A arte aos olhos da Justiça
28 de janeiro de 2025, 18h29
Nos últimos dias do outono de 2024, na respeitada Faculdade de Direito da Universidade de Turim, Itália, a aconteceu a conferência “Diritto dell’Arte, Processo e Nuove Tecnologie”, cujo principal objetivo foi discutir esses temas tão atuais quanto relevantes a partir do livro “L’Opera d’Arte in Tribunale” (ed. Postmedia Books), obra recém publicada por Alessandra Donati, advogada em Milão e professora de direito privado comparado na Universidade Milano-Bicocca, e Novelio Furin, naming-partner do Studio Legale Associato Furin-Grotto, de Vicenza, no Vêneto, dedicado ao Direito Penal Econômico.
O lugar da conferência não poderia ter sido mais apropriado. Afinal, a capital do Piemonte abriga espaços culturais de enorme prestígio internacional, como a feira de arte Artissima, a Pinacoteca Agnelli, a Fundação Merz, o Museu de Arte Contemporânea do Castello di Rivoli e o Centro de Conservação e Restauração de La Venaria Reale. Certamente, por conta desse denso e diverso ecossistema artístico, desenvolveu-se na cidade de Turim uma sofisticada Escola de Direito da Arte, liderada pelo professor Gianmaria Ajani, catedrático de direito comparado e ex-reitor da Università di Torino, que tem contado com expoentes como Silvia Ferreri, Angelo Chianale, Domenico di Micco, Geo Magri, Mario Riberi, Alberto Odenino e Vittoria Trifiletti.
Tive a alegria de participar do evento e a felicidade de encontrar antigos e novos colegas. De uma perspectiva brasileira, o timing da conferência não poderia ter sido mais apropriado, dado o excepcional momento por que passam o mercado e o direito da arte no Brasil na atualidade. Segundo alguns dados dos relatórios mais recentes da feira Art Basel e do banco suíço UBS, 92% dos grandes colecionadores brasileiros dizem-se otimistas com o futuro do mercado neste momento. De acordo com as mesmas fontes, as coleções brasileiras de arte contemporânea só perdem para as coleções francesas em número médio de peças (69 contra 62). Além disso, o Brasil conta atualmente com três nomes na lista global dos “Top Collectors” elaborada pela ARTnews. Sem esquecer que o número de coleções corporativas e museus privados de arte contemporânea aumentou muito nos últimos anos entre nós.
A esse cenário tão positivo se soma a recente decisão do Centro Georges Pompidou, de Paris, de instalar nos próximos anos uma filial brasileira próxima às Cataratas de Iguaçu, e o Museu de Arte de São Paulo, o maior da América Latina, inaugurar em abril de 2025 um projeto de expansão de US$ 43 milhões. Indicadores como esses — e tantos outros — levaram a consultoria de arte Sophie Su a divulgar, há poucos dias, em seu site: “Brazilian Art Wins the World in 2025”.
Debates sobre arte no Legislativo
Diante deste auspicioso momento artístico-econômico, o Legislativo brasileiro vem discutindo uma série de projetos de lei relacionados ao mercado de arte como, por exemplo, a respeito da definição legal de artista visual [1], da obrigatoriedade de emissão de certificados de autenticidade [2], do registro notarial da propriedade de obras de arte [3], da criminalização de condutas relativas à falsificação[4] e do agravamento das penas por lavagem de dinheiro com obras de arte [5].
Toda essa movimentação, obviamente, tem resultado em mais publicações, eventos, podcasts, teses, juristas e pesquisadores dedicados ao Direito da Arte no Brasil. A equação é simples: quanto maior o mercado, maior o número de questões jurídicas, dúvidas, polêmicas e discussões nele suscitadas. Tanto assim que, quando a Court of Arbitration for Art (CAfA) foi criada, em 2018, em Rotterdam, havia apenas um único árbitro brasileiro. Hoje, já são 11 os árbitros nacionais.
Bem, o livro “L’Opera d’Arte in Tribunale” — cujo lançamento motivou a realização da mesa-redonda “Diritto dell’Arte, Processo e Nuove Tecnologie” em Turim — já constitui um case book de referência obrigatória nos circuitos internacionais do direito da arte, uma vez que explora, com abrangência, profundidade e criatividade, a complexa relação entre o artístico e o jurídico, abordando questões clássicas que necessitavam de novos olhares — como a definição de obra de arte, a proteção dos direitos autorais, a autenticidade, o direito de sequência, a circulação de bens culturais, o transporte e o seguro de obras de arte —, bem como temas contemporâneos que ainda não haviam recebido da literatura jurídica um tratamento sistemático mais aprofundado, como os regimes jurídicos das instalações, performances e obras de arte conceituais, a retrodatação das obras, o papel dos especuladores e a recente reforma penal italiana da tutela dos bens culturais.
Abordagem de temas jurídicos
Em pouco menos de 500 páginas, divididas em 5 partes, “L’Opera d’Arte in Tribunale” aborda temas jurídicos tradicionais e atuais a partir da justaposição de argumentos de direito público, direito privado, direito comparado, direito internacional, direito europeu e teoria jurídica. O resultado é um livro curioso, interessante, didático, preciso, claro e inovador, que prende a atenção do leitor e cujo principal mérito é estabelecer pontes entre diversas jurisdições e atores jurídicos a partir de rica pesquisa jurisprudencial.
Decisões estrangeiras emblemáticas, como as do caso Brancusi, nos EUA, Sorbelli v. Kimiko Yoshida, na França, ou Full Colour Black Limited v. Banksy, no Reino Unido, juntam-se à análise de inúmeros processos decididos em tribunais italianos para revelar, a partir do método da comparação, como diferentes sistemas jurídicos definem, protegem e regulam as obras de arte e os artistas. Pelo texto elegante e bem escrito de Donati e Furin, desfilam personagens marcantes da história da arte, como Michelangelo e seu Davi, De Chirico, Catellan, Koons, Beuys, Beltracchi, a Bienal de Veneza e tantos outros.
Da forma como foi estruturado, “L’Opera d’Arte in Tribunale” constitui um rico manancial para “legal transplants” e “cross-fertilizations”, interações dinâmicas e colaborativas entre ideias e soluções jurídicas, que permitem a evolução e o enriquecimento dos vários sistemas normativos. Isso é especialmente relevante em um mundo globalizado, onde a arte é um bem jurídico comum e problemas transfronteiriços como a proteção de artistas e de consumidores, o tráfico de bens culturais e a lavagem de dinheiro com obras de arte demandam soluções jurídicas também compartilhadas.
Importância da jurisprudência
Há quem diga que a jurisprudência seria a fonte mais pura do direito por supostamente já estar “despoluída” do conteúdo político-parlamentar da lei. Não concordo com esse argumento, mas reconheço que os precedentes judiciais vêm ganhando progressiva relevância como fonte do direito nos sistemas jurídicos da Civil Law, como é o caso do Brasil. É inegável que, dia após dia, entre nós, a jurisprudência desempenha um papel cada vez mais importante na integração de lacunas e no aperfeiçoamento do ordenamento jurídico, vez que permite maior flexibilidade, mais agilidade e melhor adaptação do direito às mudanças sociais e culturais, sem abrir mão da previsibilidade das decisões judiciais.
A nova publicação de Donati e Furin traz à tona a tensão inerente entre a rigidez normativa do direito e a fluidez criativa da arte. As linguagens da arte, por sua própria natureza expansiva, muitas vezes desafiam — voluntária ou involuntariamente — os limites impostos pelo direito. Esse stress é central no debate proposto em “L’Opera d’Arte in Tribunale”, livro que busca equilibrar a proteção dos direitos dos artistas com a promoção das liberdades econômicas e o acesso público às obras de arte. Para empregar uma imagem já utilizada por Italo Calvino, o tempo da arte é golfinho; o tempo do direito é âncora. No campo desafiador e mutante do Direito da Arte, o papel da jurisprudência internacional e comparada é particularmente valioso, pois aponta como esses dois tempos convergiram em casos paradigmáticos a respeito das linguagens artísticas.
Ao abraçar a forma de case book, a obra de Alessandra Donati e Novelio Furin junta-se assim a outros excepcionais livros estrangeiros que até agora ainda não encontravam similares na literatura jurídica italiana, como o francês “Les Procès de l’Art: Petites histoires de l’art et grandes affaires de droit”, de Céline Delavaux e Marie-Hélène Vignes, o inglês “The Trials of Art”, de Daniel McClean, o belga “Art & Law”, de Bert Demarsin e Bernard Tilleman, o canadense “Art Law: Cases and Controversies”, de Paul Bain, e os norte-americanos “Art Law: Cases and Materials”, de Leonard D. Duboff e Michael D. Murray, “Art, Cultural Heritage, and the Law — Cases and Materials”, de Patty Gerstenblith, e “Law, Ethics, and the Visual Arts”, de John Henry Merryman e Albert Elsen. Infelizmente, ainda não há nada parecido em língua portuguesa e essa lacuna precisa ser colmatada urgentemente, quem sabe com uma tradução.
A diversidade dos perfis profissionais dos autores envolvidos no case book italiano — professores universitários, pesquisadores, funcionários da direção de museus, jovens profissionais, advogados experientes, estudiosos de diversas áreas do direito, de distintas regiões da Itália — confere à “L’Opera d’Arte in Tribunale” ainda mais pluralidade de abordagens e perspectivas, que combinam rigor técnico com reflexões críticas agudas sobre o impacto cultural e econômico das linguagens artísticas no mundo contemporâneo e seu direito.
Essa riqueza de pontos de vista, somada à ampla variedade da jurisprudência analisada — de origem norte-americana, italiana, francesa, inglesa, alemã e europeia —, torna o livro uma leitura especialmente interessante não apenas para profissionais do campo jurídico, mas também para colecionadores, artistas, curadores, diretores de museus, gestores públicos da cultura, administradores de fundos de investimento em arte, seguradoras, peritos, connoisseurs, art advisors, galeristas, marchands, leiloeiros e restauradores interessados nos crescentes desafios jurídicos impostos pela complexidade do mercado da arte. Isso também ocorre porque “L’Opera d’Arte in Tribunale”, além de organizar e sistematizar questões jurídicas em torno da arte, convida seus leitores a refletirem sobre os limites e possibilidades do direito atual em um mundo artístico em constante transformação.
Debate sobre o livro
Arte, direito e tecnologia — os temas escolhidos para a mesa-redonda que debateu o livro — sempre mantiveram um diálogo intenso. Em 1892, por exemplo, o professor Francesco Buonamici, de Pisa, já tratava do impacto jurídico de então “novas” tecnologias como a fotografia, o telégrafo e o telefone no seu artigo “Di Alcune Applicazioni dei Principi Giuridici alle Moderne Scoperte dell’Arte”. Hoje, as transformações decorrentes da virtualização e da digitalização das artes são cada vez mais intensas, profundas e velozes, mas algumas perplexidades e dificuldades do direito em lidar com o novo em termos estéticos e tecnológicos parecem permanecer as mesmas, desde Buonamici. Isso é o que permite Alessandra Donati e Novelio Furin tratarem de questões jurídicas muito atuais da arte contemporânea recorrendo, várias vezes, a casos clássicos, que ocorreram há mais de cem anos. Passado, presente e futuro se misturam tanto na arte como no direito.
A magistral capa de “L’opera d’Arte in Tribunale”, realizada pela book designer Alessandra Mancini, merece um comentário em particular. Nela, é reproduzida a obra “Pendant” (2022), da série “Showdown”, de autoria do artista japonês Kensuke Koike, uma espécie de baralho de 36 cartas que, juntas, tanto podem formar uma grande fotografia de um rosto feminino como admitem ser reagrupadas de infinitas maneiras, formando inúmeras outras imagens. Ao permitir a manipulação de imagens com simplicidade e engenhosidade, Kensuke Koike cria uma narrativa visual complexa, que desafia as noções de identidade e percepção.
Aquela metáfora visual do baralho abriga múltiplos sentidos, todos presentes de alguma forma no livro, na arte e no direito: aleatoriedade, imprevisibilidade, acaso, jogo, regra, estratégia, escolha, criatividade, estrutura, ordem, organização, caos, completude, limite, hierarquia, fragilidade, instabilidade, identidade, diversidade, controle, poder, determinismo, livre-arbítrio, mistério, engano, ilusão, repetição e coautoria.
Ao concluir, registro que, como bons artistas provocadores, os dois autores italianos não oferecem todas as respostas e deixam os seus leitores a refletir sobre muitos outros aspectos da arte e do direito. Algumas dúvidas continuam a ecoar no leitor, mesmo depois de concluída a leitura do belo texto. Compartilho algumas dessas dúvidas que me assolaram nas últimas semanas: a inteligência artificial pode, de fato, colecionar? É possível falar em uma verdadeira curadoria digital, que não seja apenas a mera recolha de obras de arte por temas, períodos ou origens definidas? O que difere as chamadas “poéticas do acaso”, que exploram a imprevisibilidade, a aleatoriedade e o fortuito como elementos centrais no processo de criação artística, da obra derivada de inteligência artificial?
Como diria René Magritte, “ceci n’est pas un manuel d’introduction”!
[1] PL 1928/2024, do Dep. Clodoaldo Magalhães, PV/PE.
[2] PL 5362/2023, do Dep. Eduardo Bismarck, PDT/CE.
[3] PL 4516/2019, do Dep. Denis Bezerra, PSB/CE.
[4] PL 4205/2023, do Dep. Prof. Paulo Fernando, REPUBLIC/DF, e PL 4293/2020, do Dep. Felício Laterça, PSL/RJ.
[5] PL 3363/2019, do Dep. Marcelo Calero, CIDADANIA/RJ.
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