Opinião

Quem não tem cão, caça com IDPJ: desconsideração da PJ contra os sócios da recuperanda

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29 de janeiro de 2025, 7h02

A personalidade jurídica é a armadura que possibilita a realização, de modo mais adequado, dos interesses dos indivíduos. Trata-se de importante instituto jurídico que visa incentivar o desenvolvimento econômico por meio da limitação dos riscos assumidos pelo empreendedor. Essa limitação de riscos opera-se pela autonomia do patrimônio da pessoa jurídica em relação aos seus sócios, de forma a impedir que o insucesso nos negócios resulte na responsabilidade dos sócios pelas dívidas contraídas pela sociedade. O risco dos sócios, em linhas diretas, restringe-se ao patrimônio investido na sociedade.

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A separação patrimonial, contudo, não é absoluta e, em certas ocasiões, o patrimônio dos sócios pode responder pelas dívidas da sociedade. É o que se convencionou chamar de desconsideração da personalidade jurídica — uma importação do direito inglês formatada a partir do precedente do caso Salomon Vs. Salomon. Tudo não passa, na realidade, de uma simples leitura do aludido princípio da separação patrimonial à luz das noções do abuso de direito (artigo 187 do Código Civil).

No direito brasileiro foram desenvolvidas duas teorias para fundamentar a desconsideração da personalidade jurídica: a Teoria Maior e a Teoria Menor. Na Teoria Maior, prevista no artigo 50 do Código Civil, a desconsideração depende da demonstração de que a personalidade jurídica está sendo utilizada de forma abusiva, com práticas como o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial entre a sociedade e seus sócios. Já na Teoria Menor, que é aplicável apenas para dívidas relativas aos Direitos Ambiental (artigo 4º da Lei 9605/1998) e do Consumidor (artigo 28, §5º do Código de Defesa do Consumidor), a desconsideração é autorizada quando a personalidade jurídica representar obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao meio ambiente ou aos consumidores.

Seja qual for a teoria adotada, o fato é que a desconsideração da personalidade jurídica depende do inadimplemento de uma obrigação por parte da pessoa jurídica que leve o credor a pleitear a responsabilização dos sócios para a sua satisfação.

Mas e quando a sociedade cuja personalidade jurídica se pretende desconsiderar requer, o processamento da sua recuperação judicial, conforme Lei Federal nº 11.101/2005?

A recuperação judicial permite às sociedades empresárias em crise econômico-financeira a reestruturação de suas dívidas de forma a viabilizar a continuidade da atividade empresarial. Trata-se de processo judicial no qual se objetiva a realização de assembleia dos credores da recuperanda, para aprovação de um acordo de natureza coletiva e cogente, sempre em vistas de uma preservação da atividade empresarial em perigo existencial e sob a supervisão do Poder Judiciário e de um Administrador Judicial.

Uma vez aprovado e homologado o plano de recuperação judicial, as obrigações da recuperanda anteriores ao pedido de recuperação judicial, para todos os fins, sofrem os efeitos da novação (artigo 59 da Lei Federal nº 11.101/2005). Ou seja, com a aprovação do plano de recuperação, as dívidas antigas deixam de existir para o nascimento de novas dívidas que serão pagas nos termos aprovados pela assembleia formada pelos credores.

Retornando à questão posta, parece-nos que a novação decorrente do plano de recuperação judicial deve, necessariamente, exercer efeitos sobre os pedidos de desconsideração da personalidade jurídica das empresas em recuperação judicial.

A respeito do tema, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 2.072.272, entendeu que, uma vez desconsiderada a personalidade jurídica, a aprovação do plano de recuperação judicial não coíbe o prosseguimento da execução contra os sócios e que a pretensão de se desconsiderar a personalidade jurídica da devedora deve ser manifestada até a aprovação do plano de recuperação judicial pela assembleia de credores.

O atual posicionamento do Superior Tribunal Justiça, ainda que no caminho certo, nos parece tímido, em especial levando em consideração importantes elementos, como a natureza jurídica do plano de recuperação judicial e a condição na qual os sócios da pessoa jurídica cuja personalidade foi desconsiderada ingressam na execução.

Isso porque, o plano de recuperação judicial nada mais é do que uma proposta inicial de acordo a ser firmado com os credores e, uma vez aprovado pela assembleia geral de credores, todos os créditos anteriores ao pedido de recuperação judicial são novados. Em consequência, as execuções movidas contra a sociedade em recuperação judicial são extintas por conta do acordo celebrado.

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Se, por força da recuperação judicial, a dívida original não subsiste mais, é inconcebível que os pedidos de desconsideração da personalidade jurídica prossigam, até porque, independentemente da teoria adotada (Maior ou Menor), o inadimplemento é pressuposto básico para o pedido de desconsideração da personalidade.

Em outras palavras, uma vez extinto o crédito originário mantido contra a sociedade em recuperação judicial, também devem ser extintos os pedidos de desconsideração da personalidade jurídica fundamentados pelo inadimplemento desse crédito e as execuções voltadas contra os sócios em decorrência do acolhimento de pedido de desconsideração da personalidade jurídica anterior.

Na verdade, há uma significativa alteração na situação financeira da sociedade que, em decorrência da aprovação e homologação do plano de recuperação judicial, deixa de estar em estado de insuficiência patrimonial.

Aplicação do Tema Repetitivo 885

Não se desconhece que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Tema Repetitivo nº 885 firmou o entendimento de que a recuperação judicial não exerce efeitos sobre terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória. O entendimento do Tema Repetitivo nº 885, contudo, não se aplica aos sócios da sociedade que teve sua personalidade desconsiderada, já que esses não assumem a dívida na qualidade de terceiros devedores solidários ou por conta de garantia, mas, sim, atribui aos sócios a responsabilidade pelo pagamento da dívida em virtude de suspensão episódica da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.

Com efeito, a extinção dos incidentes de desconsideração da personalidade jurídica e das execuções movidas contra os sócios é a hipótese que se alinha com a própria natureza jurídica do acordo de credores e da posição assumida pelo sócio no caso de desconsideração da personalidade.

Em adição à adequação técnico-jurídica, o alcance dos efeitos da novação sobre os pedidos de desconsideração também objetiva viabilizar a recuperação da sociedade empresária, em benefício de toda a massa de credores e, sobretudo, da economia. Isso porque, no caso específico da Teoria Menor da personalidade jurídica, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade em recuperação judicial oferece potencial risco ao soerguimento da empresa já que, por não haver atuação fraudulenta por parte do sócio, este poderá mover ação de regresso contra a sociedade e esse novo crédito não estará necessariamente sujeito aos efeitos do plano de recuperação judicial.

Ou seja, além de impropriedade conceitual, autorizar a desconsideração da personalidade jurídica de sociedades em recuperação em decorrência do inadimplemento de créditos extintos pela aprovação do plano de recuperação judicial pode ensejar na conversão em massa de créditos concursais em extraconcursais, inviabilizando a reorganização da empresa.

É certo que, com a evolução do instituto da recuperação judicial no Direito brasileiro, o caráter punitivo imposto à empresa em recuperação judicial foi relativizado. Apesar disso, parece-nos que avançar sobre o patrimônio dos sócios da recuperanda através da desconsideração da personalidade jurídica configura medida excessiva e contrária à sistemática das recuperações judiciais. Trocando em miúdos, a desconsideração da personalidade jurídica de empresa em recuperação judicial significa não dar a plenitude dos efeitos previstos em lei ao plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, fiscalizado pelo Ministério Público, homologado pelo Poder Judiciário e em atendimento aos diversos princípios estabelecidos na Lei 11.101/2005.

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