Sem anistia: o 8 de Janeiro entre as Erínias e o Tribunal de Atena
29 de janeiro de 2025, 13h22
Tramita na Câmara dos Deputados o PL nº 2.858/22, que “concede anistia a todos que tenham participado de manifestações em qualquer lugar do território nacional do dia 30 de outubro de 2022 ao dia de entrada em vigor desta lei”. O artigo 1º, § 1º, do PL expressa que “a anistia de que trata o caput compreende crimes políticos ou com estes conexos e eleitorais”, deixando bastante claro que o objetivo da lei era anistiar pessoas que questionassem o resultado das urnas de 2022. O PL foi proposto por parlamentar do Partido Liberal, sigla do ex-presidente da República Jair Bolsonaro.
Referido PL é bastante econômico em suas palavras. Embora o § 4º do artigo 1º exclua crimes contra a vida, integridade corporal e de sequestro e cárcere privado, ele não menciona crimes cometidos com violência ou grave ameaça, além de desconsiderar os artigos 359-L e 359-M do Código Penal, que já estavam em vigor pela Lei nº 14.197/21, e que tipificam crimes de insurreição com emprego de “violência ou grave ameaça”. Na prática, e desconsiderando possíveis alterações no texto da proposta original, a promulgação do PL em lei perdoaria “crimes políticos”, mesmo cometidos mediante violência ou grave ameaça — ou seja, teria potencial de anistiar os condenados nos lamentáveis episódios do 8 de Janeiro.
A atualidade da questão coloca luzes a alguns temas de relevo. O primeiro é a anistia enquanto instituto jurídico e seus diversos desenvolvimentos históricos que remontam até as tragédias gregas. O outro são as condenações proferidas no âmbito do 8 de Janeiro. A anistia, com toda a certeza, não é o caminho que se deve seguir. Mas a sua presença fantasmagórica na sede de um dos Poderes da República nos inspira a refletir sobre a resolução dos casos penais.
Anistia: perdão como desligamento do passado
Dentre os incontáveis autores que trabalham o conceito de anistia, há François Ost, professor belga com carreira consolidada na França, que possui diversos trabalhos traduzidos para a língua portuguesa, abordando uma infinidade de temas jurídicos. Dentre todos os seus trabalhos, provavelmente o mais conhecido é “O tempo do direito”.
Referida obra é dividida em quatro partes: duas dedicadas ao passado (memória e perdão) e duas ao futuro (promessa e requestionamento). Há três teses fundamentais que permeiam o livro: o tempo, antes de fenômeno físico ou experiência psíquica, é uma instituição social, ele temporaliza-se; o direito tem como principal função a de contribuir para a instituição do social, uma discussão fundamental no âmbito da teoria do direito; é preciso realizar uma síntese entre as duas outras teses: o tempo e o direito constituem um todo indissociável, e a institucionalização do tempo é também do direito e vice-versa.
O passado é abordado por Ost dos pontos de vista da memória e do perdão. A memória aparece em um contexto de ligar o passado: anamnese, lembrança, registro (o contrário de amnésia, esquecimento). A memória é a primeira forma do tempo jurídico instituinte, cabendo ao direito o papel de seu guardião — v.g. registros públicos: nascimentos, óbitos etc.
O perdão, por sua vez, aparece em contexto oposto: o de desligar o passado. Aqui, está em jogo uma noção de perdoar, sem jamais esquecer: encontram-se os valores da verdade e da reconciliação. O perdão só é possível com o restabelecimento da verdade, sendo o melhor dentre todos os exemplos o da anistia.
Neste ponto, nasce uma miríade de problemas: como desligar o passado sem o abolir? Como superar a ofensa sem a esquecer? Como ultrapassar a vingança sem cair na injustiça? Para Ost, ninguém melhor respondeu essas perguntas do que Ésquilo na Oresteia, especialmente nas Euménides. Uma (re)leitura desta obra milenar tem muito a acrescentar nas reflexões de hoje.
Crime genealógico e a velha justiça
“Quando a terra que nos nutre bebe sangue de assassínio, este clama por vingança, coalha, não corre mais”
(ÉSQUILO, Coéforas, Párodo, Estrofe 3ª)
A Oresteia é uma trilogia de tragédias (Agamémnon, Coéforas e Euménides) que narram três crimes, todos ocorridos na linhagem dos atridas (patronímico de Atreu).
O primeiro crime foi cometido por Atreu, que se desentendeu com seu irmão, Tiestes, e, como vingança, matou seus filhos ainda crianças e os deu de comer a Tiestes — que, por óbvio, não sabia. [1] O segundo crime vitimou o filho de Atreu, Agamémnon, que foi o rei que chefiou a excursão dos gregos em Tróia, e que ofereceu um sacrifício à deusa Ártemis para que bons ventos guiassem suas velas: sua filha Ifigênia. Dez anos depois, Agamémnon retorna para Argos, onde é morto por sua esposa Clitemnestra, como vingança pelo sacrifício de sua filha.
Este o segundo crime cometido — que, aliás, praticou com auxílio de seu amante, Egisto, filho de Tiestes. O terceiro e último crime foi cometido por Orestes, que, orientado pelo deus Apolo, vinga o pai assassinando sua mãe, Clitemnestra, e seu amante, Egisto. Essa sucessão horrível de fatos mostra como o crime transmite-se de geração em geração, sempre os filhos pagando pelo erro dos pais. [2] A Justiça daquele tempo, pelo menos tal como narrada por Ésquilo, era uma Justiça de sangue, de vingança.
Na noite anterior à sua morte, Clitemnestra sonhou que havia dado luz a uma serpente, e que, ao dar-lhe o seio, a serpente sugou não só o leite materno, mas um coágulo de sangue. O sangue coagulado explica que a justiça não está feita: “as gotas de sangue derramadas sobre o solo exigiam outro sangue, pois o assassínio clama pela Erínia, que, vingando as primeiras vítimas, faz a desgraça suceder à desgraça”. [3] Assim, “o passado tem uma presença pelo menos tão forte quanto o presente”, como se o tempo andasse ao contrário: não se experimenta o novo, apenas se cumpre o antigo, o que “estava inscrito na memória do crime” — ele se transmite de geração em geração, como se doravante devesse ser pago com juros. [4]
As Erínias eram deusas que personificavam a vingança. Eram deusas consideradas “antigas”, diferentemente dos “deuses novos”, que habitavam o Olimpo: Zeus, Apolo, Atena etc. Elas puniam com a vingança os crimes que eram cometidos no próprio sangue. Por esse motivo, elas não intervêm contra Clitemnestra para vingar Agamémnon, pois a sua relação era conjugal. É diferente da situação de Orestes: este, por ter matado sua mãe, merecia o castigo das Erínias.
Orestes, a nova justiça do Tribunal de Atena e as Euménides
“Mas quem venceu foi Zeus, o deus da palavra, quem venceu foi a nossa disputa do bem para sempre!”
(Atena, v. 975-6)
Orestes é um personagem mais complexo e humano que os de outras tragédias gregas. Diferente de Édipo, que não podia fugir do seu destino de matar o seu pai, Orestes recebeu seu dever de Apolo, que chega a ameaçá-lo em caso de desobediência, deixando bem claro que esta era possível. [5] Ele era oprimido por dois deveres opostos: respeitar a mãe e vingar o pai. [6]
A última tragédia, As Euménides, narra o julgamento de Orestes, que se passa em Palas, cidade de Atena, para onde ele foge sob orientação de Apolo. Atena, em sua sabedoria, declara que a matéria é demasiado grave para o julgamento de um mortal; mas ela própria também não poderia pronunciar-se sobre um crime cometido sob a ação da cólera vingadora — e, do outro lado, havia os direitos das Erínias. Sendo assim, a deusa decreta que elegerá juízes entre os cidadãos da sua cidade, criando um tribunal que “funcionará para sempre”. [7]
Como os deuses antigos (Erínias) e os novos (Apolo) eram partes no processo, cada um na sua imposição de Justiça, os julgadores não poderiam pertencer a nenhum grupo: foram escolhidos juízes humanos. [8] Apolo, aliás, atuou como testemunha e defensor de Orestes, pois foi ele o responsável pelo assassínio de Clitemnestra — o Corifeu chegara a afirmar que Apolo não era só cúmplice, “mas o único autor, inteiramente responsável por tudo”. [9]
Antes da prolação da sentença, Atena faz um discurso, aconselhando o júri, colocando a Justiça como instituição que serve de baluarte salvador da terra, parte de “uma forma de governo intermédia entre a anarquia e o despotismo”. [10] O resultado é proclamado: por igualdade de votos para ambas as partes, Orestes foi absolvido.
As Erínias mostram descontentamento com o resultado, mas Atena as promete um lugar em sua cidade, assento, asilo e um trono luzente onde receberiam homenagens dos cidadãos. As Erínias, que até então habitavam o Tártaro, ficam encantadas, renunciam à cólera e passam a lançar favoráveis augúrios à terra. É feita a metamorfose das Erínias em Euménides, e a promessa de Atena possui uma dimensão de ligar o futuro. Neste processo, a anistia conseguiu libertar-se das facilidades do esquecimento em direção a um futuro reconciliado. [11]
A fala de Atena, citada acima, demonstra o que significou o julgamento de Orestes para a história e para o direito: a violência da vingança é substituída pela palavra e pelo diálogo. Ost enxerga nesse momento algo a mais: o tempo monolítico da memória dá lugar ao tempo do perdão: o “direito novo” é baseado em leis aprovadas por maioria e dá lugar à anistia quando o bem público o exige [12] — desaparece de vez a figura do sangue coagulado que só escorre com a vingança.
Penas do 8 de Janeiro, dois anos depois
Dois anos depois, o STF já havia responsabilizado 898 pessoas. [13] De todos esses casos, houve diversas soluções jurídicas encontradas pelo Supremo: desde a firmatura de ANPP até condenações. Essas últimas, em centenas, destacam-se pela gravidade de pena que ostentam.
Muitas pessoas foram condenadas a penas superiores a 16 anos de reclusão em regime fechado, [14] pelo concurso (material) de cinco crimes: abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L, CP); golpe de Estado (artigo 359-M, CP); dano qualificado (artigo 164, III, CP); deterioração de patrimônio tombado (artigo 62, I, Lei nº 9.605/98); e associação criminosa armada (artigo 288, parágrafo único, CP). Nesses casos, há questionamentos dogmáticos que não parecem ter sido resolvidos da melhor maneira, resultando em penas excessivamente altas.
Sem pretensão de aprofundar dogmaticamente o tema, provoca-se algumas reflexões. Alguns crimes possuem clara possibilidade de aplicação do princípio da consunção, onde há crimes-meio e crimes-fim, ou, quiçá, do princípio da especialidade. O caso mais simples é o dos crimes de dano e de deterioração: ambos atingem o patrimônio. Mas também nos crimes de insurreição fica a dúvida: quem, por ventura, visa a abolir o Estado democrático de direito, pode fazê-lo sem, ao mesmo tempo, depor o governo legitimamente constituído? [15]
Mas não é só. Os crimes foram submetidos ao tratamento do cúmulo material do artigo 69 do Código Penal, segundo o qual somam-se as penas finais de cada um dos crimes. A regra para o concurso material é bastante clara no caput: quando o agente mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes. A pergunta que se coloca é: ao tentar abolir o Estado mediante violência, não estão incluídos no conceito de violência os conceitos de dano e de deterioração? Sendo assim, o caminho mais lógico não é pensar que houve uma só ação ou omissão — e, portanto, cúmulo formal (artigo 70, CP), que afasta o somatório de penas para os réus?
Além disso, há problemas com relação ao conceito de “crimes multitudinários”, que é mais afeito à psicologia do que à dogmática penal, mas que não cabe explorar aqui. Basta dizer que, se um crime é cometido em turba, espontaneamente, não há falar-se em associação criminosa, que demanda organização; [16] além disso, pela letra do Código, quando um crime é cometido sob influência de multidão, a pena deve ser atenuada (artigo 62, III, e, CP), o que não ocorreu.
Seja como for, fica o questionamento: não são duras em demasiado as penas aplicadas nas condenações? Por mais execráveis que tenham sido os crimes cometidos, é difícil crer que todas as mais de duas centenas de pessoas condenadas a mais de década e meia de reclusão tenham praticado fatos tão graves. Afinal, “penas excessivas […] também criam mártires, permitem a denúncia de perseguição política e a percepção de condenações injustas, estimulando os extremistas não ar recuarem, mas a reafirmarem suas narrativas”. [17]
Vingança ou perdão para os crimes do 8 de Janeiro?
A anistia é o perdão condicionado pela verdade. A verdade dos fatos do 8 de Janeiro não está ocultada de ninguém: está aí, para quem quiser consultar os anais da história. Contudo, os envolvidos no episódio parecem seguir envolvidos em uma narrativa distorcida da realidade, reafirmando cada vez mais suas convicções golpistas, inclusive negando a legitimidade das urnas.
Nesse contexto, o perdão é injustificado: o que aconteceu na praça dos três poderes é injustificável. Não houve deus nenhum sussurrando aos ouvidos dos insurgentes: no máximo, pessoas com intuitos golpistas que estão elas próprios sendo investigadas por planos frustrados de golpe de Estado. [18] O Brasil é um país marcado por inúmeros golpes militares: o de 1964 foi apenas o último, mas divide com os seus antecessores alguns traços evidentes de autoritarismo: restrições imotivadas de direitos, violência de Estado, tortura, dentre muitas outras.
A tentativa de, mediante violência, romper o paradigma da democracia, que a duras custas se conquistou e que a mais duras custas ainda se mantém, é um crime que deve ser punido nos termos da lei — e não com tortura, desaparecimentos e morte, como fizeram militares do passado. Ost, aliás, adverte que cada lei de anistia é diferente e excepcional, somente possível quando há conhecimento da verdade; logo, o contexto histórico e político de cada lugar é preciso ser levado muito a sério, caso contrário, é uma tentativa de “passar uma borracha” no passado. [19]
Do outro lado, resta questionar agora qual Justiça se quer para os crimes do 8 de Janeiro. É a justiça vingativa das Erínias? Penas de uma década e meia excedem, com sobras, a muitas condenações por homicídio. Para pessoas com mais de 50 anos, pode significar um final de vida privada da liberdade. Além do mais, é preciso perguntar por quais crimes essas pessoas estão respondendo. A tentativa de golpe, as depredações, as incitações a crime e notícias falsas foram todas espontâneas, ou foram, na verdade, resultado de um movimento muito maior que veio de cima, e que, até o presente momento, está sendo apurado em outra operação (tempus veritatis)?
Os condenados do 8 de Janeiro estão cumprindo duríssimas penas apenas pelos próprios atos, ou será que, assim como nos crimes geracionais do passado, eles estão sendo responsabilizados por ordens que vieram de cima, de pessoas do alto escalão do governo ou das Forças Armadas, ancoradas em um passado monolítico que se recusa a passar?
[1] “…é o antigo áspero génio vingador do crime de Atreu, o cruel anfitrião, que se mostra sob os traços da mulher deste morto, sacrificando esta vítima adulta em pagamento do assassínio das crianças”. ÉSQUILO. Oresteia. Trad. Manuel de Oliveira Pulquério. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 92.
[2] OST, François. Op. cit., p. 146.
[3] ÉSQUILO. Op. cit., p. 145.
[4] OST, François. Op. cit., p. 147.
[5] ÉSQUILO. Op. cit., p. 130-131.
[6] OST, François. Op. cit., p. 148.
[7] ÉSQUILO. Op. cit., p. 209.
[8] PULQUÉRIO, Manuel de Oliveira. Introdução. In: ÉSQUILO. Oresteia. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 178.
[9] ÉSQUILO. Op. cit., p. 194.
[10] ÉSQUILO. Op. cit., p. 220.
[11] OST, François. Op. cit., p. 187.
[12] OST, François. Op. cit., p. 148-9.
[13] Cfr. relatório do gabinete do min. Alexandre de Moraes: https://bit.ly/4g0tzM3
[14] Aproximadamente 43,4% das 225 penas aplicadas, sendo o máximo no patamar de 17 anos e 6 meses.
[15] Há autores que entendem que há, sim concurso, mas formal, e não material, como decidido pelo STF: BATISTA, Nilo; BORGES, Rafael. Crimes contra o Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Revan, 2023, p. 101. Mas há quem defenda que tentar abolir o Estado de Direito por golpe de Estado configura sobreposição total, afastando o concurso e atraindo a consunção: MIRANDA, Lucas; VIANNA, Túlio. O crime de golpe de Estado no direito comparado e no Brasil. Revista de Estudos Criminais, nº 89, pp. 49-71, abr./jun. 2023, p. 66.
[16] Consultar a opinião do prof. Davi Tangerino no Podcast “Pauta Criminal”, Edição Especial: 8/1.
[17] ARANTES, Pedro Fiori; FRIAS, Fernando; MENESES, Maria Luiza. 8/1: a rebelião dos manés: ou esquerda e direito nos espelhos de Brasília. São Paulo: Hedra, 2024, p. 155.
[18] A esse respeito, consultar: WEINGARTNER NETO, Jayme; SALTIEL, Ramiro Gomes von. Atos preparatórios são puníveis em direito penal? Sobre tramar assassinatos e golpes. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-22/atos-preparatorios-sao-puniveis-em-direito-penal-sobre-tramar-assassinatos-e-golpes/.
[19] OST, François. Op. cit., p. 182 e ss.
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