Opinião

Sobre o tipo penal 'desaparecimento forçado' no caso Ubaté y Bogotá vs. Colombia

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  • é advogada do escritório Naves Fleury mestra em Famílias Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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30 de janeiro de 2025, 13h17

No dia 13 de dezembro de 2024, a Corte Interamericana de Direitos Humanos notificou ao Estado colombiano a sentença do Caso Ubaté y Bogotá vs. Colombia [1], informando a condenação por uma série de violações de direitos decorrentes do desaparecimento forçado do senhor Jhon Ricardo Ubaté Monroy e da senhora Gloria Mireya Bogotá Barbosa — evento este que, conforme consignou a corte na decisão julgada em 19 de junho do ano passado [2], afetou não somente as duas vítimas citadas, mas também seus familiares.

Reprodução/X

O sr. Ubaté e a sra. Bogotá haviam integrado o Ejército Popular de Liberación (EPL), um grupo insurgente criado na Colômbia na década de 1970, no contexto dos conflitos armados que ocorriam no país. Em 1991, o EPL foi desmobilizado, mediante a assinatura de um acordo de paz com o governo. Após a desmobilização do grupo, Ubaté passou a atuar como defensor de direitos humanos, denunciando a atuação de grupos paramilitares em sua região [3].

Em 19 de maio de 1995, na cidade de Cali, as vítimas foram abordadas na rua por homens armados que as colocaram à força em um veículo, momento a partir do qual não se teve mais qualquer notícia sobre seu paradeiro. Testemunhas presenciaram o sequestro e acionaram a Policía Metropolitana, que, por sua vez, interceptou um veículo da Unidad Antiextorsión y Secuestro (Unase). Os agentes da Unase afirmaram que estavam realizando uma operação em virtude do furto de um relógio, e que transportavam uma testemunha e um suspeito. Foram, então, liberados [4].

A partir daí começou o martírio dos familiares das vítimas, em busca da verdade sobre o ocorrido e o paradeiro de seus entes queridos. Em 25 de maio de 1995, Sandra del Pilar Ubaté, irmã do sr. Ubaté, denunciou à Fiscalía (promotoria) de Cali o desaparecimento forçado, iniciando-se a investigação em 21 de junho. Em 18 de dezembro, o caso foi redesignado para a Unidad de Derechos Humanos y Derecho Internacional Humanitario de la Fiscalía General de la Nación. As diligências investigatórias foram inócuas, culminando, em 30 de janeiro de 2004, em uma sentença do Juzgado Séptimo Penal del Circuito de Cali absolvendo os acusados [5].

Embora tenha sido criado, em 17 de julho de 2020, um comitê para acompanhamento do caso, até a data de julgamento da sentença pela corte o paradeiro do sr. Ubaté e da sra. Bogotá eram desconhecidos [6].

Durante todo o período desde o sequestro, as famílias das vítimas sofreram ameaças na sua busca pela verdade e justiça. Astrid Liliana González Jaramillo, companheira do sr. Ubaté, chegou a sofrer uma tentativa de sequestro, episódio que a levou a sair do país. A sra. Sandra e seu filho Cristian também foram forçados a se exilar no Chile.

A Colômbia realizou reconhecimento parcial da sua responsabilidade no caso, assumindo algumas das violações alegadas pelas vítimas [7]. A sentença da corte, por sua vez, determinou a responsabilidade do Estado pela violação de diversos direitos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e na Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (CIDFP), em relação às duas vítimas desaparecidas e seus familiares: ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal, à liberdade pessoal; a violação do direito de defender os direitos humanos; o direito à integridade pessoal, às garantias judiciais, à proteção judicial, ao conhecimento da verdade e à proteção da família; os direitos à circulação e residência; os direitos de proteção da infância [8].    

A Corte IDH ressaltou que “existe uma impunidade total”, visto que, até o momento, os responsáveis pelo desaparecimento não haviam sido identificados, destacando, ainda, a negligência estatal na condução das investigações do desaparecimento e na apuração das retaliações sofridas pelas famílias [9].

O tribunal interamericano já se debruçou algumas vezes sobre casos envolvendo desaparecimento forçado de pessoas – o Brasil, por exemplo, foi condenado em 2010, no Caso Gomes Lund y Otros (“Guerrilha Do Araguaia”) Vs. Brasil, pelo desaparecimento forçado de 62 indivíduos, militantes do Partido Comunista do Brasil, durante a ditadura militar [10].

A respeito, o juiz brasileiro na corte, Rodrigo Mudrovitsch, esclareceu em seu voto apartado:

“60. Com a ascensão dos regimes autoritários na América Latina na segunda metade do século XX, a prática dos desaparecimentos forçados foi assimilada como política de Estado, orientada pelo propósito de repressão de opositores, disseminação do medo e eliminação de dissidências.  Esse contexto particular do Cone Sul fez com que os primeiros esboços de regimes legais para combater os desaparecimentos forçados também tiveram as suas origens no continente. […]

65. Portanto, a CIDFP nasceu da urgência de responder a um dos mais atrozes métodos de repressão estatal utilizados na América Latina no final do século XX, estabelecendo um marco jurídico fundamental para a proteção dos direitos humanos na região. Ela representou um compromisso coletivo dos Estados membros da OEA de garantir que crimes de desaparecimento forçado fossem devidamente enfrentados, proporcionando justiça e reparação às vítimas e prevenindo futuras violações” [11].

O atual vice presidente da corte proferiu voto parcialmente dissidente, manifestando discordância pontual sobre a sentença proferida, “[…] por se abster de determinar a revisão do artigo 165 da Ley 599 de 2000, que tipificou o desaparecimento forçado na Colômbia” [12].  Ao longo do voto, o magistrado brasileiro destaca a importância de os Estados legislarem um tipo penal de desaparecimento forçado que seja compatível com os tratados de direitos humanos e a própria jurisprudência interamericana, bem como a “relevância da tipificação correta do delito como medida para evitar sua repetição” [13].

Spacca

Mudrovitsch esclarece que, à época do desaparecimento do sr. Ubaté e da sra. Bogotá, o tipo penal “desaparecimento forçado” não existia no ordenamento colombiano, sendo criado apenas cinco anos depois, por meio do artigo 165 da Lei 599/2000 [14].  Por isso, “as investigações levaram ao indiciamento de agentes da Unase e de possíveis colaboradores pelos crimes de ‘secuestro simple agravado’, falso testemunho, prevaricação e falsidade ideológica” [15].

O juiz relata que, após a tipificação do crime de desaparecimento forçado, os representantes das vítimas, sob o argumento de que se trata de um crime de natureza permanente, solicitaram que a imputação dos acusados fosse alterada. O pedido, no entanto, foi indeferido pelo Juzgado Séptimo Penal del Circuito de Cali [16].

A respeito do artigo 165 da Lei 599/2000, Mudrovitsch sustenta que se trata de “uma insuficiência regulatória de natureza material, em face do apagamento, do esvanecimento da participação estatal operada pelo tipo penal colombiano” [17], surgindo, assim, a “necessidade de alinhar o tipo penal colombiano aos parâmetros internacionais sobre a matéria” [18] – medida esta que não foi fixada pelo tribunal interamericano na sentença.

Mudrovitsch analisa a questão sob três aspectos: “1) o escrutínio estrito de convencionalidade das normas penais, através da máxima da proporcionalidade;(2) a proibição da proteção insuficiente; e (3) o cumprimento do mandado de criminalização do tipo penal pela CIDFP”.

Quanto à proporcionalidade, o juiz destaca que se deve evitar tanto a proteção insuficiente quanto o excesso punitivo. Prossegue aduzindo que a proibição da prática de desaparecimento forçado possui status de ius cogens, sendo, portanto, imprescritível; e que a CIDFP prevê expressamente para os Estados partes o dever de legislar a respeito, observando os parâmetros mínimos indicados na própria Convenção. Dentre esses parâmetros está a definição de desaparecimento forçado, previsto no artigo 2º do tratado:

“Para os efeitos desta Convenção, entendese por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes” [19]. (grifo do articulista)

O voto esclarece que “O crime deverá ser obrigatoriamente permanente e a sua prescrição legal deverá observar todos os elementos intrínsecos do tipo contidos na CIDFP […]”. De forma contundente, afirma que, a partir do texto da Convenção e do contexto histórico que a precede, é inarredável concluir que “o crime de desaparecimento forçado é predicado do Estado” [20].

Mudrovitsch aduz, ainda, que a impunidade comum a esse tipo de crime ocorre em razão da atuação dos agentes estatais, ao agirem “tanto como perpetradores quanto como investigadores” [21]. Explica também que o desaparecimento forçado, sendo crime de natureza permanente, “persiste enquanto não houver informações sobre o paradeiro da vítima, conforme descrito no artigo III da CIDFP” [22].

A partir de tais premissas, Rodrigo Mudrovitsch conclui que “o Estado colombiano violou o princípio da proibição de proteção insuficiente” [23], sendo o tipo penal previsto no ordenamento interno ambíguo e em desacordo com a jurisprudência da própria Corte IDH e dos tratados de direitos humanos ratificados pela Colômbia:

“122. Com base nos elementos examinados nos subtópicos anteriores, é possível perceber que os problemas de tipificação do desaparecimento forçado na Colômbia acarretam duas graves consequências: (i) a invisibilidade ou diluição do papel do Estado no crime e (ii) a possibilidade de reconhecimento dos efeitos da prescrição sobre o desaparecimento forçado. Ambos podem comprometer as investigações e a garantia do direito à verdade” [24].

Assevera, por isso, que a sentença da Corte IDH deveria ter definido, como medida de não repetição, a adequação do direito interno aos parâmetros do direito internacional [25]. Ao final, conclui:

“149. A participação do Poder Público é a razão de ser desse delito. É o que coloca o desaparecimento forçado na grave categoria de crime de lesa humanidade e o que faz com que sua proibição receba o status de ius cogens. O desaparecimento forçado fere a consciência universal dos direitos humanos em múltiplos sentidos porque atinge o indivíduo duplamente, primeiro com o sumiço de sua existência física e segundo com a tentativa de apagamento de sua memória. Essa brutal finalidade não poderia ser perseguida sem o protagonismo ou cumplicidade do Estado” [26].

O problema da tipificação do crime de desaparecimento forçado não é exclusivo da Colômbia. O Brasil, na sentença do Caso Gomes Lund y otros, foi exortado a “adotar as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os padrões interamericanos” [27].

Em 2014, ao realizar o procedimento de supervisão de cumprimento de sentença, a Corte IDH declarou que “[…] a interpretação e aplicação da Lei da Anistia em determinadas decisões judiciais continua a ser um obstáculo à investigação dos fatos do presente caso, e para a eventual sanção e punição dos responsáveis […]”. Assim, o tribunal interamericano considerou o ponto resolutivo nº 15 “pendente de cumprimento” pelo Estado brasileiro [28]. Até hoje, quase quinze anos após a condenação, o Brasil não tipificou o crime de desaparecimento forçado, conforme lembra o professor Siddartha Legale [29].

Assim, ao deixar de realizar o exame de convencionalidade da lei colombiana, a Corte Interamericana parece ter perdido uma boa oportunidade para reforçar sua jurisprudência protetiva sobre uma das mais graves formas de violações de direitos humanos em nosso continente.

 


[1] Acto de Notificación de Sentencia en el Caso Ubaté y Bogotá Vs. Colombia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JN3a2KB2qwQ . Acesso em: 20/01/2025.

[2] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. CASO UBATÉ Y BOGOTÁ VS COLOMBIA

SENTENCIA DE 19 DE JUNIO DE 2024 (Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_529_esp.pdf . Acesso em: 20/01/2025.

[3] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. CASO UBATÉ Y BOGOTÁ VS COLOMBIA

SENTENCIA DE 19 DE JUNIO DE 2024 (Fondo, Reparaciones y Costas). RESUMEN OFICIAL EMITIDO POR LA CORTE INTERAMERICANA. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_529_esp.pdf . Acesso em: 20/01/2025.

[4] RESUMEN, p. 03.

[5] RESUMEN, p. 03.

[6] Idem.

[7] Idem, p. 02.

[8] Idem, p. 01-02.

[9] Idem, p. 04.

[10] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. CASO GOMES LUND Y OTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL. SENTENCIA DE 24 DE NOVIEMBRE DE 2010. (Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/gomes_17_10_14.pdf . Acesso em: 20/01/2025. Tradução livre.

[11] VOTO PARCIALMENTE DIVERGENTE DO VICE-PRESIDENTE RODRIGO MUDROVITSCH. CASO UBATÉ Y BOGOTÁ VS. COLOMBIA. SENTENÇA DE 19 DE JUHNO DE 2024 (Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_mudrovitsch_529_esp_por.docx. Acesso em: 20/01/2025.

[12] VOTO, p. 41, §2º.

[13] Idem, p. 42, §2º.

[14] Idem, p. 44, §12.

[15] Idem, p. 47, §7º.

[16] Idem, p. 44, §9º.

[17] Idem, p. 79, §146.

[18] Idem, p. 79, §147.

[19] CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE O DESAPARECIMENTO FORÇADO DE PESSOAS (Adoptada en Belém do Pará, Brasil, el 9 de junio de 1994, en el vigésimo cuarto período ordinario de sesiones de la Asamblea General). Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/basicos/desaparicion.pdf . Acesso em: 24/01/2025.

[20] Idem.

[21] Idem, p. 60, §73.

[22] Idem, p. 63, §87.

[23] Idem, p. 78, §144.

[24] Idem, p. 73, §122.

[25] Idem, p. 74, §126.

[26] Idem, p. 79, §149.

[27] SENTENCIA CASO GOMES LUND Y OTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL, p. 117, ponto resolutivo nº 15.  Tradução livre.

[28] RESOLUCIÓN DE LA CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS DE 17 DE OCTUBRE DE 2014. CASO GOMES LUND Y OTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL. SUPERVISIÓN DE CUMPLIMIENTO DESENTENCIA. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/gomes_17_10_14.pdf . Acesso em: 24/01/2025.

[29] LEGALE, Siddartha. Estado interamericano de direito: Ainda não estamos aqui. Correio Brasiliense, 09/01/2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/direito-e-justica/2025/01/7027738-estado-interamericano-de-direito-ainda-nao-estamos-aqui.html#google_vignette . Acesso em: 24/01/2025.

Autores

  • é advogada do escritório Naves Fleury, mestra em Famílias, Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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