Antídoto à cloroquina da execução penal: da resolução sobre exame criminológico (parte 1)
30 de janeiro de 2025, 7h04
Em abril de 2024, pouco tempo depois da publicação da Lei 14.843/2024, que revitalizou o exame criminológico como instrumento indispensável para a progressão de regime prisional, o Estadão [1] editou reportagem sobre os efeitos da lei, que contou com a participação do professor Maurício Dieter. Ele foi categórico ao afirmar ser “um retrocesso de pelo menos 50 anos.
O exame criminológico é a ‘cloroquina da execução penal’. Não só dificulta muito a progressão, pois impõe critérios anticientíficos, antiéticos e antijurídicos como condição” e como efeito irá “atrasa[r] imensamente a progressão e vai piorar, e muito, a situação já horrível de encarceramento no país”. E continua, “vai agravar a enorme quantidade de trabalho das Varas de Execução Penal, porque agora terão de marcar, realizar e analisar esses exames absurdos”.
O uso da analogia com a cloroquina não poderia ser mais acertado, afinal, o instrumento é apresentado como a solução para o problema do sistema de justiça criminal, tal como a cloroquina foi apresentada — com o mesmo ponto de vista anticientífico — como remédio para combater o Covid-19. Apesar do rótulo, em nada combate o problema de fato, além de trazer consigo os efeitos colaterais gravíssimos.
Impactos da Lei 14.843/2024
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ainda que tardiamente, previu uma “nova” pandemia no sistema de justiça criminal com a aplicação do exame criminológico de forma indiscriminada. Em um relatório denominado “Impactos da Lei 14.843/2024”, de maneira muito sintética, apontou uma série de efeitos.
Sobre a população prisional em geral, são declaradas cerca de 325 mil progressões de regime anuais (até então “apenas” 8,9% exigem exame criminológico — 29.364). Se com esses “poucos” exames as pessoas já precisam aguardar meses até a conclusão, atrasando o reconhecimento do direito à progressão, com a exigência indiscriminada o tempo de espera será dilatado. O estudo prevê que em 12 meses, pelo menos 283 mil pessoas deixariam de progredir, tal como o prazo de espera até a realização do exame seria ampliado para 197 dias — em média.
No final das contas, a população prisional saltaria de 663 mil pessoas (atualmente – dados de 2024 extraídos do Painel Sisdepen) para 920 mil pessoas até 2028 (aumento de 257 mil pessoas – cerca de 38,7%). Importante mencionar que contamos com 488 mil vagas no sistema penitenciário, já superlotado (déficit de 175 mil vagas).
Sob o ponto de vista econômico, uma vez que o exame criminológico exige a participação de pelo menos cinco profissionais (presentes em apenas 0,04% das unidades prisionais do país), será necessária a contratação de novos funcionários públicos, o que representará impacto de R$ 170 milhões anuais aos cofres públicos.
Além disso, com o aumento da população carcerária, os contratos de fornecimento de alimentação, segurança, obras e demais questões indispensáveis serão igualmente reajustadas, causando aumento no custo anual em R$ 6 bilhões para a manutenção das prisões. Esse impacto econômico não foi discutido no Congresso, o que de antemão já configura flagrante inconstitucionalidade formal da norma.
Antídoto
Diante de todo esse cenário, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), importante órgão do Ministério da Justiça, editou a Resolução 36 de 4 de novembro de 2024, que traça diretrizes importantes para a realização do exame criminológico. As medidas são apresentadas com o objetivo de garantir que o exame siga linha lógica para sua realização, além de buscar a utilização de critérios científicos mínimos, evitando subjetivismos extremos e afirmações genéricas. A norma conforma o que os professores Pavarini e Giamberardino (2022, p. 274) defendem há vários anos, no sentido de que “o objetivo precípuo, afinal, é uma redução da margem de discricionariedade na formação da convicção do juiz, que deve se pautar por critérios mais objetivos”. A norma é um antídoto aos efeitos colaterais do medicamento que não serve para o fim idealizado.
A Resolução não traz nenhuma inovação, sejamos sinceros, mas de forma extremamente necessária normatiza procedimentos e limites que a doutrina e a jurisprudência já apresentam há vários anos sobre o exame.
Importante ressaltar que, para nós, bastaria a transcrição de ficha disciplinar para comprovar o requisito subjetivo, porém, dada a inovação legislativa e em caso de opção pelo exame, o juiz deveria se ater às premissas mínimas bem trazidas pela resolução.
Logo no §1º do artigo 1º, reafirma jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a irretroatividade da norma em prejuízo [2], estabelecendo que o exame criminológico como condição obrigatória para a progressão de regime somente vale para os crimes cometidos após a vigência da Lei 14.843/24 (11/4/2024). Para os crimes anteriores e execuções penais em curso valerá a mesma regra de sempre, pautada na Súmula Vinculante 26 [3], Súmula 439 do Superior Tribunal de Justiça [4] e na jurisprudência formada sobre o tema.
E uma vez realizado o exame, a Resolução determina sua juntada nos autos em até 30 dias antes da data prevista para a progressão de regime prisional (artigo 2º). Isto é, a norma busca preservar a data da progressão de regime prisional, atribuindo ao Ministério Público e ao juízo a pressa na realização do exame, uma vez que, caso o exame não seja apresentado no prazo adequado, a pendência do exame não poderá autorizar a manutenção no regime mais gravoso (artigo 2º, §1º). Conforma preocupação antiga, “para que eventual determinação de realização do exame criminológico não acarrete atraso na concessão do direito de progressão de regime” (Simão, 2022, p. 347) e o próprio estudo realizado pelo CNJ, que indica o atraso de quase 200 dias em progressões.
E, em caso de demora, o juízo deverá analisar o requisito subjetivo conforme se encontra os autos, independentemente do exame e determinar a “progressão cautelar de regime prisional”, afinal, “se a demora na prestação jurisdicional puder causar inocuidade da própria tutela a que se visa, nasce a possibilidade da atividade cautelar” (Valois, 2019, p. 94). Não há risco maior para a pessoa privada de liberdade do que o prolongamento injustificado de sua privação de liberdade, ou enquanto aguarda um exame que foi solicitado tardiamente – ele não deu causa à demora estatal e tampouco pode ser prejudicado por ela. Segundo Valois (2019, p. 94) “não é admissível, então, que o juiz mantenha o preso no regime fechado para aguardar a vinda aos autos de qualquer documento que não esteja presente na data em que a lei prescreve para a progressão de regime”.
Prescrição
Como um medicamento que deve ser administrado periodicamente e tem sua forma de ingestão, a Resolução também possui uma espécie de Procedimento Operacional Padrão (POP).
Deve ser obrigatoriamente realizado por 5 (cinco) profissionais – aos quais se aplicam as regras de impedimento e suspeição do Código de Processo Penal (artigo 4º) — sendo eles, dois chefes de serviço e um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social (artigo 3º), replicando exigência prevista na Lei de Execução Penal (artigo 7º da LEP). Importante anotar que a Resolução, neste tópico, ignora o mencionado “Estudo sobre os Impactos da Lei 14.843/24” confeccionado pelo CNJ e orientação jurisprudencial, que admitem a realização do exame sem a participação de psiquiatra [5].
O estudo do CNJ certifica que apenas 0,4% das unidades prisionais do país possuem todos os cinco profissionais em seu quadro e disponíveis para a realização do exame. Por outro lado, 66% das unidades contêm pelo menos três profissionais (psicólogo indispensável), de tal sorte que, de maneira ou outra, profissionais deverão ser contratados.
Esse é outro importante regramento trazido pela resolução, que veda qualquer tipo de medida paliativa do Estado, afastando a possibilidade de o ente contratar profissionais temporários (artigo 3º, §4º), prática que alinha com o estudo feito pelo CNJ, que atesta o aumento do gasto público com contratações.
E de igual importância é o método. Hoje em dia, por conta da “excepcionalidade da medida” e pelo reduzido contingente, o exame é realizado em um único ato. Cada profissional entrevista o examinado uma única vez e logo depois lavra o laudo — não há como fazer uma pesquisa aprofundada e chegar às conclusões devidas e minimamente seguras em um único ato.
Para evitar esse tipo de prática e buscar, ainda que minimamente, respeitar a realidade situacional da pessoa privada de liberdade, a resolução estabelece o dever de acompanhamento periódico, mediante o mínimo de duas entrevistas individuais e pelo menos uma delas com pessoa de seu convívio (artigo 7º).
E nada de avaliações mecanizadas. Cada uma delas deve ser específica para o interno. “Não será admitido exame criminológico realizado mediante única entrevista com a pessoa apenada e/ou mediante a aplicação de formulários estruturados, que priorizem a coleta de dados meramente objetivos” (artigo 7º, parágrafo único).
Tampouco será admitido o uso total ou parcial de inteligência artificial generativa ou tecnologia preditiva na elaboração dos exames criminológicos (artigo 10º). Afinal se assim o for, estaríamos cada vez mais e mais próximos de uma “execução penal atuarial (ou securitária), baseada em pragmáticos prognósticos de risco (atuariais) e periculosidade sociais, com a profusão de guias metódicos” (Roig, 2024, RB-11.4).
Ao final das entrevistas cada um dos profissionais chegará, individualmente, à sua conclusão e, caso sejam divergentes, deverão ser discutidas e esclarecidas no laudo final (artigo 3º, § 2º). As avaliações todas terão o mesmo “peso” (artigo 3º), o que não significa dizer que se cuida de uma prova tarifada, em que cada uma tem seu valor estabelecido e o juiz, ao final, fará um cálculo matemático para chegar ao resultado. Estamos tratando, aqui, de um requisito subjetivo e a prova deve ser analisada e avaliada mediante ato fundamentado. O juízo tampouco está vinculado ao resultado do exame (artigo 12º), e poderá formar sua própria convicção acerca do pedido de progressão, com base nos dados concretos da execução da pena (STJ – AgRg no HC 818.659/SP – um de tantos).
Importante recordar que o Poder Judiciário, embora possa discordar do exame, normalmente o utiliza como muleta para fundamentar sua decisão, afinal como bem anotam os professores Pavarini e Giamberardino (2022, p. 275) “o exame criminológico contém grande carga ideológica no sentido de que, elaborado por um expert, apresenta-se como argumento de autoridade ao juiz”.
Somente mediante acompanhamento ‘médico’
A resolução garante a participação da defesa em todos os instantes da realização do exame. Prática muitas vezes freada por juízes singulares, agora a norma garante à defesa apresentar quesitos a serem respondidos quando da lavratura do laudo. Os quesitos deverão ser respondidos a partir do exame, e não compor o exame em si, afinal, torná-lo-ia mecanizado, prática igualmente vedada pela resolução.
Na mesma oportunidade a defesa poderá arguir a suspeição ou impedimento de membro da Comissão Técnica, ou apontar desconformidade com os demais termos da presente resolução, se for o caso (artigo 5º).
Mais importante do que a mera apresentação de quesitos e o controle prévio ao ato, a defesa terá a importante função de participar das entrevistas e realizar o efetivo controle do ato (artigo 6º). Nada de controle diferido (esse será feito quando da conclusão do laudo), mas a defesa poderá efetivamente controlar as perguntas que forem feitas durante o exame, justamente para buscar a efetiva proteção de direitos, podendo, inclusive, aconselhar o examinado a permanecer em silêncio (parcial ou integral), silêncio este que jamais poderá ser utilizado em prejuízo.
Pode-se perguntar quanto à participação do Ministério Público no ato. Cumpre lembrar que a função ministerial não é de parte, senão de custos legis ou fiscal da lei, bastando-lhe o contraditório diferido. E mais importante do que isso, o exame criminológico surge como um obstáculo ao acesso aos direitos presentes no Direito de Execução Penal, jamais se apresenta como ferramenta a ser utilizada em favor da pessoa em cumprimento de pena.
Parcial conclusão
Diante dessa primeira visão já foi possível constatar a importância da Resolução 26 do CNPCP, ao estabelecer diretrizes claras e atualizadas para a realização do exame criminológico, buscando garantir maior objetividade, transparência e uniformidade nos procedimentos. Ela visa mitigar possíveis arbitrariedades e subjetividades que historicamente marcaram a aplicação desse instrumento.
Além disso, garante à defesa o efetivo contraditório do ato, tema que será ainda mais bem trabalhado na parte 2 dessa análise preliminar sobre a resolução.
Bibliografia
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PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Curso de penologia e execução penal. 2º Ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022.
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SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 5º Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
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SHIMIZU, Bruno; GOUVÊA POSSIDONIO RODRIGUES, Carolina. O exame criminológico como instrumento do binômio saber-poder: judicialização da resolução n°012/2011 do Conselho Federal de Psicologia. Revista de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, [S. l.], v. 3, p. 1–26, 2022. DOI: 10.24220/2675-9160v3e2022a6516. Disponível em: https://seer.sis.puc-campinas.edu.br/direitoshumanos/article/view/6516. Acesso em: 27 nov. 2024.
SIMÃO, Diego Azevedo. Lei de execução penal comentada e anotada. 1. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022.
VALOIS, Luis Carlos. processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: D’Plácido. 2019.
[1] https://www.estadao.com.br/brasil/ataca-coracao-do-pl-e-cloroquina-da-execucao-penal-veja-reacoes-a-regra-para-saidinha-de-presos/
[2] 5ª Turma STJ – AgRg no HC 929.034/SP; 6ª Turma STJ – HC 932.864/SC.
[3] Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.
[4] Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada.
[5] STJ – AgRg no HC 690.941/SP, AgRg no HC 451.804/MS, HC 429.590/MS;
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