O direito ambiental não é suficiente para punir maus tratos a animais
28 de janeiro de 2025, 17h18
Uma mulher foi filmada pela família neste mês ao disparar uma arma de fogo contra um espécime de puma concolor, espécie conhecida no Brasil pelo nome popular de onça parda. No vídeo, após atingir o animal, que cai de cima de uma árvore, a mulher incita cães a atacá-lo até a morte, conduta considerada tortura e que pode configurar crime de maus tratos (artigo 32 da Lei Federal nº 9.605/1998 — Lei de Crimes e Infrações Ambientais). Os fatos identificados na filmagem também podem configurar maus tratos contra os cães instigados a atacar a onça, caça de animal silvestre sem autorização (artigo 29 da mesma lei) e porte ilegal de arma de fogo.
A mulher foi identificada pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que anunciou que ela, a irmã e o pai, que estavam no local, foram multados em R$ 20 mil cada (total de R$ 60 mil). Nas redes sociais, são constantes as demonstrações populares de frustração e revolta contra as possíveis punições, vistas como brandas. A sensação é a de impunidade.
O ocorrido envolve diversos aspectos jurídicos, que merecem consideração.
Ausência de conceito legal de maus tratos
Não existe, na legislação, conceito jurídico para maus tratos. A Lei de Crimes e Infrações Ambientais limita-se a determinar que “praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” pode implicar em pena de detenção de três meses a um ano e multa.
Por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 494.601, o Supremo Tribunal Federal (STF), na minha leitura, que destoa das vozes que enxergam esse julgamento como uma “contradição” com a jurisprudência da própria corte, o tribunal constitucional ponderou que o maltrato ou tratamento cruel se caracteriza pelo sofrimento prolongado, razão pela qual o sacrifício de animais em religiões de matriz africana não configuraria maus-tratos e não seria inconstitucional [1].
Em âmbito infralegal, portanto sem força de lei, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), por meio da Resolução nº 1.236/2018, conceituou maus tratos como “qualquer ato, direto ou indireto, comissivo ou omissivo, que intencionalmente ou por negligência, imperícia ou imprudência provoque dor ou sofrimento desnecessários aos animais”, e crueldade como “qualquer ato intencional que provoque dor ou sofrimento desnecessários nos animais, bem como intencionalmente impetrar maus tratos continuamente aos animais”.
Na mesma norma, definiu-se o abuso como “qualquer ato intencional, comissivo ou omissivo, que implique no uso despropositado, indevido, excessivo, demasiado, incorreto de animais, causando prejuízos de ordem física e/ou psicológica (…)”, hipótese em que poderia ser enquadrado o tratamento dado aos cães levados à caçada e instigados a atacar a onça. Isto porque, no treinamento para caça [2], os cães são submetidos a práticas para contenção e combate com a presa que podem configurar o abuso descrito na resolução do CFMV. O abuso também pode decorrer da sua exposição ao confronto com a presa, que os coloca em perigo e em situação constante de alerta e estresse, o que vai contra as suas liberdades de saúde física e psíquica.
No entanto, ainda que a Resolução CFMV nº 1.236/2018 trate pormenorizadamente de diversas condutas que possam configurar maus tratos em sentido amplo, vale lembrar que, para juristas da área penal, a inobservância dessa norma não configurar o crime de maus tratos, já que a conduta criminosa deve estar previamente estabelecida em lei, em razão do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege. Por isso, a ausência de conceito definido em lei pode tornar a caracterização de condutas praticadas contra animais como maus tratos, especialmente nas hipóteses em que o sofrimento imposto ao animal seja de ordem psíquica e que levem a comportamentos como ansiedade e estresse.
Finalidade da pena restritiva de liberdade no direito penal ambiental
É contraintuitivo, mas a Lei de Crimes e Infrações Ambientais, no meu entendimento, não prioriza a prisão de quem vier a ser condenado ou condenada por infringi-la. Isso se torna mais claro quando nos apercebemos de que a suspensão condicional da pena para os crimes ambientais é de três anos (artigo 16), o que abrange a pena máxima de quase todos os tipos penais previstos nela. Além disso, penas restritivas de liberdade inferiores a quatro anos são substituídas por penas restritivas de direitos nas hipóteses do artigo 7º da lei.
Para o crime de caça sem a devida permissão, licença ou autorização (artigo 29), a pena é de detenção de seis meses a um ano e multa; para o crime de maus-tratos (artigo 32), é de detenção de três meses a um ano e multa; ou de reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição de guarda se o animal for cão ou gato (artigo 32, §1º-A). Nesse cenário, é pouco provável que, se condenados, os envolvidos no episódio de violência contra a onça parda fiquem presos por muito tempo.
Somo minha voz àquelas que entendem que esse sursis diferenciado se deva ao favorecimento, pela lei penal ambiental, de ações para reparação do meio ambiente lesado, o que se extrai da necessidade de comprovação, por laudo técnico, da recuperação do dano ambiental que deve ser conduzida por ocasião de eventual suspensão condicional da pena (artigo 17).
Contudo, não há reparação eficaz nos casos de maus tratos a animais. Ainda que não levem à morte, os maus tratos aos animais podem deixar sequelas físicas e emocionais (a senciência dos animais é comprovada cientificamente) [3]. Dessa maneira, ainda que possa favorecer o meio ambiente, a Lei de Crimes e Infrações Ambientais não tutela de forma adequada a proteção dos animais contra tratamentos cruéis e é insuficiente, tanto do ponto de vista do que determina a Constituição em seu artigo 225, VII, quanto da expectativa de justiça da população e da paz social.
Dupla tutela dos animais nos direitos ambiental e animal
Sustento, já há algum tempo, que os animais são duplamente tutelados na legislação brasileira [4] [5] [6] [7]. No direito ambiental, são protegidos como recurso natural e em função do seu papel no equilíbrio ecológico; e, no direito animal, contra tratamento cruel e maus tratos, como seres sencientes e de valor intrínseco. Apesar das frequentes críticas de alguns juristas animalistas ao tratamento utilitário dado aos animais pelo direito ambiental, as duas tutelas são complementares e não se excluem. Kristen Stilt [8], de igual maneira, fala da equivalência desses dois ramos do direito, que estão interligados na medida em que animais humanos e não-humanos coexistem no mesmo meio ambiente.
A complementariedade do direito ambiental e do direito animal é a via para tutelar de forma adequada situações de maus tratos contra animais, na medida em que reconhecê-los como seres sencientes que têm valor por si só, independentemente da utilidade que possam ter aos animais humanos, implica, por coerência, em alterações da legislação que vão além de projetos de lei para aumento de pena.
Aumentar a pena para o crime de maus tratos previsto na Lei Federal n º 9.605/1998 não seria o bastante porque, nela, o animal é tutelado como recurso natural e é essa leitura que se dá, atualmente, ao tipo penal em questão. Não por outra razão, a vítima do crime de maus tratos é a coletividade e não o animal maltratado [9].
Do ponto de vista formal, a alteração desse status quo depende do reconhecimento legal do animal como sujeito de direitos e, neste particular, cabe lembrar que apesar de incontáveis entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que caminham para nesse sentido, a interpretação da lei penal é restritiva. Do ponto de vista material, o tratamento jurídico de condutas de maus tratos a animais não se alinha com a sua tutela enquanto recurso natural, parte do ecossistema e da biodiversidade.
Parece-me adequado e urgente que a tutela dos animais como seres sencientes se dê por legislação especial, de natureza animalista, que considere os princípios e peculiaridades do direito animal e dos direitos dos animais. Advogo, pois, pela criação de um Código de Direito Animal ou de Direitos dos Animais, não-especista e que tenha caráter de lei-geral, como alternativa à Lei de Crimes e Infrações Ambientais.
[1] MARQUES, Letícia Yumi. Direitos dos Pets: Guia para Tutores(as) de Animais. São Paulo: Ed. Letras do Pensamento, 2022, p. 31.
[2] Canal Rural. Saiba como é feito o treinamento de cães para caçar javalis. Online. 21.12.2016. Disponível em < https://www.canalrural.com.br/programas/jornal-da-pecuaria/saiba-como-feito-treinamento-caes-para-cacar-javalis-65250/>. Acesso em 24.01.2025.
[3] MARQUES, Letícia Yumi. A tutela dos animais nos direitos ambiental e animal brasileiros e a senciência como fundamento da sua proteção jurídica. Revista Jurídica Luso-Brasileira. Lisboa, ano 9, n. 3, p. 1139-1164, 2023. Disponível em < https://www.cidp.pt/publicacao/revista-juridica-lusobrasileira-ano-9-2023-n-3/319>.
[4] MARQUES, Letícia Yumi. A tutela dos animais nos direitos ambiental e animal brasileiros e a senciência como fundamento da sua proteção jurídica. Revista Jurídica Luso-Brasileira. Lisboa, ano 9, n. 3, p. 1139-1164, 2023. Disponível em < https://www.cidp.pt/publicacao/revista-juridica-lusobrasileira-ano-9-2023-n-3/319>.
[5] MARQUES, Letícia Yumi. Direitos dos Pets: Guia para Tutores(as) de Animais. São Paulo: Ed. Letras do Pensamento, 2022, p. 27.
[6] MARQUES, Leticia Yumi. Licenciamento ambiental como instrumento para conservação da biodiversidade e bem-estar animal: estudo sobre o atropelamento de animais na Estrada-Parque Carlos Botelho (SP-139). 2022. Dissertação (Mestrado em Sustentabilidade) – Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. doi:10.11606/D.100.2022.tde-13042022-181833.
[7] MARQUES, Letícia Yumi. O abate de espécimes de Sus scrofa (javali) na legislação brasileira e suas repercussões para a conservação da biodiversidade e o bem-estar animal. In: MARQUES, Letícia Yumi e Zapater, Tiago C.V. (org.). Tutela dos animais no direito ambiental e no direito animal. São Paulo: Letras Jurídicas, 2022, p. 289-315.
[8] STILT, Kristen. Rights of nature, rights of animals. Harvard Law Review, 134, 20.03.2021. Disponível em: https://harvardlawreview.org/2021/03/rights-of-nature-rights-of-animals/. Acesso em 25.01.2025.
[9] MAGLIARELLI, Filipe H. V. Crime de maus-tratos: diagnóstico da tutela dos animais no direito penal e processual penal brasileiro. In: MARQUES, Letícia Yumi e Zapater, Tiago C.V. (org.). Tutela dos animais no direito ambiental e no direito animal. São Paulo: Letras Jurídicas, 2022, p. 237.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!