Óbvio desvelado (mais um): Brasil presidencialista e emendas impositivas
27 de janeiro de 2025, 13h17
Há um acalorado debate jurídico — e político também — acerca do acerto ou não da decisão do STF em sede de medida cautelar nas ADIs 7.688, 7.695 e 7.697 (bem como em outras, a exemplo da ADPF 854, todas relatadas pelo ministro Flávio Dino) no que diz respeito, dentre outros temas, à suspensão da execução das denominadas emendas impositivas, que, segundo o Acórdão (j. 03/12/2024), devem assim permanecer “até que os poderes Legislativo e Executivo, em diálogo institucional, regulem os novos procedimentos conforme a presente decisão”.
O coautor deste escrito elaborou parecer a partir de consulta formulada pelo advogado Walfrido Warde, um dos patronos da ADI 7.697 (ver aqui o parecer do professor Streck). A temática e algumas das questões lá postas, bem como outras, serão aqui por nós retomadas para elucidação desse importante debate.
Importante destacar que a discussão em torno das emendas impositivas se relaciona não somente à execução orçamentária em termos de melhor ou pior técnica, mas à própria essência das escolhas constituintes e populares no que diz respeito ao regime democrático, à configuração da separação de poderes e ao sistema presidencialista de governo.
De início, é preciso considerar que a Constituição de 1988 adotou desde seu texto originário o presidencialismo enquanto sistema de governo, aprovando-o, na ocasião com o seu “pacote” de características clássicas. Ainda que com a força política dos defensores do parlamentarismo à época, foi assim a decisão da Assembleia Constituinte 1987-1988.
Não obstante, esta estabeleceu para ser realizado em 1993 plebiscito envolvendo a forma e o sistema de governo e, na ocasião, o povo brasileiro corroborou a decisão constituinte, votando amplamente favorável à continuidade da república presidencialista. Ainda, diga-se que no longínquo ano de 1963, a população brasileira também fora convocada a plebiscito acerca do tema e ali, na vigência da Constituição de 1946, também demonstrou sua maior simpatia pelo presidencialismo. [1] Para não falar que em toda a história republicana brasileira desde 1889, apenas por brevíssimo tempo (1961-1963), o país adotou o parlamentarismo como sistema de governo.
Ao contrário da estreita cooperação existente entre parlamento e governo no parlamentarismo, no presidencialismo há uma separação mais rigorosa entre os poderes do Estado, a começar pela legitimação pelo voto direto tanto da composição do parlamento, como da investidura do presidente da República em seu cargo.
As funções típicas de cada poder só excepcionalmente são atribuídas a outro e sempre a partir dos próprios balizamentos constitucionais, cabendo, portanto, a função de legislar ao legislativo e a de governar/executar/administrar ao executivo. Como afirmam Pegoraro e Rinella, no presidencialismo, “a estrutura inteira é fundada no princípio da separação dos poderes bastante rígida: de uma parte, o Legislativo, com a função precípua de produzir leis; [a] da outra, o Executivo, encarregado de dar implementação à legislação no âmbito da sua ação política”.[2]
Desse modo, embora possa o poder legislativo participar do e fiscalizar o orçamento, principalmente em seu processo legislativo especial, cabe, por princípio, ao poder executivo a sua execução, em consonância com a Constituição e com o programa político apresentado à sociedade durante a campanha eleitoral, escolhido pela maioria do eleitorado.
Obviamente que não estamos a falar aqui que o princípio da separação de poderes se estabelece atualmente nos mesmos moldes do que foi pensado por Montesquieu ou Madison no século 18. Há uma hipercomplexificação da sociedade, o que denota respostas diferenciadas do sistema político-jurídico como um todo para preservação da democracia e dos direitos fundamentais. Todavia, o elemento nuclear do princípio da separação de poderes permanece hígido na Constituição, a saber, o controle do poder pelo poder. A mesma pessoa — ou o mesmo ente — não deve acumular as funções de legislar, administrar e julgar. Trata-se de um mecanismo de contenção do arbítrio. A atuação de cada poder deve estar restrita ao espaço de legitimidade constitucionalmente demarcado, sob pena de indevida — e inconstitucional — usurpação de competência.
Essas premissas são cruciais para a compreensão do sistema orçamentário nacional. Conforme a Constituição, é tarefa indelegável do presidente da República elaborar as três peças que compõem o planejamento orçamentário — plano plurianual (PPA), diretrizes orçamentárias (LDO) e orçamento anual (LOA) (artigo 84, XXII, CR). Não há aqui interferência do parlamento. O modelo orçamentário é concentrado no poder executivo: as políticas públicas e os investimentos são, em sua maior parte, definidas pelo presidente da República. [3]
A competência, pois, para executar o orçamento é do poder executivo, evidentemente com base nas diretrizes impostas pela lei orçamentária aprovada pelo legislativo, mas cabendo ao executivo materializar os investimentos públicos através de atos administrativos. Pela simples justificativa de que é deste último poder do Estado a competência para exercer a direção superior da administração pública federal (artigo 84, II, CR).
Como as despesas obrigatórias têm rubrica fechada, a grande controvérsia do debate sobre as emendas impositivas recai sobre as despesas discricionárias, que têm como fundamento normativo a própria lei orçamentária e estão sujeitas a possíveis contingenciamentos. Considerando que a previsão e materialização depende de uma escolha do governo, essas despesas representam um instrumento indispensável na realização de políticas públicas.
Não por outra razão, também são chamadas de despesas de custeio e investimento, uma vez que são empregadas no financiamento de programas sociais, obras de infraestrutura e programas de incentivo. Dizem respeito, portanto, a uma típica atividade governamental que, baseada na escolha feita nas eleições em relação ao programa do governo eleito, irá direcionar as referidas despesas discricionárias aos projetos inspirados no que o presidente da República defendeu perante o eleitorado que majoritariamente o escolheu.
Não se trata obviamente de ausência de freios à ação do executivo. O controle do poder pelo próprio poder justifica, por exemplo, a existência de um processo legislativo especial para a legislação orçamentária, com a participação parlamentar e a aprovação desta pelo Congresso Nacional. Por meio desta o legislativo pode fiscalizar o executivo e pressioná-lo a atender demandas das variadas bases parlamentares existentes.
Aliás, no regime orçamentário original de 1988, nenhum gasto público poderia ser realizado sem consenso entre executivo e legislativo, o que exigia um diálogo interinstitucional entre esses dois poderes para implementação dos projetos políticos tanto do executivo como dos parlamentares e facilitava a governabilidade através das coalizões, indispensáveis na intrincada dinâmica política nacional, nos termos do que Sérgio Abranches chamou de “presidencialismo de coalizão”, ainda em 1988. [4]
Inconstitucionalização do fenômeno orçamentário
Entretanto, as Emendas Constitucionais 86/2015, 100/2019, 105/2019 e 126/2022 trouxeram drástica mudança desse quadro. As alterações nos artigos 165, 166 e 198 da Constituição conferiram impositividade às emendas parlamentares ao orçamento, afastando a discricionariedade do Poder Executivo na fase da execução orçamentária. Começava, ali, a inconstitucionalização do “fenômeno orçamentário”, com a fagocitação de destinações que seriam do Executivo. Isto é, se antes as emendas ao orçamento apenas autorizavam as despesas discricionárias — e, portanto, cabia ao poder executivo executá-las ou contingenciá-las —, a reforma constitucional impõe ao executivo o dever — absoluto — de realizá-las.
As referidas ECs não envolvem, como afirmou o coautor deste texto em seu parecer, simples alterações em regras orçamentárias. Muito mais do que isso, estamos claramente ante uma mudança na dinâmica entre os Poderes. Grave. Muito grave. Após a reforma constitucional, criou-se uma terceira espécie de despesa na lei orçamentária — além das despesas obrigatórias e das despesas discricionárias, o orçamento agora engloba despesas discricionárias de execução impositiva —, um “oxímoro constitucional”. Estava nascendo o ornitorrinco orçamentário.
A inconstitucionalidade não está em si no instituto das emendas parlamentares ao orçamento. Elas representam um importante recurso na construção de coalizões e, como bem explicitado pela ministra Rosa Weber em seu voto na ADPF 854, viabilizam aos congressistas “atender diretamente as reivindicações mais concretas e urgentes da população que representam, contemplando a dotação financeira necessária ao atendimento de suas necessidades”.
A questão central, no entanto, é que a obrigatoriedade da execução de tais emendas parlamentares fulmina com a participação do poder executivo na definição das despesas discricionárias. O parlamento capturou o controle de todo o ciclo orçamentário. [5] É, pois, na impositividade que reside a inconstitucionalidade.
Referida impositividade configura um estado de coisas inconstitucional no qual o Congresso usurpa considerável parte das competências atribuídas pela Constituição ao presidente da República, abalando o sistema de freios e contrapesos que, segundo a Carta em seu artigo 60, § 4º, configura cláusula pétrea insuscetível de alteração via emendas constitucionais.
E Dino nos reapresenta o presidencialismo
Foram todos pontos bem percebidos pelo ministro Flávio Dino ao conceder a medida cautelar (referendada à unanimidade pelo Plenário da Corte) no âmbito das ADIs 7.688, 7.695 e 7.697. “É uma grave anomalia”, diz o ministro, “que tenhamos um sistema presidencialista, oriundo do voto popular, convivendo com a figura de parlamentares que ordenam despesas discricionárias”, agindo “como se autoridades administrativas fossem”. Acertadamente, assevera ainda que “o equivocado desenho prático das emendas impositivas gerou a ‘parlamentarização’ das despesas públicas sem que exista um sistema de responsabilidade política e administrativa ínsito ao parlamentarismo”.
É como se reuníssemos no Brasil o que há de pior dos dois sistemas de governo: um apoderamento de recursos a serem aplicados discricionariamente pelo parlamento, mas sem a correspondente responsabilidade deste poder pelo governo e administração do Estado perante a população. Como na alegoria da “construção” peru, a fusão do pavão e da águia deu nisso. Não voa e é esquisito.
O mais curioso é que tal situação não existe sequer nas democracias parlamentaristas mundo afora nas quais o parlamento é corresponsável por governar junto com o primeiro-ministro. Conforme estudo comparativo de Marcos Mendes acerca da questão entre os países da OCDE, o Brasil é de longe o país em que a alteração da despesa discricionária pelo parlamento tem o mais alto percentual, chegando ao patamar de 24,2% do total. [6] E até 2019, esse percentual não chegava a 8%…
Ao contrário do que se discutiu até há poucos anos acerca de um hiperpresidencialismo na América Latina, além da visão de que o presidente da República teria poderes “imperiais”, o que se viu no Brasil, a partir dessas emendas e de outras questões que não são objeto do presente texto, foi o enfraquecimento institucional do poder executivo em suas funções, sendo estas consideravelmente apropriadas pelo Congresso Nacional sem — repita-se — a correspondente responsabilização política pelos resultados das políticas públicas. Nesse caso, iria até além do que a coautora deste ensaio disse em outra oportunidade acerca de uma “parlamentarização” do presidencialismo brasileiro.[7]
Perigo do orçamento em fatias e descontrole de dotações
Para além das questões jurídicas, o desdobramento concreto dessa usurpação inconstitucional das competências do executivo via emendas impositivas é um substancial caos administrativo, além de desperdício de recursos públicos, para não falar de facilitação da corrupção e de outros problemas. Em importante texto a respeito da dinâmica concreta dessa configuração orçamentária atual no Brasil, Hartung, Mendes e Giambiagi destacam que há nesse particular uma questão básica de coordenação de decisões. Destacam, dentre outras coisas, que “decisões isoladas e descoordenadas aumentam exponencialmente a chance de haver estradas apenas parcialmente asfaltadas, excesso de provisão de serviços em um município e falta em outro”. [8]
Continuam os autores: “Sofrem muito, nesse contexto, os serviços que dependem da coordenação entre níveis diferentes de governo. Na saúde, por exemplo, a eficiência cresce se for estruturada uma rede de assistência, com postos de saúde nas localidades menos populosas e hospitais de referência estrategicamente localizados geograficamente para atender diversos municípios. Isso requer planejamento e coordenação entre níveis de governo. Com cada deputado e senador decidindo construir hospitais onde acharem melhor, o sistema perde funcionalidade e os custos totais disparam.”
Na mesma linha, o alerta de Fernando Scaff. Pode até ser legítimo que sejam destinadas verbas da União diretamente ao Hospital do Câncer de Barretos, em São Paulo, mas isso pode estar desconectado à política pública estadual ou municipal, que pode estar com falta de verbas para vacinação infantil. É o problema de alocação de recursos no interesse individual dos parlamentares, e não de forma conectada às políticas públicas estabelecidas, violando o tratamento isonômico preconizado por um orçamento efetivamente republicano. [9]
Em tal perspectiva, se a disponibilidade de recursos só se reduz e o seu emprego é cada vez mais descoordenado, não se pode esperar outro resultado senão o pouco espaço para investimentos em infraestrutura e políticas sociais, dificuldade para cumprir o piso constitucional da saúde e da educação, bem como aumento do incentivo ao abandono da âncora fiscal, como se fez constar no parecer de Streck sobre a questão. Essa é, aliás, também a conclusão do Tribunal de Contas da União em relatório Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025, alertando que o aumento das despesas obrigatórias e a compressão das despesas discricionárias em patamar relevante cria o risco efetivo de um shutdown da máquina pública — isto é, o comprometimento da continuidade de projetos e políticas públicas. [10]
Um último ponto: para além de todos os problemas levantados, as emendas impositivas também atacam de modo consistente o princípio democrático e o pluralismo político. Com elas, o orçamento da União é instrumentalizado para atender interesses eleitorais ou pessoais dos parlamentares em detrimento do conjunto da sociedade. Não por acaso, a Folha de S.Paulo fez um levantamento no qual constata haver uma relação direta e crescente entre a quantidade média de recursos de emendas parlamentares por eleitor e a taxa de reeleição do chefe do executivo. Segundo os dados, 98% dos prefeitos dos municípios mais beneficiados com emendas parlamentares nos últimos quatro anos foram reeleitos. [11]
Ou seja, dando o nome que as coisas têm: o dinheiro público está sendo utilizado por congressistas para capturar a máquina pública, o que configura um ataque frontal à paridade de armas no jogo eleitoral, tornando o Estado brasileiro significativamente menos democrático, pois passa a ser muito difícil remover do poder os parlamentares e partidos que controlam as emendas ao orçamento.
Como destacado pelo coautor desse texto em seu já referido parecer, forma-se desse modo um regime apenas aparentemente competitivo, pois, de um lado, o governo eleito pelo voto popular não detém mecanismos para efetivar o projeto político escolhido nas urnas; e do outro, o desequilíbrio de instrumentos políticos afeta a legitimidade do próprio voto popular, impulsionando indevidamente um grupo na disputa eleitoral.
Em conclusão, espera-se que a decisão de natureza cautelar do Supremo Tribunal Federal possa ser confirmada no mérito e promova um “freio de arrumação” no presidencialismo brasileiro, fazendo com que seja reconhecido a inconstitucionalidade desse tipo de apropriação do orçamento e se restaure a separação de poderes tal como constitucionalmente configurada para que os poderes possam exercer o controle mútuo devido, sem supremacias desmedidas de um sobre o outro, nem usurpação de funções…
[a] Veja-se que a “cultura dos precedentes” coloca em dúvida essa premissa, uma vez que os Tribunais Superiores editam teses gerais e abstratas, com valor superior às leis feitas pelo Parlamento.
[1] GALINDO, B. Impeachment en Brasil Pos-Dilma: ¿Ulises desatado por Hermes? El “canto de las sirenas” hermeneutico-constitucional. Revista Videre, vol. 10, nº 19. Dourados: UFGD, p. 401, 2018.
[2] PEGORARO, Lucio & RINELLA, Angelo. Sistemas constitucionais comparados, vol. 1. São Paulo: Contracorrente, p. 593, 2021.
[3] KANAYAMA, R. L.; CORDEIRO RODRIGUES, D. L. A política e o orçamento público: desequilíbrios no fiel da balança. Revista do Ministério Público de Contas do Estado do Paraná, [S. l.], v. 1, n. 1, 2014.
[4] ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de ciências sociais, vol. 31, nº 1. Rio de Janeiro, 1988.
[5] GIAMBIAGI, Fábio; HARTUNG, Paulo; MENDES, Paulo José. As Emendas Parlamentares como Novo Mecanismo de Captura do Orçamento. Conjuntura Econômica: vol. 75, n. 9 (set 2021). FGV.
[6] MENDES, Marcos. Emendas parlamentares e controle do orçamento pelo legislativo: uma comparação do Brasil com países da OCDE. Disponível em: https://institutomillenium.org.br/wp-content/uploads/2023/05/millenium-paperemendas-parlamentares-e-controle-do-orcamento-pelo-legislativo.pdf.
[7] GALINDO, B. Impeachment en Brasil Pos-Dilma: ¿Ulises desatado por Hermes? El “canto de las sirenas” hermeneutico-constitucional. Revista Videre, vol. 10, nº 19. Dourados: UFGD, p. 400, 2018.
[8] HARTUNG, Paulo; MENDES, Marcos & GIAMBIAGI, Fábio. As emendas de relator e as narrativas falaciosas, 2022. Disponível em https://blogdoibre.fgv.br/posts/emendas-de-relator-e-narrativas-falaciosas, acesso: 12/01/2025.
[9] SCAFF, Fernando Facury. Novidades sobre o orçamento quase-secreto das emendas parlamentares. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jul-30/novidadessobre-o-orcamento-quase-secreto-das-emendas-parlamentares/. Tb. SCAFF, Fernando Facury. Orçamento republicano e liberdade igual: ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 221.
[10] TCU. Acórdão 1679/2024, Plenário, Relator Antônio Anastasia. Sessão: 21/08/2024.
[11] Dos 116 prefeitos dos municípios mais turbinados com emendas parlamentares ao orçamento, 114 se reelegeram. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/10/98-dos-prefeitos-mais-turbinados-com-emendas-se-reelegem.shtml, acesso: 12/01/2025.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!