Opinião

Deportações e uso de algemas: análise jurídica e humanitária

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  • é advogada mãe mulher vice-presidente da Abracrim-RN diretora institucional da Abracrim Mulher presidente da Abracrim Mulher-RN auditora do TJDRN segunda secretária do Podemos-RN e uma das idealizadoras do Projeto Clara Camarão.

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30 de janeiro de 2025, 21h45

Nos últimos anos, as políticas de repatriação e deportação de imigrantes em situação irregular têm se intensificado em diversos países, chamando a atenção de organizações de direitos humanos e especialistas jurídicos. Entre os pontos mais discutidos estão o uso de algemas durante os processos de deportação e as condições impostas aos repatriados. Essas práticas, embora muitas vezes justificadas como medidas de segurança, suscitam reflexões sobre sua proporcionalidade e conformidade com normas internacionais de direitos humanos e princípios constitucionais.

Contexto jurídico-internacional das repatriações

Os países signatários de tratados internacionais têm o dever de respeitar normas básicas de direitos humanos, conforme previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Esses instrumentos asseguram a dignidade humana, a proibição de tortura e tratamentos degradantes e a proteção do devido processo legal, mesmo em casos de migração irregular.

O uso de algemas nos pés e nos braços durante o transporte de imigrantes levanta questionamentos sobre a proporcionalidade e a possível violação desses princípios. A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias (1990) veda a criminalização da migração irregular e impõe limites ao uso da força contra imigrantes.

Princípios constitucionais do Brasil

O Brasil, em sua Constituição de 1988, incorporou uma série de princípios fundamentais que norteiam sua política interna e suas relações internacionais. Entre eles, destacam-se:

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Dignidade da Pessoa Humana: Valor central do nosso ordenamento jurídico brasileiro, é o fundamento que impede tratamentos cruéis ou desumanos, mesmo em processos administrativos ou de migração. Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet destaca que a dignidade humana é a base de todos os direitos fundamentais e deve orientar as políticas públicas, inclusive no âmbito migratório [1].

Prevalência dos Direitos Humanos: O Brasil compromete-se, em suas relações internacionais, a priorizar a proteção dos direitos fundamentais em todas as suas ações e acordos bilaterais. Esse princípio reforça o compromisso do Brasil com os tratados internacionais de direitos humanos. José Joaquim Gomes Canotilho argumenta que o princípio da prevalência dos direitos humanos deve ser integrado às políticas de Estado, inclusive em contextos de soberania nacional [2].

Devido Processo Legal e Ampla Defesa: Mesmo em contextos de repatriação ou deportação, as garantias processuais devem ser respeitadas, assegurando que o migrante tenha direito a uma análise individual e justa de seu caso. Para Paulo Bonavides, essas garantias são inalienáveis e representam a base do Estado Democrático de Direito [3].

Proibição de Tortura e Tratamento Desumano ou Degradante:  A integridade física e moral dos indivíduos é protegida pela Constituição, sendo vedado qualquer ato que submeta uma pessoa a sofrimento desnecessário, como o uso desproporcional de algemas.

Esses princípios falam por si só e não apenas orientam a conduta interna do Brasil, mas também refletem o compromisso do país em adotar padrões internacionais de proteção aos direitos humanos.

Responsabilidades internacionais e alternativas

Os princípios constitucionais brasileiros, combinados com os tratados internacionais aos quais o país é signatário, impõem aos Estados a obrigação de respeitar e proteger a dignidade humana em qualquer circunstância. Isso inclui:

1. Supervisão por Organismos Internacionais: Instituições como a ONU e a Corte Interamericana de Direitos Humanos desempenham papel crucial na fiscalização do cumprimento das normas internacionais de proteção aos direitos humanos.

2. Desenvolvimento de Políticas Humanitárias: Os países devem adotar políticas migratórias que equilibrem segurança nacional e direitos humanos, promovendo programas de regularização migratória e apoio aos imigrantes.

3. Enfrentamento das Causas Estruturais da Migração: Crises econômicas, conflitos políticos e desigualdades regionais devem ser abordados como forma de reduzir os fluxos migratórios forçados e evitar práticas coercitivas desproporcionais.

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Prisão preventiva não é compatível com regime inicial de pena no semiaberto

As práticas de repatriação devem ser analisadas sob a ótica dos princípios constitucionais e tratados internacionais, garantindo que os imigrantes sejam tratados com dignidade e respeito, independentemente de sua situação legal. Ao adotar políticas mais humanitárias e transparentes, os Estados reafirmam seu compromisso com os direitos humanos e fortalecem a cooperação internacional em prol de um sistema migratório mais justo e equilibrado.

O Brasil, como signatário de importantes tratados internacionais e com uma Constituição pautada na dignidade humana, tem o potencial de liderar discussões globais sobre repatriações e de servir como exemplo na defesa dos direitos dos imigrantes, dentro e fora de seu território.

Temos que ser garantistas e devemos atuar em defesa da nossa Constituição e do Estado democrático de Direito, nenhum passo atrás e nenhum direito a menos.

 


Referências bibliográficas

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Disponível em: https://www.un.org.

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966). Disponível em: https://www.ohchr.org.

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969). Disponível em: https://www.cidh.oas.org.

Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias (1990). Disponível em: https://www.ohchr.org.

Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: http://www.planalto.gov.br.

Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017). Disponível em: http://www.planalto.gov.br.

Código de Processo Penal (1941). Disponível em: http://www.planalto.gov.br.

Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal (2008). Disponível em: https://www.stf.jus.br.

Polícia Federal do Brasil: Relatórios sobre deportações e repatriações. Disponível em: https://www.gov.br/pf.

Relatórios da ONU sobre Direitos Humanos e Migração. Disponível em: https://www.un.org.

Relatórios da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Disponível em: https://www.cidh.oas.org.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

[1] Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 10ª ed.

[2] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed.

[3] Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 30ª ed.

Autores

  • é advogada criminalista e eleitoralista, especialista em Processo Penal, Direito Público e Direito Eleitoral, pesquisadora em Criminologia, com atuação nos Tribunais Superiores, presidente Nacional da Abracrim Mulher, secretária-geral da Abracrim Nacional, membra do IAB e ABMCJ, autora de diversas obras jurídicas e palestrante.

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