STF inaugura o direito à geoinformação no Brasil
27 de janeiro de 2025, 7h13
O Supremo Tribunal Federal deu um passo inédito ao determinar que todos os entes federativos utilizem obrigatoriamente o Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor) [1] para a emissão de Autorizações de Supressão de Vegetação (ASV). É por meio dessa autorização, concedida por órgão ambiental integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), que se pode permitir a retirada, corte ou supressão de vegetação nativa ou exótica em determinado território, caso atendidos os requisitos formais e materiais. Com a decisão monocrática do ministro Flávio Dino na ADPF 743/DF [2], todos os níveis federativos deverão usar o mesmo sistema de direito à geoinformação no que diz respeito ao controle ambiental da flora.
Isso significa que deverá ocorrer uma atuação integrada e harmônica entre União, estados, Distrito Federal e municípios no que tange à proteção do meio ambiente e à análise e emissão de ASVs. O fundamento direto é a Lei 12.651/2012 (Código Florestal), que é uma espécie de lei geral florestal do país, a Lei Complementar 140/2011 (LC 140), que regulamenta a repartição da competência administrativa em matéria ambiental a partir do que determinou o artigo 23, III, VI e VII do caput e o parágrafo único da Constituição Federal de 1988 (CF/88). O artigo 29, caput do Código Florestal dispõe que “É criado o Cadastro Ambiental Rural – CAR, no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente – SINIMA, registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento” [3]. Por sua vez, a LC 140 não deixa dúvidas quanto ao acerto da deliberação, uma vez que o art. 7º, VIII dispõe que são ações administrativas da União “organizar e manter, com a colaboração dos órgãos e entidades da administração pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente (Sinima)” [4]. Importante lembrar que a constitucionalidade de ambas as normas foram confirmadadas pelo STF em ambito de sistema de controle concentrado, inexistindo, portanto, qualquer dúvida sobre a sua validade [5].
A despeito de seu inquestionável embasamento jurídico, é importante destacar que a decisão estabeleceu o rompimento com o paradigma histórico da falta de interoperabilidade entre dados fundiários e ambientais no Brasil, problema que persistia desde o Decreto 6.666/2008, que criou a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (Inde), mas limitou-se à interoperabilidade voluntária.
A ausência de regulamentação efetiva do artigo 21, XV da CF/88, que confere à União a competência de organizar a Geografia oficial do país, contribuiu para a fragmentação de dados entre os entes federativos. Essa lacuna impediu que o Brasil alcançasse um padrão mínimo de coordenação territorial, essencial tanto para o planejamento estratégico quanto para o enfrentamento de desafios ambientais, que são imensos em razão da complexidade ecológica, da dimensão territorial e do regime federativo de três níveis do pais. Com a decisão, essa inércia normativa é superada pela via jurisprudencial no âmbito do STF, devendo trazer importantes progressos ao país.
O reconhecimento da obrigatoriedade do uso do Sinaflor quebra resistências consolidadas, invariavelmente pautadas na regra “meus dados, minhas regras”. Órgãos [7] do Sisnama, sejam federais, estaduais, distritais ou municipais, gerem algumas centenas de sistemas geoinformacionais que pouco interoperam, oneram várias vezes a população com sistemas espelhados e, por terem variações entre si, não produzem a segurança técnica e jurídica necessária para que possamos tomar decisões geoinformadas. O STF, ao impor a integração de informações entre municípios, Distrito Federal, estados e União, inaugura uma nova era de governança territorial, em que a geografia oficial passa a ser utilizada como um instrumento de gestão obrigatório, mesmo com a omissão do Congresso Nacional que jamais cumpriu a sua missão de regulamentar o artigo 21, XV, CF. Por meio da geografia, o Sinaflor deverá promover o federalismo cooperativo ao integrar e coordenar os dados florestais e territoriais do país, pois uma base de dados divergente compromete a tomada de decisões e as próprias ações fiscalizatórias, já que abre margem para imprecisões.
Essa decisão também segue uma tendência global. Em países desenvolvidos, é padrão a utilização de bases de dados integradas, permitindo que informações geoespaciais sejam coletadas uma única vez e utilizadas em diversas aplicações [8]. Isso não apenas reduz custos operacionais, mas também garante maior precisão e transparência na gestão dos recursos ambientais. É com base na integração dessas informações que deve ocorrer o planejamento, a implementação e a reanálise das políticas públicas do setor haja vista a tão almejada busca pelo federalismo cooperativo em matéria de meio ambiente, previsto no artigo 23, III, VI e VII do caput e no parágrafo único da CF/88. Ao alinhar-se a essas práticas, o Brasil demonstra uma capacidade renovada de implementar soluções tecnológicas que promovam sustentabilidade e eficiência administrativa.
Não obstante, a decisão do STF também expõe desafios, que vai muito além da escolha judicial do Sinaflor como a plataforma que centralizará estas informações. Como ela interoperará os dados? Como será sua reutilização? Quais são seus dados abertos e categorias? Qual o conjunto normativo para se fazer download e reportar erros? (Vancauwenberghe, 2019). Na falta de uma “Diretiva INSPIRE” brasileira, norma que oferece na União Europeia todo o conjunto normativo para manusear dados abertos [9], essa decisão vem em um momento no qual o órgão que deveria se encarregar de liderar este tema, a Fundação IBGE, está sob forte questionamento institucional por parte de seu quadro técnico e, lamentavelmente, parece mais interessado em criar uma fundação paralela (IBGE+) do que em cumprir com a obrigação de liderar o provimento de geoinformação no país. De toda sorte, em razão da expressa previsão no Código Florestal, na LC 140 e na Lei 6.938/1981 [10], é possível disciplinar os procedimentos por meio de decreto.
O papel do STF como catalisador de mudanças institucionais merece ser destacado, e deve ser considado um grito para que a governança geoinformacional brasileira entre, definitivamente, no século 21. Afinal, o problema não é tecnologia, pois o Brasil conta com as melhores, mas a governança da geoinformação e, nesse quesito, estamos atrás de muitos países, inclusive do Sul Global. O STF e o ministro Flávio Dino estão de parabéns pela decisão na ADPF 743/DF, que inaugurou de fato o Direito à Geoinformação no Brasil, e que deverá ter outros desdobramentos positivos para a política ambiental e as políticas públicas de forma geral. Não é possível proteger um direito de todos e bem de uso comum, nos termos do art. 225, caput da CF/88, sem a integração da informação [11]. A única observação a se fazer, na decisão, é que de acordo com o artigo 13, § 2º da LC 140 “A supressão de vegetação decorrente de licenciamentos ambientais é autorizada pelo ente federativo licenciador”, de modo que o município só precisará de delegação quando a competência licenciatória for de outro nível federativo.
A obrigatoriedade do Sinaflor, que terá o prazo de 60 dias corridos para as adequações administrativas de praxe, cria um precedente para a implementação de outras soluções tecnológicas integradas no âmbito da administração pública, pois determina, de forma reversa mas clara, que existe o direito das cidadãs e cidadãos de serem geoinformados [12]. Embora essa decisão foque na questão ambiental e florestal, e (por que não dizer?) climática, é evidente que esse movimento aponta para um futuro em que a geografia oficial não será apenas um conceito formal, mas uma prática regulatória efetiva que suporte a tomada de decisões em todas as esferas de governo. É um emergente setor de infraestrutura e assim deve ser tratado, uma vez que as políticas públicas e a regulação econômica deve levar em conta tais informações. Cabe agora à sociedade e aos gestores públicos garantirem que esse avanço seja traduzido em práticas sustentáveis e eficientes, alinhadas às melhores tendências globais em gestão de informações geoespaciais.
[1] O SINAFLOR é um sistema jurídico-administrativo cuja finalidade é fazer o controle de vegetação e dos produtos florestais no país. Por meio dele, controla-se a origem, o transporte e a destinação desses protudos, e combate-se o desmatamento irregular. A matéria é regulamentada pela Instrução Normativa 21/2014 do Ibama, a qual já foi alterada pelas Instruções Normativas 9/2016 e 13/2017.
[2] Vale a pena transcrever o seguinte trecho da decisão:
A Lei Complementar nº 140/2011, além de delimitar as atribuições de cada ente federativo, determinou que a gestão da proteção ambiental seja realizada de forma cooperativa entre os diversos entes e órgãos envolvidos, objetivando harmonizar as políticas e ações administrativas
para evitar a sobreposição de atuação entre os entes federativos.
Soma-se a isto o fato do SINAFLOR ter sido criado pela Instrução Normativa n° 21, de 24 de dezembro de 2014, em observância dos arts. 35 e 36 da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, que dispõe, que “o controle da origem da madeira, do carvão e de outros produtos ou subprodutos florestais incluirá sistema nacional que integre os dados dos diferentes entes federativos, coordenado, fiscalizado e regulamentado pelo órgão federal competente do Sisnama” e “o transporte, por qualquer meio, e o armazenamento de madeira, lenha, carvão e outros produtos ou subprodutos florestais oriundos de florestas de espécies nativas, para fins comerciais ou industriais, requerem licença do órgão competente do Sisnama”.
Nesse passo, considerando a relevância do objeto destes autos e as imensas dificuldades administrativas relatadas, os princípios da proporcionalidade e da eficiência impõem a utilização do SINAFLOR pelos Estados e Municípios, viabilizando o controle, transparência e publicidade dos procedimentos ambientais.
Assim, com base no art. 139, IV, do Código de Processo Civil, DETERMINO que os Estados membros da Amazônia e do Pantanal reavaliem os atos de delegação de emissão de autorização de supressão de vegetação e, caso entendam pertinente a manutenção das delegações, estabeleçam expressamente que os municípios delegatários utilizem exclusivamente o SINAFLOR para emissão de ASV. Idêntica determinação é estabelecida para os Estados.
Fixo o prazo de 60 (sessenta) dias corridos para as eventuais adaptações administrativas. Findo tal prazo, fica vedada a emissão de ASV sem o uso do SINAFLOR, configurando-se ato absolutamente nulo.
(…)
Publique-se. Ciência à PGR.
Brasília, 21 de janeiro de 2025.
Ministro FLÁVIO DINO
Relator
[3] Sobre a ASV, o Código Florestal dispõe o seguinte:
Art. 26. A supressão de vegetação nativa para uso alternativo do solo, tanto de domínio público como de domínio privado, dependerá do cadastramento do imóvel no CAR, de que trata o art. 29, e de prévia autorização do órgão estadual competente do Sisnama. § 1º (VETADO). § 2º (VETADO). § 3º No caso de reposição florestal, deverão ser priorizados projetos que contemplem a utilização de espécies nativas do mesmo bioma onde ocorreu a supressão. § 4º O requerimento de autorização de supressão de que trata o caput conterá, no mínimo, as seguintes informações: I – a localização do imóvel, das Áreas de Preservação Permanente, da Reserva Legal e das áreas de uso restrito, por coordenada geográfica, com pelo menos um ponto de amarração do perímetro do imóvel; II – a reposição ou compensação florestal, nos termos do § 4º do art. 33; III – a utilização efetiva e sustentável das áreas já convertidas; IV – o uso alternativo da área a ser desmatada.
Art. 27. Nas áreas passíveis de uso alternativo do solo, a supressão de vegetação que abrigue espécie da flora ou da fauna ameaçada de extinção, segundo lista oficial publicada pelos órgãos federal ou estadual ou municipal do Sisnama, ou espécies migratórias, dependerá da adoção de medidas compensatórias e mitigadoras que assegurem a conservação da espécie
[4] A respeito do assunto, estabelece ainda a LC 140
Art. 8º. São ações administrativas dos Estados: (…) VII – organizar e manter, com a colaboração dos órgãos municipais competentes, o Sistema Estadual de Informações sobre Meio Ambiente; VIII – prestar informações à União para a formação e atualização do Sinima; (…).
Art. 9º. São ações administrativas dos Municípios: (…) VII – organizar e manter o Sistema Municipal de Informações sobre Meio Ambiente; VIII – prestar informações aos Estados e à União para a formação e atualização dos Sistemas Estadual e Nacional de Informações sobre Meio Ambiente; (…).
[5] O STF analisou a constitucionalidade do Código Florestal na ADC 42, na ADIN 4.901 e na ADIN 4937, e da LC 140 na ADI 4.757-DF
[6] UGEDA, Luiz. Direito administrativo geográfico: fundamentos na geografia e na cartografia oficial do Brasil. Brasília: Geodireito, 2017
[7] Poorthuis, A., Zook, M., Shelton, T., Graham, M., & Stephens, M. (2023). 17 Using Digital Social Data in Geographical Research. Key Methods in Geography, 278.
[8] GOODCHILD, M. F. (2010). Twenty Years of Progress: GIScience in 2010. Journal of Spatial Information Science, 1(1), p. 3-20 e WILLIAMSON, I. P.; RAJABIFARD, A.; FEENEY, M. E. F. (2003). Developing Spatial Data Infrastructures: From Concept to Reality. CRC Press.
[9] UGEDA, Luiz. A geografia, antes de mais nada, serve para mediar a paz pela infraestrutura de dados espaciais da geopolítica ao geodireito. Revista Eletrônica: Tempo-Técnica-Território/Eletronic Magazine: Time-Technique-Territory, 2019, 10.1: 51-51. Disponível em < https://www.researchgate.net/profile/Luiz-Ugeda/publication/340130059_A_GEOGRAFIA_ANTES_DE_MAIS_NADA_SERVE_PARA_MEDIAR_A_PAZ_PELA_INFRAESTRUTURA_DE_DADOS_ESPACIAIS_-_DA_GEOPOLITICA_AO_GEODIREITO/links/5e7a3a40a6fdcc57b7bb7225/A-GEOGRAFIA-ANTES-DE-MAIS-NADA-SERVE-PARA-MEDIAR-A-PAZ-PELA-INFRAESTRUTURA-DE-DADOS-ESPACIAIS-DA-GEOPOLITICA-AO-GEODIREITO.pdf>
[10] A Lei 6.938/1981, conhecida como Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), também alça o direito à informação ambiental a um patamar diferenciado
Art. 4º – A Política Nacional do Meio Ambiente visará: (…) V – à difusão de tecnologias de manejo do meio ambiente, à divulgação de dados e informações ambientais e à formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico; (…).
Art. 9º. São instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente: (…) VII – o sistema nacional de informações sobre o meio ambiente; (…) X – a instituição do Relatório de Qualidade do Meio Ambiente, a ser divulgado anualmente pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA; XI – a garantia da prestação de informações relativas ao Meio Ambiente, obrigando-se o Poder Público a produzi-las, quando inexistentes; (…)
[11] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 268
[12] JANKOWSKA, M.; PAWEŁCZYK, M. (2014). The right to geoinformation in the information society. In: Geoinformation, Law and Practice, 2014, p. 29.
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