Reforma tributária e lei complementar: da (des)conformidade com o texto constitucional
28 de janeiro de 2025, 19h46
A constitucionalização da proteção ambiental por meio do sistema tributário só vem a reforçar a afirmação de António Enrique Pérez Luño de que o direito ambiental transcende a categoria de direito fundamental de terceira geração para ser o fundamento de reinterpretação de todo o sistema de direitos e garantias [1]. Dessa forma, não resta dúvidas de que se pode falar de uma reforma tributária ambiental no Brasil.
Contudo, é necessário considerar que a reafirmação deste direito fundamental no bojo do texto constitucional, apesar da imensurável importância, necessita, para a efetividade de seu comando, de produção legislativa infraconstitucional, pois a Constituição não legisla sobre direito tributário, mas somente desenha as competências tributárias e, através de inúmeros princípios, protege o contribuinte, delineando as balizas gerais deste ramo do direito.
É nesse sentido que se impõe a análise da Lei Complementar nº 214, de 2025, que, além de instituir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS), cria o Comitê Gestor do IBS. Para o que interessa ao presente estudo, a análise será centrada no Imposto Seletivo, que é o tributo que, por seu caráter extrafiscal, tem um potencial transformador, eis que se trata de um mecanismo de indução comportamental [2].
Conceito do Imposto Seletivo
O Imposto Seletivo, tributo que foi criado constitucionalmente pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023, que o inseriu no artigo 153, inciso VIII, da Constituição, foi instituído, no âmbito da legislação infraconstitucional, pela Lei Complementar nº 214, de 2025, que, em seu artigo 412, dispôs que a sua incidência se dará sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente[3].
O §1º, do referido artigo, considera prejudiciais ao meio ambiente os bens classificados nos códigos da NCM/SH e o carvão mineral, e os serviços listados no Anexo XVII, referentes a: veículos, embarcações e aeronaves e bens minerais. A tabela de que trata o artigo está contida no Anexo XVII e nela estão descritas todas as nomenclaturas comuns do Mercosul, pois este é o referencial para que se saiba quais são os bens sujeitos à tributação pelo Imposto Seletivo.
Relativamente aos bens e serviços sujeitos ao Imposto Seletivo, o Anexo XVII, da LC 214, de 2025, detalha uma série de Nomenclaturas Comuns — NCM relativas a veículos, aeronaves e embarcações, bem como bens minerais. No que diz respeito à incidência do IS sobre os veículos automotores, deve-se observar que em todos os casos, é ressalvada a incidência quando se tratar de caminhões.
Uma análise inicial já revela alguns pontos que podem ser objeto de crítica na regulamentação da reforma tributária pela LC nº 214, de 2025. Essa análise crítica servirá para que, ao final do trabalho, possa-se realizar uma reflexão acerca do cumprimento, pela legislação infraconstitucional, do princípio da proteção do meio ambiente.
Exclusão de caminhões do Imposto Seletivo
O primeiro ponto que merece críticas é a exclusão dos caminhões de todas as hipóteses de incidência do Imposto Seletivo em que estão relacionados a veículos automotores, pois o transporte rodoviário por este meio é altamente poluente, sobretudo a se considerar que o combustível normalmente utilizado é o diesel.
Não seria um exagero, nesse sentido, dizer que os interesses de conhecidos lobbys prevaleceram, além de a regulamentação reafirmar uma histórica e inescapavelmente equivocada opção pelo estímulo ao transporte rodoviário de cargas. Aliás, para além da questão ambiental, essa escolha, que remonta a segunda metade do século 20, trata-se de uma um equívoco, cujos frutos mostram-se antieconômicos e sociais. Como se sabe, em outros países o transporte de cargas é realizado, preferencialmente, pela via férrea ou aquaviária.
Além disso, merece reprovação o fato de o legislador ter incluído os veículos elétricos na incidência do Imposto Seletivo. Essa atitude, além de desprestigiar o artigo 145, §3º, da Constituição, opõe-se a políticas tributárias em prol do meio ambiente — como é o caso da isenção de IPVA aos veículos elétricos concedida por alguns estados da federação, entre eles o Rio Grande do Sul.
Ausência de agrotóxicos em lista
No mesmo sentido, sendo claramente uma vitória política de alguns setores que influenciam diretamente as legislações gestadas no Congresso Nacional, a ausência dos agrotóxicos na listagem do Anexo XVIII chama a atenção. Não apenas em relação ao efeito prejudicial ao meio ambiente, mas sobretudo pela prejudicialidade desses produtos à saúde — algo que já vem há anos sendo alertado pela própria OMS [4].
O legislador, além de não arrolar os agrotóxicos na lista de bens e serviços sujeitos à incidência do Imposto Seletivo, logrou instituir um tratamento tributário diferenciado a essa categoria de produtos. Conforme dispõe o artigo 128, da Lei Complementar nº 214, de 2015, ficam reduzidas em 60% as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre operações com insumos agropecuários e aquícolas.
Um passar de olhos no Anexo IX, da Lei Complementar nº 214, de 2025, revela que inúmeros agrotóxicos integram a tabela de isenção de 60% das alíquotas do IBS e da CBS. Entre esses produtos estão: inseticidas, fungicidas, formicidas, herbicidas, parasiticidas, germicidas, acaricidas, nematicidas, raticidas, desfolhantes, dessecantes, espalhantes adesivos, estimuladores e inibidores de crescimento (reguladores); todos destinados diretamente ao uso agropecuário ou para serem usados diretamente na fabricação de defensivo agropecuário [5].
Assim, a um só tempo, desprezou-se a extrafiscalidade, instrumento que, corretamente utilizado, poderia atuar como indutor de comportamentos, reduzindo-se o uso destes agrotóxicos para incentivar a produção orgânica e sustentável, e se promoveu uma seletividade tributária “às avessas”, pois se agraciou com uma redução de alíquota produtos que são altamente prejudiciais ao meio ambiente.
Ainda em relação aos agrotóxicos, mostra-se injustificável o tratamento benéfico conferido a essa categoria de produtos pela Lei Complementar nº 214, de 2025. Deve-se recordar que, no ano de 2016, foi ajuizada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em face do Convênio 100, de 1997, do Confaz, e do Decreto 7.660, de 23 de dezembro de 2011.
Inconstitucionalidade
É importante frisar que, na época, a então Procuradora-Geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge, opinou pela declaração da inconstitucionalidade material das cláusulas primeira (em parte) e terceira do Convênio ICMS 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), as quais permitiam aos estados concederem benefícios fiscais a esses produtos [6].
Em que pese a relevância do assunto, a ADI ainda não foi julgada pelo STF, que preferiu dialogar com os setores diretamente envolvidos e, recentemente, deferiu o pedido de habilitação da Associação Brasileira de Defesa do Agronegócio como amicus curiae. Desde o dia 4 de dezembro de 2024, a ADI está conclusa ao relator, o ministro Edson Fachin [7].
A menção à ADI nº 5553 se mostra importante, pois mutatis mutandi, já há muitos existem estudos que comprovam, inequivocadamente, os malefícios do uso do agrotóxicos, seja para saúde humana e animal, seja para o meio ambiente. Em vista disso, é inaceitável que os estados, para além de não estabelecerem um tratamento fiscal mais oneroso a esses produtos, venham a conceder benefícios fiscais de ICMS na comercialização de tais mercadorias.
IPVA com mudança simbólica
Por fim, o ponto crítico em relação à ampliação da base de cálculo do IPVA aos veículos automotores aquáticos e aéreos, chama-se a atenção ao fato de que é excetuado de tributação as aeronaves, os tratores e as máquinas agrícolas, além das embarcações de pessoa física ou jurídica que pratiquem pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência, ficando claro, dessa forma, que a mudança será mais simbólica do que real, pois as exceções são enormes e poderão privilegiar as classes mais altas, não se mostrando um instrumento efetivo de justiça fiscal.
Pode-se concluir que em que pese as boas intenções da reforma tributária, essas esbaram na vontade política dos entes federativos de instituírem alguns tributos — como é o caso do IPVA em relação aos veículos automotores aquáticos e aéreos — ou mesmo na insuficiência da regulamentação, como se pôde observar na análise da Lei Complementar nº 214, de 2025.
Assim, em vias conclusivas, e num balanço intermediário, eis que outros projetos de lei que disporão sobre a reforma tributária (como o PLP n° 29, de 2024, que regulamentará o Imposto Seletivo), pode-se dizer que, apesar de avanços como a inclusão dos bens minerais, aeronaves e embarcações e veículos (ressalvado os veículos elétricos que não deviam fazer parte dessa hipótese de incidência), outras inúmeras disposições são assimétricas ao texto da Constituição e revelam o conflito de interesses travados no Congresso e apontam para a vitória das pautas do agronegócio.
[1] PÉREZ LUÑO, António Enrique. Perspectivas e tendências atuais do Estado constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
[2] É oportuno mencionar que atualmente (janeiro de 2025), tramita o PLP nº 29, de 2024, que dispõe sobre a regulamentação do Imposto Seletivo e dá outras providências. Contudo, uma análise deste diploma legal não se mostra adequada neste momento, devido ao fato de que, durante a tramitação nas casas do Congresso, poderão ocorrer modificações.
[3] O Título II, Capítulos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX, da LC 214, de 2025, trata das normas gerais relativas ao Imposto Seletivo, como o momento de ocorrência do fato gerador, as hipóteses de não incidência, a base de cálculo, as alíquotas, a sujeição passiva, o tratamento às empresas comerciais exportadoras, a pena de perdimento, as apurações, o pagamento, entre outras normativas de caráter geral. BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 16 jan. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp214.htm. Acesso em: 25 jan. 2025.
[4] Conforme consta no site da OMS, os pesticidas são potencialmente tóxicos e podem ter efeitos agudos e crônicos na saúde humana. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Resíduos de pesticidas nos alimentos. 2022. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/pesticide-residues-in-food. Acesso em: 22 jan. 2025.
[5] BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp214.htm. Acesso em: 22 jan. 2025.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.553. Requerente: Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Requerido: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Min. Edson Fachin. Brasília, DF, 2015. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/. Acesso em: 25 jan. 2025.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.553. Requerente: Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Requerido: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Min. Edson Fachin. Brasília, DF, 2015. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/. Acesso em: 25 jan. 2025.
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