Opinião

A estupidez como método: crônica do direito internacional contemporâneo

Autor

28 de janeiro de 2025, 21h38

Vivemos a Era da Estupidez. Não aquela estupidez inocente, fruto da ignorância involuntária, mas uma forma mais perversa: a estupidez institucionalizada, metodológica, que se apropria do direito internacional para esvaziá-lo de sentido. Enfrentamos uma crise paradigmática, como aponta Lenio Streck, onde significantes jurídicos flutuam desconectados de seus significados originais, criando um direito que é mais forma que substância, mais retórica que efetividade.

O esvaziamento da linguagem jurídica manifesta-se de forma ainda mais aguda no direito internacional, onde conceitos fundamentais como “soberania”, “cooperação” e “multilateralismo” transformaram-se em significantes vazios, manipuláveis conforme as conveniências do poder. Como nos ensina Lessing em seu “Nathan, o Sábio”, a verdadeira sabedoria reside na capacidade de reconhecer a universalidade por trás das particularidades — lição que parece esquecida em tempos onde o particularismo dos interesses nacionais se sobrepõe à universalidade do direito internacional.

O direito internacional, reestruturado após a Segunda Guerra Mundial com o objetivo de estabelecer mecanismos efetivos de cooperação e preservação da paz, encontra-se hoje reduzido a mero instrumento retórico. O sistema que emergiu em 1945, fortalecido pela criação da ONU e posteriormente expandido com uma rede robusta de organizações e tratados internacionais, vê-se agora fragilizado pela conveniência política.

Tratados internacionais, que deveriam funcionar como pilares vinculantes da ordem global, são interpretados à la carte, como um cardápio onde Estados escolhem que obrigações honrar conforme seus interesses momentâneos. A própria noção de pacta sunt servanda parece ter se transformado em uma relíquia jurídica, um conceito antiquado frente à “modernidade” das relações bilaterais baseadas em pura conveniência.

Violação do direito internacional econômico

Janeiro de 2025 nos oferece um caleidoscópio perturbador dessa realidade. Quando uma potência global impõe sanções econômicas draconianas a um país sul-americano por este exercer seu direito soberano de controle do espaço aéreo, não estamos apenas diante de uma violação do direito internacional econômico — presenciamos um multilateralismo ferido e enfraquecido — travestida de “medidas de segurança nacional”.

A soberania, conceito fundamental no direito internacional, tornou-se paradoxalmente o álibi perfeito para seu próprio esvaziamento. Estados invocam sua soberania para violar tratados internacionais, enquanto ignoram a mesma prerrogativa quando exercida por nações mais fracas. É a lei do mais forte disfarçada de ordem jurídica internacional.

Spacca

O tratamento dispensado a deportados em voos internacionais exemplifica essa distorção: práticas administrativas internas são estendidas ao espaço aéreo internacional, onde deveriam prevalecer as normas do direito internacional público. A dignidade humana, princípio basilar da ordem jurídica internacional pós-1945, sucumbe frente a “procedimentos padrão” de agências nacionais.

Organizações internacionais fragilizadas

A fragilidade das organizações internacionais frente a esse cenário é sintomática. ONU, OMC, OMS — instituições criadas para promover a cooperação internacional — são sistematicamente esvaziadas, transformadas em palco para a encenação de um multilateralismo cambaleante, que se arrasta entre crises sucessivas sem conseguir dar respostas efetivas aos desafios globais. Seus mecanismos de solução de controvérsias, quando não são simplesmente ignorados, são instrumentalizados para legitimar violações do próprio direito que deveriam proteger.

O fenômeno das fake news agrava esse quadro ao criar uma realidade paralela onde fatos são substituídos por narrativas convenientes. A incapacidade coletiva de interpretar informações, aliada à preferência por explicações simplistas para problemas complexos, cria o ambiente perfeito para a proliferação do pensamento maniqueísta. O direito internacional, que deveria servir como instrumento das relações internacionais, é reduzido a munição em guerras ideológicas.

Quando um crime individual é transformado em pretexto para atacar toda uma comunidade de refugiados e migrantes, testemunhamos como a superficialidade do pensamento corrói os próprios fundamentos do Estado de direito. O princípio da não-discriminação, pedra angular do sistema internacional de proteção a direitos humanos, é sacrificado no altar do preconceito institucionalizado.

Direito internacional virou refém de interpretações

A crise do direito internacional é, antes de tudo, uma crise de sentido. O direito não pode ser reduzido a um conjunto de regras interpretáveis ao sabor das contingências — ele precisa manter sua integridade como sistema normativo dotado de sentido. No entanto, o que presenciamos é justamente o contrário: um direito internacional que se tornou refém da discricionariedade interpretativa, onde cada ator internacional se arroga o direito de atribuir significados convenientes a normas inconvenientes.

Como ensina Fichte, quando perdemos a capacidade de reconhecer a humanidade no outro, perdemos também nossa própria humanidade. No direito internacional contemporâneo, essa perda se manifesta na incapacidade de compreender que a cooperação internacional não é uma opção — é uma necessidade existencial em um mundo interconectado.

O resgate do direito internacional como sistema normativo efetivo exige mais que reformas institucionais ou novos tratados. Requer o que Kant chamaria de uma revolução copernicana no pensamento jurídico: a recuperação da capacidade de pensar criticamente e de reconhecer que a estupidez, quando institucionalizada, representa a maior ameaça à própria sobrevivência da ordem jurídica internacional.

A escolha não é entre direita e esquerda, norte e sul, leste e oeste. A verdadeira escolha é entre racionalidade e estupidez, entre um sistema internacional baseado em regras e a lei da selva disfarçada de direito internacional. Na Era da Estupidez, recuperar a capacidade de pensar criticamente não é apenas um desafio acadêmico — é uma questão de sobrevivência civilizatória.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!