anos de chumbo

Ao analisar crimes permanentes da ditadura, STF pode, enfim, contornar Lei da Anistia

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29 de janeiro de 2025, 8h51

Na parte final do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, uma jornalista pergunta a Eunice Paiva se o Brasil tem questões “mais urgentes” a tratar do que “remediar o passado”. A advogada e viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva, assassinado por militares em 1971, responde que não.

Plenário STF 2024

Dino propôs que STF analise, em repercussão geral, se crimes permanentes da ditadura são passíveis de anistia

A cena retrata um importante episódio de 23 de fevereiro de 1996, quando Eunice recebeu a certidão de óbito de Rubens Paiva, iniciativa constante da então recém-sancionada Lei 9.140/1995, que reconheceu como mortos os desaparecidos da ditadura.

A resposta negativa de Eunice fazia sentido em 1996, quando o país ensaiava as primeiras medidas para dar explicações aos familiares de vítimas da ditadura.

Não deixou, no entanto, de também fazer sentido em 2025, ano em que o Brasil se vê às voltas com uma possível nova anistia — agora aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023 —, enquanto nem sequer resolveu pendências da Lei de Anistia de 1979 (Lei 6.683). Essa norma perdoou irrestritamente militares prometendo “pacificação social”.

Crimes permanentes chegam ao STF

Diferentemente do que ocorreu em países vizinhos, as medidas tomadas no Brasil para elucidar crimes da ditadura foram poucas. Além da citada Lei 9.140/1995, destaca-se a Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2011. No que diz respeito à responsabilização, porém, o 7 a 1 é ainda maior: não há militares presos no Brasil, ao contrário do que aconteceu em países como Argentina e Chile.

O entrave para a responsabilização é a Lei de Anistia, que perdoou os crimes cometidos na ditadura. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal decidiu contra a revogação da anistia, o que dificultou ainda mais a responsabilização de militares.

Desde antes desse julgamento do STF, e até hoje, permanecem em aberto algumas questões. Uma delas diz respeito aos chamados “crimes permanentes”, como é o caso dos crimes de ocultação de cadáver e sequestro.

O argumento em prol do caráter permanente dos crimes não é difícil de entender: se pessoas assassinadas não tiveram o paradeiro revelado, é porque os corpos ainda estão sendo ocultados. Em casos assim, os crimes continuam sendo cometidos todos os dias. Por isso, não estariam acobertados pela Lei de Anistia, e não estariam prescritos. O buraco, no entanto, é mais embaixo quando o processo envolve militares.

Em dezembro do ano passado, o ministro Flávio Dino, do STF, propôs que a corte decida, em repercussão geral, se é possível anistiar crimes permanentes cometidos na ditadura.

No caso concreto, o Ministério Público Federal denunciou em 2015 Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura, ambos tenentes-coronéis do Exército, buscando a condenação por homicídio qualificado e ocultação de cadáver durante a Guerrilha do Araguaia.

Motivado pelo caso de Rubens Paiva, Dino se manifestou pela repercussão geral. “A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia”, disse o ministro.

Sem anistia

Para o ministro aposentado do Supremo Celso de Mello, a proposta de Dino de analisar os crimes permanentes em repercussão geral é “extremamente importante”.

Segundo ele, a Lei de Anistia abrange, em seu âmbito temporal, delitos políticos e a eles conexos ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Isso significa, de acordo com o magistrado, que crimes permanentes não são abarcados pela norma e não prescreveram.

“Enquanto não se descobrir o local do sepultamento ou, então, enquanto as pessoas criminosamente sequestradas (‘desaparecidas’) não forem encontradas, referidos crimes continuam projetando-se no tempo, precisamente ante o seu caráter de permanência”, afirmou.

“No delito permanente (como os crimes de sequestro, cárcere privado, redução à condição análoga à de escravo, ocultação de cadáver, associação criminosa, posse irregular de arma de fogo e organização criminosa, entre outros), a situação de ilicitude penal se protrai no tempo, pois, como assinala o magistério da doutrina, ‘o agente tem o domínio sobre o momento consumativo do crime’”, prosseguiu ele.

Ainda segundo o ministro, não é possível falar em prescrição de crimes permanentes, uma vez que o autor continua em situação de flagrante delito, segundo o artigo 303 do Código de Processo Penal.

“Vejo, bem por isso, como extremamente importante a proposta do eminente ministro Flávio Dino no sentido de o STF reconhecer a existência de repercussão geral a propósito do tema concernente à possibilidade de punição de crimes permanentes, objeto da Lei de Anistia, considerado seu momento consumativo após 15 de agosto de 1979.”

Argumento antigo

A procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), afirma que há tempos o Ministério Público Federal tenta convencer o Judiciário de que os crimes permanentes da ditadura não são passíveis de anistia.

A comissão foi criada pela Lei 9.140, a mesma que reconheceu os desaparecidos como mortos, passando a emitir certidões de óbito e possibilitando o pagamento de indenizações aos familiares de vítimas da ditadura.

“A tese de que a Lei de Anistia não acoberta os crimes de sequestro e ocultação de cadáver foi uma das primeiras. Defendemos desde meados de 2005, baseada apenas na legislação brasileira. A lei anistiava atos anteriores à sua promulgação, e não atos que continuam sendo perpetrados.”

Segundo ela, a tese é óbvia e deveria ser aceita pelo Judiciário. A tendência, no entanto, é tratar os crimes dos militares, permanentes ou não, como acobertados pela Lei de Anistia.

“Quando o ministro Dino hoje fala que o Brasil não deve aplicar a Lei de Anistia aos crimes de sequestro e ocultação de cadáver, ele está falando isso com base na legislação brasileira. Foi a primeira tese que usamos. E, mesmo assim, o Judiciário sempre teve resistência. Uma resistência sem fundamento jurídico. São raros os casos em que os juízes dão andamento a esses processos.”

Eugênia considera positiva a discussão no Supremo. “A notícia é muito boa. Sempre tivemos uma expectativa alta de ter essas questões decididas já há muito tempo.” No entanto, pondera ela, é preciso “avançar mais”.

“Esperamos mais. Esperamos que se dê integral cumprimento à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) para que determine a responsabilização por todos os crimes não anistiados, como os de lesa-humanidade, que também não estão sujeitos à prescrição ou anistia.”

O Brasil foi condenado pela Corte IDH em duas ocasiões no que se refere à ditadura. A primeira, em 2010, no caso de Gomes Lund e Outros, que trata do assassinato e desaparecimento de guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil na região do Araguaia. A segunda, em 2018, no caso do assassinato do jornalista Vladimir Herzog.

Tardio, mas válido

O procurador Marlon Alberto Weichert, que atua desde 1999 em casos de Justiça de transição, diz que “ainda que seja muito tardio”, o julgamento do STF deve ser considerado “um avanço”.

Assim como Eugênia, ele também considera que o reconhecimento de que crimes permanentes não são anistiáveis é um passo importante, mas que o Estado brasileiro deve ir além.

Segundo ele, o STF precisa incorporar o que foi decidido pela Corte IDH nos casos do Araguaia e de Herzog, e estabelecer que são imprescritíveis e não passíveis de anistia todos os crimes cometidos no contexto de perseguição sistemática contra a população civil.

“É um avanço, mas, apesar disso, é necessário que se incorpore completamente o precedente da Corte IDH, porque o Brasil se vinculou, pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a seguir essas decisões, o que inclui todos os órgãos do Estado brasileiro, inclusive o Judiciário e o STF.”

De acordo com ele, as decisões da Corte IDH têm caráter vinculante. Ainda assim, não foram incorporadas, o que coloca o Brasil em uma “situação de limbo”, em que o país não cumpre as decisões, nem deixa a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

“O STF tem mantido a gente em retrocesso quando comparado o Brasil a outros países da América. Somos o único país que ainda não superou sua Lei de Anistia. Todos os demais, inclusive os que tiveram guerra civil, superaram e seguiram as decisões da Corte IDH.”

Processos encerrados

A atuação do MPF em casos envolvendo a ditadura começou em 1999, quando Weichert recebeu uma representação de familiares de mortos e desaparecidos da Guerrilha do Araguaia.

A investigação virou uma ação civil pública dois anos depois. O MPF mantém o site Justiça de Transição, com todas as ações sobre o tema e uma linha do tempo sobre a atuação do órgão.

De 2001 a 2024, foram 53 ações movidas na Justiça Criminal, 21 ações civis públicas e seis que tratam de povos indígenas. A tendência, no entanto, é que as denúncias nem sequer sejam aceitas por causa da Lei de Anistia.

É raridade um acusado virar réu, mas já aconteceu. Em 2019, por exemplo, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região aceitou uma denúncia contra o sargento reformado do Exército Antônio Waneir Pinheiro de Lima, acusado de sequestro, cárcere privado e estupro contra a militante Inês Etienne Romeu.

A primeira condenação ocorreu em 2021, por meio de decisão do juiz Sílvio Gemaque, da 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo, contra o delegado aposentado do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo Carlos Alberto Augusto, conhecido como Carlinhos Metralha. O TRF-3, no entanto, extinguiu a punibilidade por entender que os crimes prescreveram.

Em casos envolvendo desaparecimento, a tendência também é o encerramento da ação. Em 2020, por exemplo, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve o trancamento de ação penal sobre a morte de Rubens Paiva por entender que o crime estava prescrito.

Anos antes, em 2014, o então ministro do Supremo Teori Zavascki já havia suspendido o andamento da ação contra cinco militares denunciados pela morte do ex-deputado.

No caso da Guerrilha do Araguaia, o TRF-1 trancou, em 2013, uma ação do MPF contra o coronel do Exército Sebastião Curió. O argumento da corte é que havia “evidente prescrição”.

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