito à proteção ao meio ambiente do trabalho dos trabalhadores da administração pública.

Os gestores públicos, em cumprimento também aos princípios constitucionais da eficiência, da moralidade e da transparência, possuem o dever de reconhecer a aplicação das normas regulamentadoras para garantir o direito ao ambiente de trabalho saudável e seguro a todos os trabalhadores que prestam serviços na esfera pública, residindo em contrassenso negar vigência a preceito fundamental àqueles que prestam serviços essenciais à sociedade ou prever proteção distinta.

Aos princípios oportunamente citados, salientamos que o gestor público deve obediência aos princípios que regem o direito ambiental do trabalho [5] da prevenção, da precaução, do desenvolvimento sustentável, da participação e da ubiquidade, além do princípio republicano do não retrocesso social.

A adaptação dos espaços de trabalho no serviço público, a fim de cumprir as normas de saúde e segurança, é uma medida que visa a proteger a saúde e a integridade física dos servidores públicos, sendo compatível, tanto com a autonomia administrativa e com os princípios e direitos fundamentais assegurados aos trabalhadores em geral, em especial a dignidade da pessoa humana.

Justiça do Trabalho e aplicação das normas de saúde e segurança

Outro ponto importante que deve ser destacado é a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ações relacionadas ao descumprimento das normas de saúde, higiene e segurança do trabalho. O Supremo, por meio da Súmula nº 736, reconheceu a competência da Justiça do Trabalho para tratar dessas questões, mesmo que a relação de trabalho envolva servidores públicos. Isso demonstra que a Corte Maior vislumbra no Poder Judiciário Trabalhista não apenas a expertise necessária para a efetivação de tais NRs mas também que enxerga tal regra como originária da Constituição.  [6]

Como defendido nos tópicos precedentes, compete à Justiça Laboral processar e julgar as pretensões que visam a regularizar as condições de trabalho que podem representar riscos à saúde, inclusive dos servidores, considerando as normas de higiene, segurança e saúde no trabalho, o que não se confunde com as pretensões individuais de servidores públicos às verbas remuneratórias amparadas no estatuto do respectivo órgão público, de competência da Justiça Comum.

Anote-se que esse também é o entendimento prevalecente nos Tribunais Regionais do Trabalho e no Tribunal Superior do Trabalho [7], a partir de decisões do STF na trilha da Súmula 736 do Pretório Excelso, a jurisprudência majoritária corrobora a ideia de que, independentemente da categoria do trabalhador, as normas de saúde e segurança do trabalho devem ser observadas, e a Justiça do Trabalho é competente para garantir o cumprimento dessas normas, buscando a proteção dos direitos do trabalhador.

Conclusão

As normas de saúde, higiene e segurança do trabalho são aplicáveis a todos os trabalhadores, inclusive os servidores públicos, como reforça a Constituição. Essas normas visam à proteção da saúde e segurança no ambiente de trabalho e se aplicam de forma igualitária, sem discriminação entre categorias profissionais, com base no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito à vida. A implementação dessas normas é uma obrigação do Estado, que deve garantir um ambiente de trabalho seguro e saudável, cumprindo o disposto no artigo 225 da Constituição e promovendo o direito de todos ao meio ambiente equilibrado.

O descumprimento das normas de saúde e segurança no trabalho pode ser questionado na Justiça do Trabalho, que tem competência para processar e julgar ações relacionadas a essas questões. Isso reforça a importância da proteção dos trabalhadores, independentemente de seu vínculo empregatício. A proteção à vida e à saúde é um dos pilares da Constituição e a adaptação das estruturas administrativas para garantir essas condições de trabalho é uma medida essencial para que o Estado cumpra sua função de proteger os direitos dos cidadãos e assegurar um meio ambiente de trabalho saudável e equilibrado.

 


[1] ARE 664335 – Repercussão Geral nº Tema 555 e ARE 1357799.

[2] Nota Técnica do Programa Trabalho Seguro nos autos da ADPF 1068.

[3] Programa Trabalho Seguro da Justiça do Trabalho define temas e metas para o biênio 2025/2026: Os temas escolhidos abordam as mudanças climáticas e os desafios para a universalização. (https://www.csjt.jus.br/web/csjt/-/programa-trabalho-seguro-da-justi%C3%A7a-do-trabalho-define-temas-e-metas-para-o-bi%C3%AAnio-2025/2026 )

[4] Tese defendida pelo Procurador Geral do Trabalho em manifestação nos autos da ADPF 1068.

[5] LACERDA, Rosângela Rodrigues e VALE, Silvia Teixeira do. Curso de Direito Constitucional do Trabalho. São Paulo. LTtr: 2021

[6] AI nº 416.463/MG-AgR, Rcl nº 20.744/SC-AgR, e Rcl nº 13 .113-AgR/AM.

[7] TRT-1 – RO: 00111971620145010225.

Autores

  • é doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFBA), mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UBC), especialista em Processo Civil pela Faculdade Jorge Amado (Unijorge) e procurador do Trabalho.

  • é procuradora do trabalho, especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção da Regularidade Trabalhista na Administração Pública (CONAP/MPT).

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