A decisão da SBDI-I do TST e a ADC 58: juros trabalhistas x 'taxa legal'
28 de janeiro de 2025, 15h23
A Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-I) do Tribunal Superior do Trabalho (TST) [1], fundamentando-se no caráter vinculante da decisão da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) nº 58 do Supremo Tribunal Federal, determinou que seja observada para cálculo dos juros de mora dos débitos trabalhistas a “taxa legal” do §1º, do artigo 406 do Código Civil, equivalente “ao resultado da subtração Selic – IPCA”, a partir de 30/8/2024.
Todavia, será que o julgamento do STF proferido em controle concentrado decidiu sobre a inconstitucionalidade da legislação específica dos juros de mora trabalhistas? E mais: por qual fundamento os juros trabalhistas do artigo 39, da Lei nº 8.177/91 não mais seriam válidos?
Na ADC nº 58 [2], de forma bem específica, restou decidido pela inconstitucionalidade da utilização Taxa Referencial como índice de atualização dos débitos trabalhistas. Assim, a Corte Suprema conferiu interpretação
“…conforme à Constituição ao art. 879, §7º, e ao art. 899, §4º, da CLT, na redação dada pela Lei 13.467, de 2017, definindo-se que, até que sobrevenha solução legislativa, deverão ser aplicados à atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial e à correção dos depósitos recursais em contas judiciais na Justiça do Trabalho os mesmos índices de correção monetária e de juros vigentes para as hipóteses de condenações cíveis em geral (art. 406 do Código Civil).”
A “solução legislativa” da correção monetária veio com a Lei nº 14.905, de 2024 que conferiu nova redação ao art. 389 do Código Civil e introduziu seu parágrafo único, in verbis:
“Art. 389. Parágrafo único. Na hipótese de o índice de Atualização Monetária não ter sido convencionado ou não estar previsto em Lei Específica, será aplicada a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), apurado e divulgado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou do índice que vier a substituí-lo.”
Referida disposição normativa possui aplicabilidade ao Direito do Trabalho, tendo em vista a inexistência de índice próprio de atualização monetária das dívidas trabalhistas depois do julgamento da inconstitucionalidade da Taxa Referencial (TR). Inteligência do §1º, do artigo 8º da CLT [3].
A discussão proposta neste artigo é sobre a possibilidade de se continuar aplicando a Selic como taxa de juros dos débitos trabalhistas mesmo depois da referida “solução legislativa”. O fio condutor da pesquisa são os fundamentos do voto do Relator na ADC 58. Serão examinadas três correntes principais de entendimento sobre a matéria, ora denominadas: a) ausência de fundamentação específica; b) arrastamento tácito do critério de juros trabalhistas; c) revogação da lei específica pela lei geral.
Ausência de fundamentação específica
Na maioria das decisões trabalhistas, assim como no referido julgamento da SBDI-I, não existe fundamentação para a continuidade de aplicação da taxa Selic depois da referida “solução legislativa”. A questão dos juros e correção simplesmente é “dessumida” ou remetida em bloco à decisão da ADC 58. Mas, seria jurídica a interpretação que desconsidera a legislação trabalhista própria [4] sobre os juros de mora?
No julgamento da ADC 58 [5], o Supremo Tribunal Federal afastou o entendimento que prevalecia na Justiça do Trabalho dentro de sua competência constitucional material, considerando
“(…) 3. A indevida utilização do IPCA-E pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) tornou-se confusa ao ponto de se imaginar que, diante da inaplicabilidade da TR, o uso daquele índice seria a única consequência possível. A solução da Corte Superior Trabalhista, todavia, lastreia-se em uma indevida equiparação da natureza do crédito trabalhista com o crédito assumido em face da Fazenda Pública, o qual está submetido a regime jurídico próprio da Lei 9.494/1997, com as alterações promovidas pela Lei 11.960/2009.”
Posteriormente, a Lei nº 14.905/24 determinou que, na hipótese do índice de atualização monetária não ter sido convencionado ou não estar previsto em Lei Específica, será aplicada a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo.
Superada a questão da correção monetária dos débitos trabalhistas, resta saber se depois da “solução legislativa” ainda continuaria necessário o recurso à taxa de juros da Selic, uma vez que a legislação trabalhista possui regramento próprio sobre a matéria, conforme expressamente reconhecido na ADC 58, in verbis:
“4. A aplicação da TR na Justiça do Trabalho demanda análise específica, a partir das normas em vigor para a relação trabalhista. A partir da análise das repercussões econômicas da aplicação da lei, verifica-se que a TR se mostra inadequada, pelo menos no contexto da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), como índice de atualização dos débitos trabalhistas.”
A dificuldade interpretativa surge porque em substituição à TR declarada inconstitucional o STF determinou a utilização da taxa Selic para a correção dos débitos trabalhistas até a “solução legislativa”. Assim, a aplicação dos juros especiais trabalhistas ficou paralisada uma vez que a Selic já abrangeria juros e correção monetária, como ressaltado na decisão da ADC 58 [6].
Depois do novo parágrafo único do artigo 389 do Código Civil, não mais se verifica a necessidade da utilização da Selic na Justiça do Trabalho. Os juros próprios trabalhistas não foram declarados inconstitucionais e não tratam de forma englobada da correção monetária. Uma vez afastada a possibilidade de fundamentação per relationem da questão dos juros e correção, seguir-se-ão a análise das duas principais teses utilizadas para continuidade do uso da taxa Selic.
Fundamentações específicas
1 Arrastamento tácito do critério de juros trabalhistas
Na hipótese de relação de dependência ou correlação lógica entre um ato normativo e outro, o tribunal poderá declarar a inconstitucionalidade de ambos, por arrastamento ou reverberação normativa. Em diversas decisões de controle concentrado, o STF já reconheceu a inconstitucionalidade lógica de dispositivos legais por derivação, tal como recentemente verificado na ADI 5.322 sobre a lei dos motoristas profissionais [7].
Ultrapassa os limites deste breve artigo a questão da legitimidade para o reconhecimento dessa atração de inconstitucionalidade por arrastamento ou de eventual usurpação da competência constitucional do STF em controle concentrado.
Na ADC 58, o STF decidiu pela inconstitucionalidade da utilização Taxa Referencial como índice de atualização dos débitos trabalhistas, mas não estendeu esta nulidade para o critério próprio de juros previsto no mesmo artigo 39 da Lei nº 8.177/91.
Reitere-se. Diante da inexistência de inconstitucionalidade dos juros próprios trabalhistas, a própria decisão da ADC 58 reconhece a impossibilidade do arrastamento da nulidade reconhecida da TR, expressamente consignando uma sugestão legislativa na sua fundamentação:
“Além disso, entendo que devemos realizar apelo ao Legislador para que corrija futuramente a questão, equalizando os juros e a correção monetária aos padrões de mercado e, quanto aos efeitos pretéritos, determinarmos a aplicação da taxa Selic, em substituição à TR e aos juros legais, para calibrar, de forma adequada, razoável e proporcional, a consequência deste julgamento.”
Tratando-se de decisão definitiva de mérito, proferida pelo STF em ação declaratória de constitucionalidade, seu efeito é vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário, nos termos do art. 102, §2º da Constituição Federal. Impossível, portanto, o arrastamento da interpretação da inconstitucionalidade reconhecida para alcançar os juros próprios trabalhistas.
Superada a questão da constitucionalidade, ainda resta analisar um segundo argumento que utilizado para reconhecer a revogação dos juros próprios trabalhistas pelo critério da “taxa legal” da Lei nº 14.905, de 2024.
2 Revogação da lei específica pela lei geral
O direito trabalhista contém disposição específica sobre juros de mora na Lei n. 8.177/91, in verbis:
“Art. 39. § 1° Aos débitos trabalhistas constantes de condenação pela Justiça do Trabalho ou decorrentes dos acordos feitos em reclamatória trabalhista, quando não cumpridos nas condições homologadas ou constantes do termo de conciliação, serão acrescidos, nos juros de mora previstos no caput, juros de um por cento ao mês, contados do ajuizamento da reclamatória e aplicados pro rata die, ainda que não explicitados na sentença ou no termo de conciliação.”
Na nova redação conferida ao artigo 406 do Código Civil pela Lei nº 14.905/24 restou estabelecido que:
“Art. 406. Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal.
§1º A taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código.”
Depois da alteração legislativa, muitas decisões trabalhistas passaram a sustentar uma prevalência da nova norma geral do Código Civil sobre a norma específica da Lei n. 8.177/91, por exemplo [8]:
“(…) 2. Em razão da alteração legislativa trazida pela Lei 14.905/2024, a partir de 30/8/2024 (produção de efeitos dos dispositivos pertinentes) a correção monetária se dará pela variação do IPCA, nos termos do art. 389, caput e §1º, e os juros incidentes serão fixados de acordo com a “taxa legal”, na forma do art. 406, caput e §§ 1º a 3º do Código Civil Recurso de revista conhecido e provido”. (RRAg-74-69.2013.5.15.0062, 1ª Turma, Relator Ministro Amaury Rodrigues Pinto Junior, DEJT 01/10/2024)
Todavia, o Código Civil apenas de forma geral e subsidiária disciplina a “taxa legal” de juros para aquelas hipóteses em que não tenham sido convencionados pelas partes ou definidos em Lei, situação não verificada quanto aos créditos trabalhistas que possuem legislação própria.
Ainda que assim não fosse, é princípio geral de Direito que a lei geral posterior não revoga a lei específica anterior, salvo expressa disposição legal. Inteligência do §2º, do artigo 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) [9].
Finalmente, critério da especialidade sempre foi muito importante para a afirmação do Direito do Trabalho como ramo autônomo desenvolvido a partir do Direito Civil do qual se desprendeu e constituiu uma disciplina própria, conforme artigos 8º e 769 da CLT [10].
Conclusões
As controvérsias sobre a correção monetária e juros trabalhistas somente poderão ser resolvidas por meio de uma interpretação lógica e sistemática do precedente da ADC 58 do STF. Numa primeira análise, os limites da decisão no controle concentrado parecem ter sido ultrapassados na decisão da SBDI-I. Considerado o código binário do direito (lícito/ilícito), algumas conclusões foram destacadas ao longo do texto:
a) na ADC 58, o STF não julgou inconstitucional os juros de mora trabalhistas do artigo 39, da Lei nº 8.177/91 e, ao mesmo tempo, reconheceu a impossibilidade de arrastamento por decisão judicial da nulidade declarada unicamente da TR;
b) o Supremo limitou a utilização da Selic até a “solução legislativa” da correção monetária da dívida trabalhista, posteriormente resolvida pelo novo parágrafo único do artigo 389 do Código Civil que definiu a utilização do IPCA;
c) a disciplina dos juros trabalhistas não inclui a correção monetária, diferentemente da Selic;
d) a novidade do critério geral da taxa legal de juros do artigo 406, §1º do Código Civil não prevalece sobre a norma específica trabalhista diante de elementar princípio de hermenêutica.
Utilizando-se estas conclusões, uma interpretação das regras legais e do precedente do STF da ADC 58 do STF sobre os parâmetros de atualização das dívidas trabalhistas, poderia ser estruturada da seguinte forma:
1. Período anterior a 29/8/2024, seguem-se estritamente os critérios definidos no julgamento da ADC 58 do colendo STF:
a) o IPCA-E para o período pré-processual;
b) a partir do ajuizamento da ação, apenas a taxa Selic, a qual já engloba juros e correção monetária, para o período processual.
2. Período a partir de 30/8/2024, com a vigência da “solução legislativa” da Lei nº 14.905/24:
a) apenas o IPCA para o período pré-processual (parágrafo único incluído no artigo 389 do Código Civil c/c artigo 8º, §1º da CLT);
b) no período processual, IPCA + juros de 1% ao mês do artigo 39, §1º da Lei nº 8.177/91.
[1] TST-E-ED-RR-713-03.2010.5.04.0029, SBDI-I, rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte, julgado em 17/10/2024. Disponível em: https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/resumoForm.do?consulta=1&anoInt=2011&numeroInt=153967. Acesso em: 17 nov. 2024
[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5526245. Acesso em: 22 out. 2024.
[3] Art. 8º, § 1º O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho.
[4] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8177.htm. Acesso em: 18 out. 2024.
[5] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5526245. Acesso em: 22 out. 2024.
[6] ADC 58, 7. (…) A incidência de juros moratórios com base na variação da taxa SELIC não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária, cumulação que representaria bis in idem.
[7] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4778925. Acesso em: 22 out. 2024.
[8] Colhe-se da fundamentação do r. julgado: “…Destaca-se, finalmente, que o art. 406 do Código Civil, referido no julgamento da ADC 58 teve sua redação alterada pela Lei 14.905/2024. A norma legal acima referida promoveu a separação dos juros e correção, que antes eram calculados conjuntamente pela utilização da taxa Selic, conforme a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.” (Disponível em: https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=74&digitoTst=69&anoTst=2013&orgaoTst=5&tribunalTst=15&varaTst=0062&submit=Consultar. Acesso em: 22 out. 2024)
[9] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm Acesso em: 20 out. 2024.
[10] E-ED-RR-93300-22.2003.5.20.0004, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, DEJT 09/10/2009. (Disponível em: https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=93300&digitoTst=22&anoTst=2003&orgaoTst=5&tribunalTst=20&varaTst=0004&submit=Consultar. Acesso em: 20 out. 2024)
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