Emendas impositivas e a quebra do ciclo orçamentário
30 de janeiro de 2025, 9h24
As questões orçamentárias alcançaram outros patamares desde a obrigatoriedade de inclusão e de execução na lei orçamentária anual de emendas aditivas pelo relator geral do orçamento da União (RP 9), pelas bancadas (RP 7), pelas comissões (RP 8), das emendas individuais (RP 7) e das transferências especiais (RP 6). Este conjunto de práticas iniciadas pela Emenda à Constituição nº 86/2015 ficou conhecido como “orçamento impositivo à brasileira” [1].
Conforme se sabe, este foi o resultado de um movimento de reforma do texto constitucional que remonta à “Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 22/2000, de autoria do senador Antônio Carlos Magalhães” que propunha a “necessidade de que o presidente da República tivesse que solicitar ao Congresso Nacional autorização para não gastar, total ou parcialmente, os recursos de determinada dotação” [2].
Em linhas gerais, essa proposta visava tornar o orçamento público federal impositivo, aos moldes do modelo estadunidense, limitando a discricionariedade do Executivo ao planejar, elaborar e administrar a execução do orçamento. No entanto, as reformas constitucionais que a sucederam (EC nº 86/2015, EC nº 100/2019 e EC nº 105/2019) provocaram a quebra do ciclo orçamentário mediante a execução das emendas impositivas pelos membros do Legislativo federal.
Procura-se demonstrar esse argumento na fase do ciclo orçamentário destinada ao controle externo (concomitante e posterior) realizado pelo Legislativo federal com auxílio do Tribunal de Contas da União. Em primeiro lugar, analisa-se alguns aspectos do orçamento público e das emendas orçamentárias para, na sequência, destacar os impactos contrários à Teoria da Constituição Financeira provocados pela execução de parcela do orçamento público federal diretamente pelos membros do Legislativo.
Por fim, demonstra-se – por meio da arguição de preceito fundamental ADPF nº 1.014/DF, que declarou a inconstitucionalidade do “orçamento secreto”, isto é, as emendas impositivas do relator geral do orçamento por meio da rubrica orçamentária única (RP 9) – a impossibilidade de controle sobre as emendas impositivas, cujas repercussões jurídicas ainda permanecem sob a análise do Supremo Tribunal Federal por meio da ADFP nº 854/DF.
1. Orçamento público e as emendas orçamentárias
Em meados da década de 1960 os Estados Unidos implementaram o orçamento público na modalidade PPBS (programming-planning-budgeting system) formado pelas fases do planejamento, da programação e do orçamento propriamente dito. Desde então esse modelo tem sido hegemônico e influencia as práticas orçamentárias mundo a fora. O Brasil aderiu ao orçamento programa desde a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964 [3].
Atualmente a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 disciplina a distribuição constitucional do poder financeiro. As alocações orçamentárias, longe de serem um conjunto de decisões neutras e imparciais, são fonte de tensão entre o Legislativo e o Executivo, sobretudo quando se considera as regras do atual sistema eleitoral. Igualmente, fornecem um dos principais indicativos para avaliar o grau de influência e de participação de agentes econômicos e de atores sociais na agenda pública.
Invariavelmente os programas e ações estatais devem estar previstos nas leis orçamentárias. Dessa forma, rende-se homenagem, dentre outros, aos princípios da unidade, da transparência ativa e da legalidade orçamentária, que objetivam a segurança jurídica (previsibilidade) e o controle externo do ciclo orçamentário (institucional e social).
Para tanto, o desenho constitucional estabeleceu uma separação de funções orçamentárias. As quais compete ao Executivo elaborar as propostas de leis orçamentárias (com participação do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública na apresentação de seus respectivos orçamentos); ao Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas da União, realizar a fiscalização e o controle externo (concomitante e posterior) e ao Judiciário o controle da compatibilidade com os objetivos constitucionalmente previstos.
Ocorre, porém, que as reformas constitucionais anunciadas na parte introdutória desse artigo relativizaram o modelo de separação de funções orçamentárias e criam um modelo bastante peculiar de obrigatoriedade apenas para as emendas apresentadas pelos congressistas. Teoricamente, o orçamento impositivo conduz “à valorização do planejamento e da decisão político-legislativa no campo orçamentário” [4].
No entanto, cabe questionar se a captura do orçamento federal pelo Legislativo reflete os movimentos de crise política brasileira registrados após as eleições presidenciais de 2014, cujo resultado direto e imediato consiste no enfraquecimento do Executivo federal. Mesmo porque, vale recordar que o orçamento público para além de ser um extraordinário mecanismo de “controle político” trata-se de um “fenômeno marcadamente econômico capaz de colocar diversas questões político-econômicas e também sociais” [5].
Nesse sentido, a positividade constitucional que determina os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil não foi capaz de inibir a obrigatoriedade seletiva (emendas impositivas) para permitir ao “parlamento, e principalmente à oposição, o controle político de seu cumprimento (controle político-parlamentar)” [6]. Por certo, essa conjuntura institucional/constitucional provoca impactos negativos na Teoria da Constituição Financeira, em parte, oriundos da execução de parcela do orçamento público federal diretamente pelos membros do Legislativo.
2. Pode o Legislativo executar o orçamento? Reflexos na Teoria da Constituição Financeira
De acordo com a definição clássica, ao Legislativo compete aprovar, acompanhar e fiscalizar a execução do orçamento público. Ressalvadas as competências orçamentárias próprias (autonomia financeira) e a autorização legislativa de créditos adicionais (instrumentos de flexibilidade), via de regra, descabe a participação do Legislativo na execução orçamentária.
Contudo, a “possibilidade de que o parlamento participe de decisões na fase de execução orçamentária” é conhecida nos sistemas presidencialistas e parlamentaristas, a exemplo dos Estados Unidos e da Alemanha [7]. Sendo que este é um dos aspectos que resultam na impossibilidade de controle externo sobre as emendas impositivas provocando a quebra indevida do ciclo orçamentário.
Nos termos da “doutrina do orçamento do Executivo” a fase da execução é essencialmente administrativa e objetiva a aplicação dos recursos financeiros aprovados pelo Legislativo. Assim, “qualquer tentativa tomada pelo Congresso de se imiscuir nessa fase seria não apenas vista como indesejável do ponto de vista administrativo, pois o Poder Legislativo é pouco capaz de administrar, como também inconstitucional, por violar uma fundamental separação de poderes legislativo e administrativo” [8].
O núcleo desse argumento repousa sobre a doutrina da separação de poderes e também de uma interpretação restritiva do texto constitucional vigente que delimita as “competências constitucionais orçamentárias” para “incluir a execução orçamentária no âmbito de competências do Poder Executivo, sem que nessa fase haja a previsão de colaboração do Poder Legislativo” [9].
Essa interpretação revela-se compatível com o princípio da legalidade em sentido estrito que impõe à administração pública a realização de atos somente quando autorizada por lei. Nesse sentido, “a execução orçamentária, então, é construída como uma prerrogativa do governo contra o parlamento” [10].
Todavia, existem contrapontos à “ideia apriorística de uma natural e insuprimível aptidão” do Executivo para realizar o orçamento público. Primeiro, porque a “Constituição Federal brasileira nada diz sobre competência privativa do Poder Executivo na fase de execução orçamentária”; segundo, por se tratar de uma visão conservadora (aliada a tradicional concentração de poderes pelo Executivo federal) que “não capta a importância constitucional que assume o parlamento em diversos momentos do orçamento público” [11].
Apesar de essas criticas não fornecerem respostas à quebra do ciclo orçamentário, acertam na conclusão ao afirmar que “não se deve identificar a execução orçamentária com o chefe do Poder Executivo, mas com toda a administração pública” [12]. Porém, à luz da Teoria da Constituição Financeira deve-se compreender que o “direito constitucional financeiro compreende o conjunto de normas do sistema constitucional que regula, direta ou indiretamente, a atividade financeira do Estado” [13].
Necessária se faz a interpretação sistêmica do texto constitucional para compreender que as reformas constitucionais ao tornarem impositivas as emendas orçamentárias advindas do parlamento rompem indevidamente o ciclo do orçamento. Restando inviável ou esvaziado o necessário controle externo (concomitante e posterior). Na prática, suprime-se qualquer espécie de controle quando a execução de tais emendas são desacompanhadas de transparência (ativa e passiva) impedindo a rastreabilidade dos valores empenhados em parcela significativa do orçamento federal.
Portanto, tem-se que a impositividade e a execução das emendas orçamentárias pelos membros do Legislativo, nos moldes como vem sendo realizadas, além de romper indevidamente o ciclo orçamentário, fortalecem a “teoria do poder financeiro estatal”. Ao passo que deveriam, por meio da reforma do texto constitucional, reforçar a “submissão desse poder à Constituição e a todas as limitações que desta decorrem” [14].
3. A quebra do ciclo orçamentário: a impossibilidade de controle sobre as emendas impositivas
Diante dessas disfuncionalidades orçamentárias coube ao Judiciário realizar o controle externo de algumas dessas emendas impositivas. Diversamente de um contexto de valorização da atuação do Legislativo no processo orçamentário brasileiro, potencialmente adequado para o processo de amadurecimento democrático, as emendas obrigatórias e a execução direta pelos parlamentares refletem uma realidade de desvio de finalidade do orçamento público.
Recentemente, coube ao Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF nº 1.014/DF, declarar a inconstitucionalidade do chamado “orçamento secreto”. Sob a égide da rubrica orçamentária única, classificada com indicador de resultado primário (RP 9) atribuída ao relator geral do orçamento, dissimulava-se um esquema oculto de barganha política “por meio do qual o Executivo favorece os integrantes de sua base parlamentar mediante a liberação de emendas orçamentárias em troca de apoio legislativo no Congresso Nacional” [15]. Apenas referente aos exercícios financeiros de 2021 e 2022 foram alocados no orçamento público federal, no mínimo, três bilhões de reais em emendas de relator.
Em verdade, a ausência de rastreabilidade (identificação do autor e do beneficiário) impede o exercício de qualquer tipo de controle posterior sobre a execução orçamentária e financeira das emendas do relator (classificadas pelo identificador RP 9). O enfraquecimento dos checks and balances produz uma espécie de fraude à Constituição que afasta o orçamento público dos ideais republicanos.
Recuperando as análises realizadas no tópico antecedente, o STF entendeu que a “Constituição Federal não restringiu a atuação do Poder Legislativo no processo orçamentário somente à apreciação e aprovação das leis orçamentárias. Na realidade, foram ampliados os poderes de controle e fiscalização parlamentar nas várias etapas do ciclo orçamentário” [16]. No entanto, conforme já se disse, o abuso das emendas impositivas interfere no ciclo orçamentário, em especial na fase de controle a posteriori (controle externo).
Nesse sentido, a maioria dos ministros do STF declarou a incompatibilidade “com a ordem constitucional brasileira [d]as práticas orçamentárias viabilizadoras do chamado ‘esquema do orçamento secreto’, consistentes no uso indevido das emendas do Relator-Geral do orçamento” [17]. Os desdobramentos jurídicos ainda permanecem em movimento noutras ações judiciais (ADFP nº 854/DF) e informam que entre os anos de 2019 e 2024, o valor total pago mediante emendas orçamentária, cuja origem e destino são ignorados, ultrapassam a cifra de R$ 186 bilhões [18].
Algumas palavras finais
A partir do ano de 2015 percebeu-se um movimento de utilização da normatividade do texto constitucional, via sucessivas reformas constitucionais, para institucionalizar a correlação momentânea das forças políticas. Com efeito, isso provocou significativas alterações no texto constitucional vigente de modo a conformá-lo de acordo com as preferências políticas, subvertendo a ideia de que o “jogo político” deve ser realizado de acordo com a Constituição e não o inverso. Este movimento pode ser identificado nas emendas parlamentares impositivas (relator, bancadas, comissões, individuais e transferências especiais).
Não fosse suficiente a obrigatoriedade desses tipos de emendas, elas também são executadas pelos congressistas que deveriam ocupar-se precipuamente da função de controle externo (concomitante e posterior). A execução orçamentária pelo Legislativo, ressalvadas suas competências orçamentárias próprias, carecem de lastro constitucional além de romper indevidamente o ciclo orçamentário e enfraquecer o sistema de freios e contrapesos constitucionais. Nesse sentido, repercutem negativamente na Teoria da Constituição Financeira.
Diante desse quadro disfuncional, caracterizado pelo desvio de finalidade do orçamento público federal coube ao Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF nº 1.014/DF declarar a inconstitucionalidade do chamado “orçamento secreto”. Uma vez obstadas as emendas impositivas do relator geral do orçamento por meio da rubrica orçamentária única (RP 9), estabeleceu-se uma nova roupagem para um antigo problema por meio das transferências especiais (emendas pix – RP 6), mas isso é assunto para outros capítulos da história constitucional brasileira.
Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 1.014/DF. Rel. Ministra Rosa Weber. Plenário. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 19 dez. 2022. Disponível em: http://www.stf.jus.br Acesso em: 27 jan. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF libera pagamento de emendas parlamentares, condicionado a critérios. Notícias, Brasília, 02 dez. 2024. Disponível em: http://www.stf.jus.br Acesso em: 27 jan. 2025.
LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016
SCAFF, Fernando Facury. Surge o orçamento impositivo à brasileira pela emenda constitucional n. 86. Revista Eletrônica Consultor Jurídico – CONJUR, São Paulo, 24 mar. 2015, [n. p].
TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional financeiro: teoria da constituição financeira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[1] Cf. SCAFF, Fernando Facury. Surge o orçamento impositivo à brasileira pela emenda constitucional n. 86. Revista Eletrônica Consultor Jurídico – CONJUR, São Paulo, 24 mar. 2015, [n. p].
[2] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 137 e 139.
[3] Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
[4] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 147.
[5] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 49.
[6] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 50-51.
[7] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 113.
[8] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 35.
[9] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 36.
[10] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 42.
[11] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 41-42.
[12] LOCHAGIN, Gabriel Loretto. A execução do orçamento público: flexibilidade e orçamento impositivo. São Paulo: Blucher, 2016, p. 64.
[13] TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional financeiro: teoria da constituição financeira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 25.
[14] TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional financeiro: teoria da constituição financeira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 54.
[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 1.014/DF. Rel. Ministra Rosa Weber. Plenário. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 19 dez. 2022, p. 02-03.
[16] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 1.014/DF. Rel. Ministra Rosa Weber. Plenário. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 19 dez. 2022, p. 42.
[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 1.014/DF. Rel. Ministra Rosa Weber. Plenário. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 19 dez. 2022, p. 348.
[18] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF libera pagamento de emendas parlamentares, condicionado a critérios. Notícias, Brasília, 02 dez. 2024, [n. p.].
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