Opinião

O ato concertado e sua utilidade para os programas de atendimento ao superendividado (parte 3)

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  • é mestre em Direito do Estado pela Unifran-SP promotor de Justiça do estado de Minas Gerais coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte e coordenador estadual do Procon-MG.

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29 de janeiro de 2025, 8h00

Continuação das partes 1 e 2

Muito se tem discutido sobre a efetividade das modificações introduzidas no Código de Defesa do Consumidor pela Lei nº 14.181/2021, especialmente no que diz respeito às normas que regulamentam o procedimento para o tratamento do consumidor superendividado.

Desde a vigência da referida norma, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor vem envidando esforços para implementar seus ditames, com o objetivo de proporcionar o devido tratamento às pessoas que tiveram o mínimo existencial comprometido em razão do excesso de empréstimos e dívidas, principalmente junto às instituições financeiras e aos correspondentes bancários.

Como é amplamente reconhecido, esse tratamento se divide em duas fases distintas: a extrajudicial (de caráter autocompositivo) e a judicial. Na esfera extrajudicial, a responsabilidade pelo atendimento ao consumidor superendividado recai principalmente sobre o Ministério Público, os Procons, as Defensorias Públicas ou as articulações entre estes órgãos e o Poder Judiciário, como ocorre em Belo Horizonte com a implementação do Programa de Atendimento ao Superendividado (PAS).

Na esfera procedimental, as alterações introduzidas pela Lei nº 14.181/2021, que disciplinam também a ação de repactuação, concentram-se, essencialmente, nos artigos 104-A, 104-B e 104-C. Não obstante, tais disposições mostram-se insuficientes para dirimir as controvérsias decorrentes do novo regime normativo e de sua aplicação prática, sendo necessário o papel integrador da jurisprudência para suprir tais lacunas. Entre os questionamentos, destacam-se, por exemplo, o prazo de validade das dívidas suspensas (artigo 104-A, §2º), a inclusão dos credores ausentes na audiência global no plano compulsório de pagamento, a revisão coletiva das dívidas objeto da ação judicial (artigo 104-B, caput), entre tantas outras.

Ferramentas

Contudo, há um desafio significativo: a maioria dos estados e comarcas não dispõe de varas com competência exclusiva para processar e julgar demandas relacionadas ao Direito do Consumidor. Isso resulta na distribuição das ações de repactuação para diversas varas cíveis, como ocorre em Minas Gerais, ou para juízos residuais, dificultando a uniformização do procedimento e o avanço no tratamento da matéria.

Nesse contexto, é necessário estruturar estratégias junto ao Judiciário local, buscando garantir a efetividade da prestação jurisdicional na propositura e tramitação das ações de repactuação. Com esse objetivo, destaca-se a cooperação judiciária, que atualmente está disciplinada no Código de Processo Civil (CPC), nos artigos 67 a 69 [1], além de ser regulamentada pela Resolução nº 350/2020 do CNJ.

O foco deste ensaio é a utilização de um dos mecanismos previstos no artigo 69, inciso IV, do CPC, o ato concertado, como ferramenta para agilizar e uniformizar os procedimentos relacionados à ação de repactuação.

Fredie Didier esclarece que:

“O ato concertado é indicado para disciplinar uma cooperação permanente ou duradoura entre os juízes cooperantes. Por isso, o ato cooperativo regerá a prática de uma série de atos indeterminados, assumindo a natureza de fontes de normas processuais gerais, consensuais e anteriores à prática dos atos de cooperação” [2].

Tal instrumento demonstra-se extremamente eficaz em matérias novas que demandam maior atenção do Poder Judiciário, como é o caso do superendividamento. Na prática, observa-se que o volume de processos e a pressão por produtividade levam os magistrados a adotarem ritos tradicionais, já consolidados, em detrimento de soluções criativas e inovadoras, mais adequadas à nova realidade normativa e ao período de grandes transformações em que vivemos.

Foi nesse cenário que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais editou o Termo de Cooperação Judiciária, consubstanciado no Ato Concertado nº 02/2023. O referido ato possui a seguinte abrangência e objeto:

Este ato concertado objetiva disciplinar a cooperação judiciária entre os juízos signatários, com vistas a centralizar na 8ª Vara Cível de Belo Horizonte os processos de repactuação de dívida, nos termos do artigo 6º, incisos XI e XII, e do artigo 104-A da Lei nº 8.078/1990, com as alterações introduzidas pela Lei nº 14.181/2021, desde que atendam aos seguintes requisitos:

1. Processos já distribuídos ou que venham a ser distribuídos durante a vigência deste ato, que estejam ativos e em fase de conhecimento, no limite de 30 (trinta) processos, excluindo-se as ações conexas;
2. O autor seja enquadrado como consumidor e possua a condição de aposentado ou pensionista;
3. Seja comprovada a realização de audiência conciliatória, anterior à propositura da ação, com todos os credores;
4. A petição inicial esteja acompanhada de proposta de plano de pagamento global.

Objeto da cooperação: Na hipótese da existência de demandas que atendam aos requisitos acima descritos, o gerente da Secretaria certificará o fato, seja no momento da triagem ou posteriormente, e fará os autos conclusos. Os juízos signatários comprometem-se, em seguida, a declinar a competência para o juízo da 8ª Vara Cível de Belo Horizonte, em conformidade com o princípio da competência adequada e com o artigo 6º, inciso V, da Resolução nº 350/2020 do CNJ, observando-se a compensação na distribuição efetivada pelo sistema do TJ-MG. A centralização dos processos, para que tramitem e sejam julgados pelo mesmo juízo, visa garantir os princípios da celeridade, efetividade, duração razoável do processo e, especialmente, o aprimoramento e a padronização dos procedimentos e fluxos, que poderão ser replicados em outras comarcas do Estado de Minas Gerais.

Conforme exposto, o ato concertado tem por finalidade concentrar na 8ª Vara Cível de Belo Horizonte, as ações de repactuação que atendam aos requisitos mencionados, facilitando a criação de fluxos processuais e a uniformização de procedimentos. Essa racionalização na atuação do Poder Judiciário evita que demandas de mesma natureza sejam distribuídas entre as 32 varas cíveis existentes na capital, o que se mostrou extremamente ineficiente e contraproducente.

Ademais, não se mostra prudente aguardar que decisões isoladas venham a contribuir com a formação de jurisprudência em uma matéria tão recente e de elevada repercussão social e econômica, como é o caso do superendividamento. Essa preocupação torna-se ainda mais premente diante do aumento expressivo de consumidores nessa condição e do aumento progressivo das ações judiciais fundamentadas nas inovações introduzidas pela Lei nº 14.181/2021.

Ressalte-se que o ato concertado é um mecanismo de cooperação, cabendo ao magistrado a decisão de aderir ou não. A escolha dos processos deve ser feita de maneira clara e objetiva, de modo a evitar seleção arbitrária pelos juízes ou pelas partes, o que comprometeria o princípio do juiz natural.

Enquanto modalidade de cooperação judicial, o ato concertado emerge como um relevante instrumento para que o Judiciário se adapte às mudanças legislativas cada vez mais dinâmicas e concentre esforços na regulamentação de novas matérias, como o superendividamento, promovendo, assim, maior eficiência, segurança e uniformidade na prestação jurisdicional.

 


[1] CAPÍTULO II – DA COOPERAÇÃO NACIONAL

Art. 67. Aos órgãos do Poder Judiciário, estadual ou federal, especializado ou comum, em todas as instâncias e graus de jurisdição, inclusive aos tribunais superiores, incumbe o dever de recíproca cooperação, por meio de seus magistrados e servidores.

Art. 68. Os juízos poderão formular entre si pedido de cooperação para prática de qualquer ato processual.

Art. 69. O pedido de cooperação jurisdicional deve ser prontamente atendido, prescinde de forma específica e pode ser executado como: I – auxílio direto; II – reunião ou apensamento de processos; III – prestação de informações; IV – atos concertados entre os juízes cooperantes.

§1º As cartas de ordem, precatória e arbitral seguirão o regime previsto neste Código.

§2º Os atos concertados entre os juízes cooperantes poderão consistir, além de outros, no estabelecimento de procedimento para: I – a prática de citação, intimação ou notificação de ato; II – a obtenção e apresentação de provas e a coleta de depoimentos; III – a efetivação de tutela provisória; IV – a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas; V – a facilitação de habilitação de créditos na falência e na recuperação judicial; VI – a centralização de processos repetitivos; VII – a execução de decisão jurisdicional.

§3º O pedido de cooperação judiciária pode ser realizado entre órgãos jurisdicionais de diferentes ramos do Poder Judiciário.

[2] DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 22 ed. Salvador: juspodium, 2020, p.344.

Autores

  • é mestre em Direito do Estado pela Unifran-SP, promotor de Justiça do estado de Minas Gerais, coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte e coordenador estadual do Procon-MG.

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