Robôs assistirão aos vídeos de sustentação oral sob supervisão de estagiários
30 de janeiro de 2025, 8h00
Abstract: o título contém ironia.
1. Contextualizando: estão tirando as sustentações orais dos advogados: e ninguém fará nada?
Quando foi editada a Resolução 591 do CNJ atribuindo ao relator, no tribunal, o poder de manter o processo no plenário virtual (hipótese em que a sustentação será por gravação de vídeo) ou remetê-lo ao presencial, escrevi texto aqui nesta ConJur mostrando a ilegalidade-inconstitucionalidade desse ato. O CNJ simplesmente não tem poder para legislar sobre direitos e garantias fundamentais. Recentemente Fabio Tofic (Folha de S.Paulo), Leonardo Lamachia (jornal Zero Hora), Kamila Teischmann e Milton Nobre, estes na ConJur, mostraram justa indignação com a referida resolução. A ConJur fez reportagem, assinada por Alex Tajra, mostrando a unanimidade dos juristas contra a resolução [1].
Enquanto os advogados reclamam, o STJ já regulamentou o funcionamento das novas regras.
Impressiona que a solução para a prestação jurisdicional esteja na fragilização das prerrogativas dos advogados. Para o CNJ, o problema parece estar nos advogados. Seu trabalho, tudo indica, atrapalha o Judiciário. Há que se informar ao sistema de Justiça que sem advogados não há sistema. Aliás, não seria por isso que o constituinte colocou na CF que o advogado é indispensável à justiça? Qual é a parte do “indispensável” que não foi entendida? Como pode o Judiciário impedir sustentações orais de advogados?
2. A quadratura do círculo como sinônimo do impossível: quem pensou, há algum tempo, que tirariam o direito de sustentar oralmente?
Como é sabido, a Quadratura do círculo é sinônimo de impossível [2]. A questão remonta à Grécia clássica e é bem simples de formular: construir, usando somente régua e compasso, um quadrado cuja área seja igual à de um círculo dado.
Pois a resolução do CNJ quer instituir a quadratura do círculo, ao estabelecer a ficção de que os ministros ou desembargadores assistirão (ou assistem) aos vídeos remetidos pelos causídicos.
Já é difícil manter a atenção em sustentação presencial.
Mas essa pode ser a contradição secundária. A principal não seria, exatamente, transformar em regra o plenário virtual?
Aliás, fico imaginando o que se passa no Ministério Público de segundo grau. Já estava problemática a situação da atuação de segundo grau. Agora mesmo, o que restava de espaço para os procuradores do MP, esfarela-se. Interessante é que não vi qualquer manifestação da instituição em relação à Resolução 591 do CNJ. O MP remeterá sustentação por vídeo? E a AGU? E as PGEs? E as Defensorias?
Estamos fundando uma justiça no ar. Na nuvem. Como no famoso livro As Aves, de Aristófanes. Que, aliás, fala da quadratura do círculo.
3. O Zeitgeist: tempos pós-modernos, em que já nem tudo é líquido – tudo está, mesmo, no ar! Ou “de como tudo isso tem a ver com os robôs e a eficiência”
Há um frisson no ar. Tem um robô novo. Um chinês. Que não pode falar mal do governo de lá. E que não fala sobre Freud. Aliás, de onde esse novo plagiador tirou tudo que “sabe”?
O mundo amanheceu sob trauma: as Big Techs perderam 1 trilhão de dólares. Para terem uma ideia do valor, na crise de 2008 a ajuda do governo dos EUA aos bancos foi de 800 bilhões.
Os robôs ainda nos destruirão. Já estão destruindo a justiça. O virtualismo está acabando até com o cérebro, conforme alentadas pesquisas. As telas estão emburrecendo as crianças. Bom, nos adultos já não há solução. Como diz o português Rui Tavares, em artigo na Folha, “o problema da IA será a estupidez natural”. É só aguardar. Embora as consequências já estejam bem à vista.
Eis o “espírito do tempo”.
É nesse Zeitgeist é que se dá o fenômeno da inteligência artificial, os robôs e a substituição da mão humana (e do cérebro) por algoritmos. Ou, não é assim?
Até Baumann está morto. Elvis morreu. Eu mesmo não estou sentindo muito bem. Modernidade líquida? Nem falar. Agora tudo está no ar. Para além do líquido. Na nuvem. Nos algoritmos. Que nem estão chegando: já chegaram e fincaram pé.
Tudo começou com o processo virtual, passaram para gravações (que ninguém assiste) e daí para os robôs eliminadores de recursos (snipers epistêmicos) foi apenas um passo. Agora mesmo um advogado em São Paulo questiona uma decisão de primeiro grau, por ter sido supostamente feita por robô. No ano passado uma decisão judicial saiu com um precedente inventado pelo robô. E nesta semana um hacker foi preso após invadir 80 vezes sistemas judiciais e alterar processos.
Sigo.
O corolário disso são os robôs que fazem resumos, separação (escolha) de precedentes e esboços de decisões. O robô Maria é um bom (ou mau) exemplo. Mas, segundo o presidente do STF, será tudo sob supervisão humana. Divirjo. E explico. Por exemplo, o robô Maria, disseram, resume um processo de 20 volumes em cinco páginas. Minhas perguntas céticas:
– você diz para o robô fazer o resumo de 20 volumes em 5 páginas e depois pega os 20 volumes e confere para ver se o robô não enganou você?
– ou deixou coisas importantes de fora, que escaparam do algoritmo?
– você diz para o robô resumir um processo de 20 volumes e pede que esboce uma decisão; quem vai conferir as premissas?
– nunca esqueçamos que o algoritmo pode alucinar ou, mesmo sem alucinar, pode “aprender as coisas” (afinal, é generativo). Uma boa alegoria foi feita por dois cientistas ingleses quando depuseram sobre o tema IA no parlamento: trata-se do caso do cachorro que empurrava crianças no Sena para ganhar suculentos filés (ler aqui – ou veja o resuminho na nota de rodapé [3]).
Penso que a utilização de robôs funciona mais ou menos como nos vídeos que os advogados remetem aos tribunais com sustentações orais. Compreendem?
O presidente da OAB-SP, Leonardo Sica, disse no Estadão que os advogados não mandarão sustentações por vídeo. Correto. É o “fator Vampeta”, bem lembrado por Sica (Vampeta disse quando criticado pela torcida do Flamengo: “eles fingem que pagam e eu finjo que jogo” – parafraseando, “eles fingem que escutam, nos fingimos que falamos”).
Sustentação por vídeo é confundir as ficções da realidade com a realidade das ficções. São simulacros de enunciações, diria Warat.
Um advogado e professor fez uma ironia, dizendo: “- talvez o próximo passo seja alcançado quando robôs assistirem aos nossos vídeos e fizerem o resumo para o(s) ministro(s) ou desembargadores”.
O que o leitor(a) acha? O que os causídicos de todo o Brasil acham?
4. Para vermos o tamanho do imbróglio: estamos preocupados com as sustentações orais; mas, o problema do mesmo tamanho e dimensão é o monocratismo e a jurisprudência defensiva
Com a instauração do “virtualismo” total (afinal, em regra todos os julgamentos serão virtuais, cabendo ao relator dizer quais não serão), como faremos com as omissões, contradições e obscuridades dos acórdãos virtuais?
Com efeito, preocupa sobremodo o cotidiano descumprimento, pelo próprio Tribunal Superior, dos dispositivos que constituem os critérios para a fundamentação das decisões: 489 e 926 do CPC e 315 do CPP. Isto ocorre em todos os tribunais superiores. D´onde suprimir a sustentação oral é impossibilitar mais ainda a última chance de mostrar os problemas constantes nas decisões recorridas ou agravadas.
Tenho chamado a atenção da comunidade jurídica para o excessivo número de decisões monocráticas, a maioria delas sem nem mesmo estarem fundamentadas-justificadas “como monocráticas”. Falo do artigo 932 do CPC, que autoriza, como exceção (e não como regra!) decisões monocráticas pelo relator, podendo:
(a) não conhecer o recurso quando for manifestamente inadmissível ou prejudicado (motivos processuais);
(b) conhecê-lo e julgá-lo no mérito (negando-lhe provimento) quando for manifestamente improcedente, com fundamento em precedente do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de outro tribunal superior (que tipo de precedente? Uma tese? Um julgado?);
(c) ou conhecê-lo e julgá-lo no mérito (dando-lhe provimento) quando o acórdão recorrido tiver descumprido precedente do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de outro tribunal superior (que tipo de “precedente”?).
Isto é, existem requisitos e estes devem ser fundamentados. O relator tem o ônus da argumentação. Tem de dizer: veja, está tão claro que posso decidir sozinho. E está claro pelas seguintes razões… e então as declinar. Essa é a ideia da exceção. Porém, examinando dezenas de decisões, dificilmente encontraremos decisões monocráticas em que se explicita a existência do requisito permissivo, como se exige de qualquer decisão, consoante o artigo 489, do CPC e seus seis incisos.
A partir disso, o que dizer de decisões monocráticas que fulminam o recurso com base em argumentos como “o recurso não enfrentou devidamente os fundamentos do acordão recorrido, mas não diz quais são esses fundamentos”, em clara violação do inciso III do artigo 489, parágrafo 1º. Do CPC (ou 315 do CPP), pelo qual não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão. O recurso contra esse tipo de decisão será apreciado, em regra, segundo a resolução, em plenário virtual. Isso se, novamente, o agravo ou os embargos não forem julgados monocraticamente.
Na mesma linha: imaginem um determinado processo no qual a decisão monocrática nega, sem fundamentação, provimento a REsp nos seguintes termos:
“Consoante a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o relator está autorizado a negar provimento a recurso por decisão monocrática quando a irresignação for manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicada ou em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do STF ou do STJ”.
E nada mais. Resumo da ópera: o próprio tribunal viola o dever de fundamentação ao desestimar um recurso. Mais grave: o agravo é desestimado do mesmo modo. Como recorrer?
Vida de causídico é assim: decisões cotidianas que mostram recursos ou agravos fulminados com base na Súmula 7, com o senão de que a aplicação da Súmula não está justificado, violando o inciso I do parágrafo 1º do artigo 489 do CPC (ou 315 do CPP), que considera não fundamentada decisão que se limita à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida.
Quando é caso de cotejo de precedentes (divergência jurisprudencial), o advogado se depara, seguidamente, com decisões que rejeitam ou não conhecem o REsp (ou agravo) monocraticamente sob o argumento de que o precedente não se encaixa (sem que o relator explicite por quê), violando o inciso V, que estabelece ser não fundamentada decisão que se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos. Ademais, o conceito de precedente está equivocado. O que vale em um precedente é a sua holding e não a similitude fática, como venho tentando demonstrar de há muito.
E o que dizer de decisões monocráticas que dizem “o advogado apenas quer revolver os fatos”, sendo que essa decisão se aplicaria a qualquer outra decisão. E quando os fatos são revolvidos para dizer que “os fatos não podem ser revolvidos”?
Também é muito comum decisão monocrática que fulmina REsp ou agravo com o argumento padrão de que “o tribunal não é obrigado a enfrentar todos os argumentos…, conforme o tema 339 do STF”, violando o inciso IV (não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador).
Isso sem esquecer o desprezo dos tribunais superiores pelo juízo de admissibilidade dos tribunais de piso, mormente quando esse for positivo. Há casos em que, mesmo que com juízo positivo no tribunal a quo, o relator, no STJ, decide monocraticamente o REsp, sem mesmo enfrentar os argumentos da origem que reconhecem os problemas levantados pelo REsp. Tentarei explicar: no REsp (e no RE) se contesta o acordão do Tribunal de piso, certo? Então, se esse reconhece que os argumentos do recorrente têm fumus de verdade, não deveria o STJ (ou o STF) enfrentar esses argumentos? Prima facie?
Portanto, além do problema da extirpação das sustentações orais, temos o problema das fundamentações, que mutilam direitos cotidianamente.
5. Por uma isegoria nos julgamentos
Numa palavra: existe a isonomia, que todos sabem o que é. Os gregos inventaram mais outra palavra: ἰσηγορία – isegoria. É o que a advocacia quer: igualdade de manifestação, igualdade de direito de dizer, na “assembleia” (os gregos falavam assim), aquilo que pensa. Na Grécia antiga, a todos era dado o direito de falar sem ser interrompido!
Mais de dois mil anos depois, seremos calados?
Ou seja, o problema é muito mais grave.
Porém, ficará pior se perdermos o direito de sustentar.
[1] Bom, no Brasil TCE atua como judiciário (inclusive concedendo liminar monocraticamente), CNJ faz leis e Tribunais Superiores editam teses gerais e abstratas. E o legislador? Está mais preocupado com pautas comportamentais, aumento de penas e emendas parlamentares. E lacrar nas redes sociais.
[2] Marcelo Viana, Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France, faz interessante análise acerca da famosa “quadratura do círculo”.
[3] A história é contada pelo cientista inglês Michael Osborne (Oxford): em Paris um cachorro salvou uma criança que se afogava no Sena e, como recompensa, ganhou um bife. Tempos depois, ele salvou outra criança. Ganhou um bife. Uma terceira vez e mais bife. Descobriram, na sequência, que o cachorro empurrava crianças no Sena para ir salvá-las. Ele compara esse comportamento com a IA generativa. Por isso robôs inventam jurisprudência.
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