Justiça Tributária

Interpretação do Direito Tributário após a EC 132/2023

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  • é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

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27 de janeiro de 2025, 8h00

O ano de 2024 marcou o lançamento da nova edição de um dos livros clássicos da literatura tributária nacional, o “Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário”, do professor Ricardo Lobo Torres, que tive a honra de atualizar [1]. Um dos temas em que o saudoso mestre insistia era o reconhecimento de que na interpretação jurídica não há uma prevalência apriorística de critérios interpretativos. Em outras palavras, como defendia Lobo Torres, a interpretação se dá nos marcos do pluralismo metodológico [2].

Diante de um texto normativo, o intérprete usualmente vai considerar diversos elementos distintos no processo de criação da norma jurídica. Usualmente, tem-se como ponto de partida a linguagem em seus aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos. Contudo, se o estudo da linguagem fosse suficiente, a interpretação jurídica seria melhor estudada nas faculdades de Letras do que de Direito.

Juntamente com a linguagem, o intérprete vai considerar (1) os valores e princípios que estão implícita ou explicitamente previstos no ordenamento jurídico, principalmente aqueles radicados na Constituição; (2) os contextos relevantes para a interpretação, ou seja, o contexto no qual o texto normativo foi editado (“contexto estático”) e aquele no qual ocorre a sua interpretação/aplicação (“contexto dinâmico”); (3) a história da formação e deliberação do texto normativo, com especial atenção a trabalhos preparatórios que foram tornados públicos; (4) as finalidades objetivamente observáveis da regulação jurídica, tanto no momento de sua edição quanto no momento da interpretação/aplicação, uma vez que pode ter se alterado no tempo; (5) a inserção do texto normativo no ordenamento jurídico como um todo, levando em conta a interação do dispositivo com outras regulações existentes com as quais deva se relacionar de forma coerente; (6) as consequências concretas das diferentes interpretações possíveis do texto normativo; (7) a relação do texto normativo com conhecimentos típicos de outras áreas do conhecimento, como a economia, a sociologia, a contabilidade, etc.

Diante da variedade de elementos relevantes para a interpretação de textos normativos, muitos dos quais abertos a valorações subjetivas que tornam o processo interpretativo aberto e de difícil objetivação, percebe-se que a interpretação jurídica dificilmente é controlável metodologicamente, o que torna extremamente relevante a externalização dos raciocínios jurídicos. Em outras palavras, o que se exige do intérprete é transparência e coerência de seu processo argumentativo, sendo muito difícil o controle metodológico da arte de interpretar.

O foco desta coluna, contudo, não é a metodologia jurídica em si. A questão sobre a qual vimos refletindo e que gostaríamos de tratar neste breve texto é a metodologia jurídica e a interpretação do Direito Tributário após a Emenda Constitucional nº 132 (EC 132).

Em linha com o que defendemos acima, a reforma tributária não trouxe uma modificação ao pluralismo metodológico que rege a interpretação dos textos normativos tributários – com exceção do exótico artigo 111 do Código Tributário Nacional. Nada obstante, a EC 132 certamente trouxe alterações aos elementos de interpretação e seu peso relativo, como passamos a analisar.

Tributação, Valores e Princípios após a EC 132

Um dos aspectos relevantes da EC 132 é que ela tornou explícitos alguns valores e princípios que, mesmo que já fossem inferidos do texto constitucional desde 1988, passaram a ter um papel mais destacado após a reforma tributária [3].

Spacca

Por exemplo, embora aspectos de justiça distributiva fizessem parte da nossa tradição constitucional desde 1988, seu reconhecimento muitas vezes demandava uma leitura do texto constitucional em sua inteireza. A EC 132 não só incluiu a justiça tributária entre os princípios que devem ser observados pelo Sistema Tributário Nacional (artigo 145, § 3º, da Constituição Federal), como incluiu diversos outros dispositivos que buscam estabelecer maior justiça na distribuição da carga tributária [4].

Temos insistido que os princípios que foram previstos neste § 3º têm a característica de deverem ser observados. Essa é uma grande diferença entre princípios implícitos, cuja aplicação é ponderada pelo intérprete caso a caso, e os novos princípios que devem ser observados. A utilização do verbo dever torna a inobservância ou a derrotabilidade destes princípios muito mais difíceis do que eram antes da EC 132.

Tomemos como outro exemplo o princípio da defesa do meio ambiente. É lógico que a proteção do meio ambiente já era um valor constitucional que poderia orientar medidas de política tributária. Contudo, parece-nos que é bem diferente termos um dispositivo que estabelece que o Sistema Tributário Nacional deve observar o princípio da defesa do meio ambiente.

Dessa forma, cremos que de uma perspectiva axiológica, a EC 132 vai impor ao intérprete algumas amarras antes inexistentes, consequência direta de se ter trocado nossa tradição de princípios implícitos por princípios explícitos, com a previsão de que devem ser observados pelo Sistema Tributário Nacional.

Ordem de precedência dos princípios

Um aspecto relevante de se ter incluído na Constituição um catálogo de princípios relaciona-se à interação entre os princípios que estão agora previstos de forma explícita e os demais que seguem sendo princípios implícitos.

Em um texto anterior, publicado durante a tramitação da reforma tributária no Congresso (aqui), sustentei, por exemplo, que não teria cabimento um rol de princípios do Sistema Tributário Nacional que não incluísse a segurança jurídica, que certamente é um dos pilares da Constituição Tributária. Como a segurança jurídica não foi incluída no novo § 3º do artigo 145, o fato é que agora temos uma listagem de princípios que devem ser observados pelo Sistema Tributário Nacional, enquanto a segurança jurídica segue sendo um princípio implícito, cuja aplicação será ponderada caso a caso.

Pensemos num exemplo em que a aplicação concreta do princípio da defesa do meio ambiente gere uma quebra de expectativas legítimas criadas por um ato do Estado. A defesa do meio ambiente, redigida na Constituição como um princípio que deve ser observado, terá precedência sobre a segurança jurídica?

Elemento genético e os desafios da sua utilização

Um aspecto que, acredito, irá pautar os debates sobre a interpretação da EC 132 – e da Lei Complementar nº 214/2025 (LC 214) e outras que venham a ser editadas – será a utilização do elemento genético de interpretação, principalmente dos trabalhos preparatórios que resultaram nestes diplomas normativos.

É inevitável que os intérpretes busquem corroborar suas posições a respeito dos novos textos normativos com seus trabalhos preparatórios. Ora, eles serão enaltecidos, ora rejeitados como quase irrelevantes. Enfrentaremos um debate que jamais tivemos.

É verdade que é razoavelmente comum que, principalmente na advocacia – pública e privada ―, se utilize exposições de motivos para justificar ou rejeitar um argumento. Contudo, nada comparável ao que testemunharemos com esta reforma tributária.

Estamos vivendo um momento único na história tributária brasileira, comparável, segundo vemos, apenas à edição da Emenda Constitucional nº 18/1965 e a publicação da Lei nº 5.172 em 1966, que viria a ser denominada Código Tributário Nacional a partir de 1967.

Dessa forma, os trabalhos preparatórios da reforma tributária são comparáveis – senão em qualidade técnica, mas em relevância – apenas àqueles que antecederam a edição do CTN. Contudo, provavelmente a distância histórica faz com que os trabalhos preparatórios do Código Tributário Nacional tenham pouca ou nenhuma relevância persuasiva nos dias de hoje.

Certamente este será um elemento de interpretação que deixará de ter uma relevância secundária – se é que chegava a ter alguma importância – para se tornar um dos protagonistas do debate tributário no Brasil.

Interpretação teleológica e os objetivos da reforma tributária

Há uma conexão inevitável entre os elementos axiológicos e teleológicos de interpretação. Afinal, em larga medida os fins de uma regulação devem estar alinhados com os valores e princípios que pautam o ordenamento jurídico.

Durante toda a tramitação da reforma tributária, alguns objetivos como simplificação, transparência e neutralidade foram ditos de forma reiterada. Mais para o fim dos debates sobre a Proposta de Emenda Constitucional nº 45, a distribuição justa da carga tributária passou a ocupar espaço de destaque, juntamente com debates sobre mecanismos para reduzir a regressividade que marca nosso sistema tributário.

Esses comentários nos remetem, novamente, ao § 3º do artigo 145 da Constituição Federal. Este dispositivo pode ser visto como uma espécie de pauta de objetivos centrais da EC 132. Ele, juntamente com o § 4º, que trouxe um “princípio de não regressividade”, concretiza todos os principais pilares sobre os quais o Sistema Tributário Nacional está baseado e certamente passará a exercer um papel de vetor interpretativo dos textos normativos fiscais.

Aplicação dos ‘novos’ princípios, valores e fins no tempo

Uma discussão interessante é como os intérpretes deverão considerar a nova pauta axiológica e finalística do Sistema Tributário Nacional no tempo. Podemos afirmar, sem muito medo de errar, que simplificação, transparência, cooperação e justiça tributária são princípios constitucionais implícitos na Constituição desde 1988. A defesa do meio ambiente, se não era um princípio tributário, era certamente um bem jurídico protegido pelo texto constitucional.

Contudo, como apontamos, é diferente a interpretação de um princípio implícito em comparação com a interpretação/aplicação de um princípio redigido como uma diretriz que deve ser observada pelo Sistema Tributário Nacional.

Peguemos o exemplo mais óbvio da defesa do meio ambiente. Ela é um princípio do Sistema Tributário Nacional apenas a partir da entrada em vigor da EC 132, ou a interpretação do ordenamento jurídico-tributário precedente já deve se pautar por este princípio?

De uma perspectiva interpretativa, parece-nos que o princípio da defesa do meio ambiente estabelece uma ordem de precedência obrigatória sobre as normas jurídicas que podem ser criadas a partir de textos normativos. Havendo mais de uma interpretação possível, caso uma delas tenha uma externalidade ambiental negativa – por exemplo, concedendo um incentivo fiscal para uma atividade econômica poluidora –, a interpretação mais alinhada com a defesa do meio ambiente deve prevalecer.

A questão é: este é um critério de interpretação válido para textos normativos que entrem em vigor após a EC 132, ou a legislação tributária precedente deverá passar a ser interpretada com base nestes mesmos critérios?

Dentro da noção de interpretação que sustentamos, nos marcos do pluralismo metodológico, certamente a previsão expressa da defesa do meio ambiente na Constituição gerará efeitos no campo da interpretação do Direito Tributário como um todo. Contudo, parece-nos ser possível defender que, antes da EC 132, o STN não devia observar o princípio da defesa do meio ambiente.

Interações entre fontes normativas

Aspecto interessante, de uma perspectiva sistemática, será considerar como a EC 132 se relacionará com as leis complementares que regulamentarão alguns de seus dispositivos.

Já chamamos atenção para este aspecto em outra oportunidade (aqui), destacando que nossa tradição jurídico-tributária se desenvolveu, ao longo dos anos, alicerçada em uma rigidez constitucional forte, que restringia sobre maneira o papel das leis complementares. Dessa forma, em termos lógico-hierárquicos, havia uma preocupação com a delimitação conceitual dos marcos constitucionais, a qual servia de baliza para controle das leis infraconstitucionais.

Nesse contexto, as leis complementares tinham um alcance restrito, sendo constantemente confrontadas com o que seriam limites constitucionais imanentes que não poderiam ser ultrapassados.

Parece-nos que a EC 132 foi elaborada tendo como ponto de partida uma competência mais ampla do legislador complementar, embora tenhamos que aguardar e acompanhar como este tema será avaliado pelo Poder Judiciário no futuro.

A questão, aqui, é se a relação entre as leis complementares regulamentadoras da EC 132 terão com esta uma relação estanque e hierarquizada, ou se será estabelecida uma relação hermenêutica circular na qual a Constituição Federal sirva de referência para a interpretação das leis complementares, enquanto estas igualmente serão consideradas para a interpretação da Constituição.

Embora não seja o mais comum em nossa tradição, temos experiência com este tipo de relação circular entre a Constituição Federal e a regulação infraconstitucional. É o que aconteceu, por exemplo, com a determinação da materialidade do Imposto de Renda. Afinal, o dito “conceito constitucional de renda” foi construído a partir do CTN.

É bem verdade que neste caso o CTN precedeu a Constituição Federal de 1988, de modo que se poderia sustentar que esta incorporou um conceito pré-existente. No caso da EC 132 há uma precedência cronológica da Constituição. De todo modo, um desafio interpretativo interessante será estabelecer a relação entre a Constituição Federal e a lei complementar que pretender dar concretude aos seus dispositivos.

Interações entre a regulação do IBS/CBS e os demais tributos

Outro aspecto que os intérpretes terão que considerar é a relação potencial das novas regras – constitucionais e infraconstitucionais – referentes ao IBS/CBS com aquelas relacionadas a outros tributos.

Temos um exemplo interessante nas regras sobre responsabilidade tributária. O IBS e a CBS têm no § 3º do artigo 156-A da Constituição Federal uma nova base constitucional para a  sujeição passiva dos referidos tributos, a qual previu que “lei complementar poderá definir como sujeito passivo do imposto a pessoa que concorrer para a realização, a execução ou o pagamento da operação, ainda que residente ou domiciliada no exterior”.

Como apontamos, este dispositivo estabeleceu um novo um marco constitucional para a sujeição passiva do IBS e da CBS. Contudo, qual será seu papel na interpretação das regras sobre a sujeição passiva de outros tributos? Consideremos a sujeição passiva de não residentes, expressamente prevista no § 3º do artigo 156-A da Constituição Federal: seria possível, por exemplo, uma lei infraconstitucional prever a sujeição passiva direta de um não residente em relação ao Imposto de Renda? Qual o efeito deste novo dispositivo em relação à interpretação das balizas estruturais dos demais tributos? O § 3º do artigo 156-A da Constituição Federal significa que o ordenamento jurídico brasileiro autoriza a incidência tributária direta sobre não residentes – para qualquer tributo – ou seria esta uma exceção aplicável especificamente ao IBS e à CBS?

Conclusão

Metodologicamente, o Direito é antimetodológico. Não há um método apriorístico para a construção de normas a partir de textos, mas sim uma variedade de elementos que são levados em conta pelo intérprete em sua atividade. A EC 132, portanto, não traz uma mudança metodológica à interpretação do Direito Tributário. Contudo, acreditamos que a reforma promovida pela referida emenda constitucional trará uma alteração importante nos elementos de interpretação e na ordem de prioridade dos argumentos utilizados pelos intérpretes na conversão de textos normativos em normas jurídicas.

 


[1] TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024.

[2] TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024. p. 144-156.

[3] Sobre o tema, ver: GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André. Vetores do Sistema Tributário Nacional após a EC n. 132. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 56, 2024, p. 752-780.

[4] Ver: ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024. p. 107-110.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Uerj, livre-docente em Direito Tributário pela USP, diretor vice-presidente da ABDF, advogado e parecerista.

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