Opinião

Governança corporativa nas SAFs e modernização da gestão dos clubes

Autor

  • é advogada no escritório PPF Advocacia especialista em advocacia empresarial e societária e em soluções jurídicas no âmbito de controvérsias entre sócios constituição e estruturação societária ex-membro da Comissão de Mediação e Arbitragem (OAB-BA/Feira de Santana) e pós-graduada em advocacia empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e educação executiva em Direito Digital pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).

    Ver todos os posts

28 de janeiro de 2025, 13h18

Historicamente, a paixão pelo futebol no Brasil impulsionou a criação de clubes, inicialmente como espaços de lazer e confraternização. Em virtude de sua origem recreativa, os clubes de futebol brasileiros foram predominantemente constituídos sob a forma de associações civis, entidades sem fins lucrativos cuja gestão é realizada por membros apaixonados por seu “time do coração” e que dedicam parte de seu tempo livre às atividades administrativas e atribuições estatutárias, mesmo que não recebam remuneração adequada.

Cruzeiro Esporte Clube/Divulgação

Essa realidade acumula uma série de limitações técnicas e profissionais para acompanhar a dinâmica e as exigências do mercado contemporâneo futebolístico, como a instabilidade financeira e o endividamento crônico enfrentado por muitos clubes, a falta de competitividade e a perda de credibilidade junto aos torcedores e investidores.

O Código Civil (Lei nº 10.406/2022) estabelece um regramento para as associações civil mais simplificado e mais permissivo que o previsto para as sociedades empresárias. Isso significa que o funcionamento e estrutura interna das associações é, em grande parte, definido em seus estatutos sociais, o que confere autonomia para moldar suas regras e procedimentos, ao tempo que dificultam a aplicação de sanções aos dirigentes que atuam de forma irregular, o que pode incentivar práticas de gestão pouco eficientes e até mesmo ilegais.

Nesse cenário, a Lei das Sociedades Anônimas do Futebol (Lei nº 14.193/2021) oferece um novo modelo de gestão que busca a profissionalização, a transparência e a sustentabilidade financeira, permitindo que os clubes tenham acesso a novas e mais robustas fontes de financiamento e que adotem práticas de governança corporativa mais modernas e adequadas à mitigação de riscos, ao aumento da confiança dos investidores e a maximização do retorno sobre o investimento.

A transição para o modelo de sociedade anônima, a partir do implemento da Lei da SAF, representa um passo fundamental para a modernização do futebol brasileiro e para a criação de um ambiente mais competitivo e transparente.

A paixão do brasileiro pelo futebol transcende o esporte e é a força motriz à sua transformação em um mercado lucrativo, com um potencial de crescimento ainda maior na economia nacional. Muito além de um esporte, o futebol movimenta bilhões de reais anualmente, gerando empregos e impulsionando diversos setores da economia através dos jogos, como turismo, varejo e uma infinidade de pequenas e médias empresas que se beneficiam desse mercado. Ademais, a comercialização de ingressos, a venda de direitos de transmissão à emissoras de televisão e plataformas da internet, a negociação de atletas e exploração da marca do clube são algumas das principais fontes de receitas dos clubes.

As SAFs têm finalidade mercantil inerente às sociedades empresárias e o condão de fomentar a criação de um ambiente de negócios sustentável, estimulando investimentos e o uso de mecanismos financeiros mais sofisticados, como o mercado de capitais [1], de forma a obter financiamento para quitar dívidas e realizar investimentos em infraestrutura e contratação de atletas.

Do ponto de vista da profissionalização gestão, a implementação da governança corporativa nas Sociedades Anônimas de Futebol (SAF) representa um marco crucial para o futuro do mercado do futebol brasileiro ao exigir transparência, garantindo a eficiência operacional da organização, assegurando higidez e transparência ao processo deliberativo e à fiscalização por parte dos órgãos sociais, o que é visto com bons olhos e apreciado pelo mercado e investidores.

Contudo, a implementação das regras de governança exige a superação de alguns obstáculos, a resistência cultural, a falta de qualificação profissional e a complexidade do ambiente regulatório. A adaptação à complexidade da nova estrutura societária do modelo das SAF representa um desafio complexo para as agremiações, exigindo uma profunda transformação em sua estrutura e processos internos.

Aspectos de governança corporativa nas sociedades anônimas de futebol

A governança corporativa pode ser compreendida como um sistema de normas e práticas que racionaliza o exercício do poder dentro das organizações, mediante a implementação de mecanismos de prevenção e mitigação de conflitos de interesses, orientam a gestão responsável da sociedade [2].

Spacca

A Lei das SAFs dispõe de normas relacionadas ao controle societário, impedimentos específicos para a eleição e posse para determinados cargos, regras sobre existência e funcionamento de órgãos societários, além de normas de transparência.

Assim sendo, o conselho de administração é um órgão colegiado com atribuições de caráter deliberativo, sendo responsável por definir as estratégias dos negócios, acompanhar o cumprimento dos objetivos sociais pela diretoria e viabilizar “a conexão entre a gestão executiva e os sócios em defesa dos interesses da organização” [3]. Por sua vez, o conselho fiscal tem a prerrogativa de fiscalizar os atos dos conselheiros de administração e diretores executivos, bem como de verificar o cumprimento dos seus deveres legais e estatutários [4]. De forma diversa à Lei de Sociedade por Ações (Lei nº 6.404/1976), tanto o conselho de administração quanto o conselho fiscal nas SAFs são órgãos de existência obrigatória e de funcionamento permanente.

Com vistas a prevenir conflitos de interesses, a nova legislação impõe restrições específicas para a composição dos seus órgãos sociais. Desse modo, não se admite que integrem o conselho de administração, conselho fiscal ou diretoria de uma SAF, pessoas que exerçam cargos em outros órgãos de outra SAF; membros de clubes ou pessoas jurídicas originais, com exceção daquela que deu origem à SAF; membros de entidades de administração do futebol; atletas treinadores com contrato celebrado com o clube, e árbitros profissionais em atividade.

Ademais, aquele que for membro do conselho de administração não terá direito a nenhuma remuneração, se também for associado e integre qualquer órgão social do clube ou pessoa jurídica original, enquanto for acionista da respectiva sociedade anônima do futebol. O mesmo vale para membros do conselho fiscal.

Outro ponto relevante é que, por muito tempo, o trabalho desempenhado pelos dirigentes dos clubes de futebol foi culturalmente considerado como a materialização do amor pelo time e, por isso, receber qualquer remuneração, além de ser vedado em lei, também era vista com tom mesquinho. A consequência aterradora disso é que o gestor tem que dividir sua atenção e conciliar entre suas atividades na representação do clube com o seu trabalho pessoal.

Levando em consideração o contexto e as condições atuais de mercado do futebol, a Lei da SAF prevê que os diretores deverão ser contratados sob regime de dedicação exclusiva, podendo o estatuto social fixar critérios específicos, admitindo a sua adequada remuneração em virtude do trabalho prestados, levando em consideração as suas qualificações técnicas e os riscos da função. A remuneração dos gestores propicia o alinhamento de objetivos, a profissionalização das atuações e evita possíveis conflitos de interesses.

Quanto às regras de controle societário e de transparência, vale de dizer que, em virtude da aplicação subsidiária das normas do microssistema da Lei de S/A [5], a Lei das SAF importou o conceito de acionista controlador, vedando que  o acionista controlador da SAF detenha participação, direta ou indireta, em outra SAF; como também o “acionista que detiver 10% (dez por cento) ou mais do capital votante ou total da SAF, sem a controlar, se participar do capital social de outra SAF, não terá direito a voz nem a voto nas assembleias gerais, nem poderá participar da administração dessas companhias, diretamente ou por pessoa por ele indicada” [6].

A pessoa jurídica que detém 5% ou mais do capital social da SAF está obrigada a informar à SAF e à entidade nacional de administração do desporto o nome, a qualificação, o endereço e os dados de contato da pessoa natural que exerce, direta ou indiretamente, o controle sobre ela ou que seja a beneficiária final dos seus direitos. O descumprimento dessa obrigação ensejará a aplicação das sanções previstas em lei, quais sejam, a suspensão dos direitos políticos do acionista e a retenção de seus dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra forma de remuneração declarada, até o cumprimento desse dever.

Na esteira do movimento de desburocratizar o ambiente de negócios do Brasil, as SAF de menor porte – isto é, com receita bruta anual de até R$ 78 milhões — poderão realizar todas as publicações obrigatórias de forma eletrônica, incluídas as convocações, atas e demonstrações financeiras, devendo-se mantê-las no sítio eletrônico pelo prazo de dez anos.

Por fim, visando assegurar a transparência e a responsabilização na gestão das SAF, a lei impõe a obrigatoriedade de divulgação pública, no site do clube, de informações relevantes, tais como: estatuto social, atas das assembleias, composição dos órgãos de administração, relatório de gestão e programa social. A disponibilização dessas informações no site do clube é fundamental para que os sócios, torcedores e demais stakeholders (possam acompanhar a gestão da sociedade. A falta de cumprimento dessa obrigação sujeita os administradores à responsabilização respectiva.

Em suma, a governança corporativa se revela como um pilar fundamental para a modernização e o desenvolvimento sustentável do futebol brasileiro. Ao exigir transparência, prestação de contas e profissionalização na gestão, a governança corporativa contribui para fortalecer a confiança dos investidores, dos torcedores e da sociedade em geral, além de promover a eficiência econômica e a competitividade dos clubes. A implementação de práticas sólidas é essencial para que as SAF se consolidem como sociedades empresárias de sucesso e contribuam para o crescimento do mercado do futebol nacional.

 


[1] SOUZA, M. P. S. de. Drop Down Para Constituição De Sociedade Anônima Do Futebol (Saf): Tratamento Contábil E Tributário Da Versão Do “Patrimônio Relacionado À Atividade Futebol”. A Revista de Direito Contábil, Edição v. 6 n. 11 (2024),  143-162, Data da publicação: 14/05/2024.

[2] Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC CÓDIGO DE MELHORES PRÁTICAS DE GOVERNANÇA CORPORATIVA / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – 6. ed. – IBGC. – São Paulo, SP : IBGC, 2023.

[3] Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC Código De Melhores Práticas De Governança Corporativa / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – 6. ed. – IBGC. – São Paulo, SP : IBGC, 2023.

[4] Artigo 5º, caput, Lei n. 14.193/2021.

[5] ABREU, Louise Leoni. Os Desafios Da Governança Corporativa Na Sociedade Anônima Do Futebol. Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 2023.

[6] Artigo 4º, Lei n. 14.193/2021.

Autores

  • é sócia do escritório Pires, Pinheiro e Freitas Advocacia, especialista em Direito Societário e contratos empresariais, com experiência em soluções jurídicas no âmbito de controvérsias entre sócios, constituição e estruturação societária, graduada pela Universidade Federal da Bahia, com Formação em Mediação Judicial pelo Conselho Nacional de Justiça (2016), pós-Graduada em Advocacia Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2020) e especialista em Educação Executiva em Direito Digital pelo Insper (2019).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!