Consultor Tributário

É inacreditável, mas os fatos mostram que o cidadão aparenta desconhecer a lei

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  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

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29 de janeiro de 2025, 8h00

O recente evento envolvendo o Pix — pagamento instantâneo brasileiro — serviu para demonstrar que o brasileiro não conhece a lei ainda que ela disponha sobre seus direitos ou delimite suas obrigações e, acresça-se, algumas vezes essa impressão também pode ser atribuída às autoridades cuja função é aplicá-la, zelando pelo bem comum. É bom que se diga que a lei construída de acordo com os princípios do sistema constitucional é sempre impositiva e, desvinculando-se do legislador que a elaborou, por mais sábio que seja, uma vez sancionada, a todos se aplica, sem exceção, observado o seu conteúdo.

A sabedoria do contido no artigo 3°, da Lindb: ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece

Em redação dotada de grande beleza e profundidade, alerta o artigo 3º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb),  que ninguém se escusa de cumprir a lei, sob a alegação de desconhecê-la.  Essa disposição é válida para cidadãos e autoridades, pois não fora assim todos os que não tivessem lido ou tomado conhecimento da norma veiculada, sempre poderiam arguir sua ignorância, recusando a sua aplicação. Trata-se de norma de composição social, pois presume-se o conhecimento por todos, a partir da divulgação da norma pelos meios oficiais convencionados para tanto.

O disposto no referido artigo 3º, acima, contempla a lógica de que todos devem, conhecendo a lei, observá-la, desde que ela adentre de forma legitima no sistema jurídico, cumpridos os requisitos da sanção e publicação, quando ela se torna, oficialmente,  conhecida no País e, inclusive, no caso brasileiro, até no exterior. Destaque-se que esse dispositivo é tão relevante que a Lindb, em princípio, tratava da vigência e aplicação apenas das normas contidas no Código Civil, denominando-se Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), porém, ao longo do tempo passou a servir de instrumento de interpretação das normas jurídicas, em geral, no tempo e no espaço, bem como das fontes do direito o que levou à acertada troca de sua denominação pela Lei nº 12.376/2010, para Lindb, portanto abarcando todas as normas jurídicas. A despeito dessa previsão, certos acontecimentos nos trazem dúvidas de que essa determinação esteja sendo observada, não só pelos cidadãos a ela submetidos, como pelas autoridades encarregadas de cumpri-las.

De fato, em fins de 2024 observou-se um movimento, nas chamadas redes sociais, no sentido de que as verbas transacionadas no meio de pagamento denominado Pix  seriam objeto de tributação, por força da Instrução Normativa nº 2.219, publicada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) a qual, se lida com a devida atenção, apenas dispunha sobre a obrigatoriedade de prestação de informações, pelas instituições financeiras, relativamente às operações financeiras de interesse da RFB, tema corriqueiro, no país, há muitos anos, como se comentará. Além disso qual seria a hipótese de incidência tributária suscetível de aplicação à mera transferência de recursos entre pessoas que gerou tanto clamor? É o que se passa a examinar.

Afinal, o que é o Pix, pois todos sabem operá-lo, mas nem todos conhecem seus fundamentos jurídicos  

No ano de 2020, o Banco Central do Brasil (BCB) lançou o Pix, incluído entre os muitos meios de pagamento utilizados no país, a exemplo dos cartões de crédito e dos documentos de transferência bancária, o qual permite que recursos sejam transferidos entre contas bancárias, em poucos segundos e a qualquer momento. É como retirar os recursos de um bolso e colocá-los em outro, sem os riscos de transportar dinheiro e sem as formalidades das demais transferências bancárias. De imediato, ganhou grande aceitação, pois é procedimento amigável, de fácil uso, prático e seguro, em todos os sentidos. O BCB já o estudava desde os idos de 2015 e, ao que se sabe, ele, o Pix brasileiro, é único, em seu modelo, no mundo, havendo iniciativas de copiá-lo em outros países.

O BIS, Banco de Compensações Internacionais, tido como o banco central dos bancos centrais, fez referência elogiosa ao Pix, ao tratar de meios de pagamentos digitais, acrescendo ser esse um exemplo de como os bancos centrais do mundo podem apoiar a “interoperabilidade e a concorrência entre sistemas de pagamento internacionais.” Hoje o BIS busca um modelo de Pix internacional [1].   

Para quem não sabe, mas deveria sabê-lo, a atividade financeira é o segmento da economia mais regulado e fiscalizado em nosso país

A atividade financeira, assim entendida como a intermediação, compra, venda e aplicação do dinheiro, exercida pelas instituições financeiras e não financeiras, bem como  desenvolvidas pelos cidadãos que acumulam, investem e utilizam seus recursos, vêm sendo,  de longa data, objeto de crescente e intensa fiscalização, quer por parte do Conselho Monetário Nacional, por seu órgão executor de políticas financeiras, o BCB, pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, vinculado ao BCB, bem como por parte da RFB. Tais controles remontam, substancialmente, ao ano de 1998, governo de Fernando Henrique Cardoso que reformulou o sistema financeiro e, de alguma forma, o blindou contra as intempéries do mercado. Toda essa fiscalização objetiva manter a sua credibilidade e afastar tentativas do indevido uso dos meios de pagamento. Dado o alto grau de fiscalização a que a atividade financeira se submete hoje, no Brasil, o sigilo das informações dos contribuintes, bancárias ou não, sempre foi objeto de muita atenção e polêmica.

Spacca

É curioso observar a reviravolta desse assunto, pois o sigilo, na introdução do Imposto sobre a Renda, no país, pela Lei (LO) nº 4.625/1922, pautava-se por disposição do Código Comercial de 1850, artigo 17, que impedia a fiscalização de acessar os livros comerciais dos contribuintes, pessoas jurídicas [2], o que só foi afastado pelo Decreto-Lei n. 385/1938, para fins de Imposto de Consumo.  Ainda assim, por muitos anos, prevaleceu o entendimento de que informações dos contribuintes só poderiam ser obtidas mediante autorização judicial.

A Lei Complementar nº 105/2001 e o sigilo

Em 2001 foi editada a Lei Complementar n. 105, que trata do sigilo das operações de instituições financeiras, entre outros temas. O seu artigo 5° dispõe que o Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços. No contexto de operações financeiras enquadram-se todas as movimentações de recursos efetivadas no âmbito dessas entidades, seja qual for o seu lastro, descritas no §1°, do mesmo artigo 5°, que embora pareça ser uma lista exaustiva, a nosso ver, perde essa característica em face do disposto no inciso XV desse mesmo artigo, que abrange quaisquer outras operações de natureza semelhante que venham a ser autorizadas pelo BCB e outros órgãos competentes. As informações de que trata esse diploma legal estão restritas à identificação dos titulares das operações e aos montantes globais mensalmente movimentados.

Essa disposição, inserida em nosso sistema jurídico há pelo menos 24 anos, exige, portanto, a divulgação de todas as transações financeiras que ocorrem no âmbito das instituições financeiras, inclusive, a nosso ver, das operações abrangidas pelo modelo Pix, destacando-se que seus usuários, como clientes de instituições financeiras, já tiveram sua vida escrutinada no modelo denominado “Conheça seu cliente”, na forma da Lei nº 9.613/1998 e alterações que busca evitar e afastar operações com pessoas envolvidas em lavagem de dinheiro e similares.

Por fim, o artigo 6° dessa lei complementar determina que as autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente, devendo o resultado desses exames ser objeto de sigilo.

Esse diploma legal foi objeto de exame pelo Supremo Tribunal Federal que concluiu pela constitucionalidade dos dispositivos em apreço e que permitem à RFB receber dados bancários de contribuintes, fornecidos diretamente pelos bancos, sem prévia autorização judicial. No entender desse tribunal, não há quebra de sigilo bancário, mas mera transferência de sigilo da órbita bancária para a fiscal, ambas protegidas contra o acesso de terceiros.

A e-Financeira colhe as informações dos usuários de serviços financeiros independentemente de autorização

Em 2003, a antiga Secretaria da Receita Federal, SRF, atual RFB, com fundamento na Lei Complementar nº 105/2001, editou a Instrução Normativa n. 341, instituindo a Declaração de Operações com Cartões de Crédito (Decred), a serem apresentadas pelas administradoras de cartões de crédito, relativamente a operações com cartões de crédito acima de R$ 5 mil, para pessoas físicas e R$ 10 mil, para pessoas jurídicas. Em 2015, na esteira da mesma lei e da implementação do Sistema Público de Escrituração Digital (Sped), a Instrução Normativa da RFB nº 1571/2015 disciplinou a obrigatoriedade de prestação de informações, pelas instituições financeiras e assemelhadas, relativas às operações financeiras de interesse da RFB, introduzindo declaração designada e-Financeira, referente a dados bancários voltados a operações financeiras e de previdência privada.

Desde então, 2015, todas as transações financeiras desenvolvidas pelos contribuintes brasileiros são objeto de informação à RFB, contempladas que estão na e-Financeira, independentemente de qualquer movimento ou ação dessas pessoas. Como se depreende e à luz do disposto na Lindb, presume-se o conhecimento dos brasileiros de que todas as suas movimentações financeiras podem/são acompanhadas pelo BCB e pela RFB e, mais, são informadas, desde 2015, em detalhes, à RFB, observados os critérios de corte, por relevância, definidos em lei, sempre em homenagem ao princípio de que ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.  Nesse rol também entram gastos com cartões de crédito, aplicações financeiras e de mercado bolsístico, débitos e créditos em conta corrente ou similares, enfim toda transação envolvendo dinheiro e, certamente, o Pix.

O que foi o imbróglio do Pix?

Em setembro de 2024, a RFB editou a Instrução Normativa nº 2219, que revogou a Instrução Normativa nº 341/2003, dispondo sobre a obrigatoriedade de prestação de informações, pelas instituições financeiras e demais entidades autorizadas a operar no mercado financeiro, relativamente às operações financeiras de interesse da RFB, que identifica, na e-Financeira quando o montante global movimentado ou o saldo, em cada mês, por tipo de operação financeira, for superior a R$ 5 mil,  no caso de pessoas físicas e R$ 15 mil, no caso de pessoas jurídicas. Tal determinação nada mais fez do que: (1) inserir novas operações financeiras correntes no mercado e (2) atualizar valores comtemplados no artigo 7º da Instrução Normativa nº 1.571/2015. Ora, essa determinação nada acrescentou, a nosso ver, às disposições da Lei Complementar n. 105/2001 que, matreiramente, permitia informar operações reguladas ou a serem reguladas, o que inclui o Pix.

O que se conclui é que o alarde criado em torno desse assunto foi equivocado, quiçá mal intencionado, por parte dos  usuários do Pix, bem como pelas autoridades competentes, uma vez que ninguém, no caso as instituições financeiras,  poderia escusar-se de informar e ninguém poderia objetar que informações sobre suas movimentações fossem divulgadas às autoridades, por conta da lei.

Não bastasse terem os interessados se olvidado de que ninguém se escusa de aplicar a lei alegando desconhecê-la, o Poder Executivo, atabalhoadamente, editou a Medida Provisória nº 1.288/2025, dispondo sobre medidas para ampliar e garantir a efetividade do sigilo sobre os pagamentos realizados via Pix, o que sempre esteve assegurado aos seus usuários. Qual o objetivo dessa medida provisória?

Recentemente tratamos nesta coluna do mau uso desse instituto pelo Poder Executivo e sua banalização. Destinada a ser adotada em caso de relevância e urgência, com força de lei e logo após submetida ao Congresso Nacional, esse ato legislativo tem um conteúdo de lei. Ocorre que no caso do Pix, a Medida Provisória afirma buscar a efetividade do sigilo, nada acrescentando, visto que ele já é garantido pela Lei Complementar n.º 105/2001 tomando, dessa forma, contornos de mera intepretação, o que não pode ser objeto de medida provisória. Ao mesmo tempo, a tentativa de regulação da indevida prática de valor ou encargo adicional sobre os pagamentos realizados por meio de Pix, soa como mera desculpa para editar tal ato, de vez que toda essa matéria já é objeto de regulação pelo sistema legislativo (Lei nº 8.078/1990).

Por fim, o disposto no artigo 3º da Medida Provisória nº 1.288/2025, no sentido de afastar a incidência tributária seja de imposto, taxa ou contribuição, no uso do Pix, é meramente retorica, pois os limites do legislador são apenas aqueles contidos nos artigos 150 a 152 e 154, da Constituição. Por trás desse debate poderia estar oculta, talvez, a intenção de reintroduzir a tributação de movimentações financeiras, de triste lembrança para os brasileiros (Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras e Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras). Seria bom que o Congresso Nacional se apercebesse de sua inutilidade.

A grande lição: todos os cidadãos estão nus diante das autoridades fiscais

Além das informações prestadas pelas instituições financeiras, os contribuintes preenchem declaração de rendimentos, de bens e de ganhos de capital para a RFB, portanto, movimentações bancárias sempre foram de conhecimento das autoridades e nada lhes pode ser subtraído. Será que alguém havia prestado atenção nisso, pois todos estamos nus diante do Fisco!!! E ainda há aqueles, voluntariamente, na hora de suas compras, informam seu cadastro fiscal ao Estado, dando a conhecer suas preferências e gostos… Durma-se com um barulho desses…

 


[1] https://www.bis.org/about/bisih/topics/fmis/nexus.htm

[2] Art. 17 – Nenhuma autoridade, juízo ou tribunal, debaixo de pretexto algum, por mais especioso que seja, pode praticar ou ordenar alguma diligência para examinar se o comerciante arruma ou não devidamente seus livros de escrituração mercantil, ou neles tem cometido algum vício

Autores

  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo/FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU—IICS e advogada em São Paulo.

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