O Decreto nº 12.341/2024 e o barulho de uma crítica atrasada
26 de janeiro de 2025, 15h12
No final de dezembro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) publicou o Decreto nº 12.341/2024, complementado por três portarias (nº 855, 856 e 857) lançadas no dia 17 de janeiro. As normativas, que têm por objeto a regulamentação da Lei nº 13.060/2014 e o “uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública”, tão logo publicadas, fizeram bastante barulho.
Após o decreto, e antes das portarias, governadores da oposição reuniram-se em crítica, afirmando que a medida beneficiaria o crime organizado e bloquearia a autonomia dos estados, enquanto governadores da ocasião, por sua vez, saíram em defesa do documento, pontuando que a iniciativa “reafirma a centralidade da prudência, do equilíbrio e do bom senso no exercício da atividade policial”.
Independente dos discursos inflamados pela tração eleitoral que a pauta da segurança pública garante a quem a invoca, fato é que, se na arena política houve todo esse agito, no campo jurídico, o cenário foi de relativa calmaria.
Isso porque, se bem notar, o decreto pouca coisa altera em termos normativos e dogmáticos com relação às já estabelecidas diretrizes profissionais endereçadas aos agentes de segurança pública e àquilo que se convencionou a chamar de “doutrina do ‘uso diferenciado da força'”, cuja premissa parte da noção de que “a força deverá ser utilizada de forma diferenciada, com a seleção apropriada do nível a ser empregado, em resposta a uma ameaça real ou potencial, com vistas a minimizar o uso de meios que possam causar ofensas, ferimentos ou mortes” (artigo 3º, do Decreto nº 12.341/24, e artigo 7º, da Portaria nº 855/25).
Tradição do Brasil
Sejam criticadas ou elogiadas, previsões como essas não fogem muito do que já se há juridicamente em vigência no país. E, embora bastante desconhecida, a verdade é que o Brasil — ao menos no papel — já tem uma certa tradição nessa matéria.
Essa tradição inicia-se com tratados internacionais dos quais o Brasil se torna signatário: primeiro, com o “Código de Conduta para Encarregados da Aplicação da Lei” (CCEAL), de 1979; e, depois, com os “Princípios Básicos do Uso da Força e Armas de Fogo” (PBUFAF), de 1990. Segue, no plano interno, com a Portaria Interministerial nº 4.226, de 2010 (agora revogada com a Portaria nº 855), e, mais tarde, com a Lei Federal nº 13.060, de 2014, sobre uso de armamento de menor potencial ofensivo.
E é exatamente essa lei que o decreto do ministro Ricardo Lewandowski agora visa a regulamentar, e, não por outra razão, todos esses diplomas da nossa tradição normativa sobre o uso da força e armamento têm ali sua digital.
A principiologia do decreto (artigo 2º), com ideia de legalidade, necessidade, proporcionalidade e razoabilidade, por exemplo, pode ser extraída da lei de 2014 (artigo 2º), da Portaria de 2010 (item 2 do anexo I) e do CCEAL (artigo 3º), assim como prescrições mais concretas, como a tão criticada vedação de tiro contra pessoa desarmada em fuga (artigo 3º, §3º, I e II, do Decreto, e artigos 8º, § 1º, I, e II, e 10, I, ‘a’ e ‘b’, da Portaria 855), além de estar em consonância com a jurisprudência constitucional de outros Estados democráticos (SCOTUS, “Tennessee vs. Garner”, 1985), em nada se diferem do que há na Lei nº 13.060 (artigo 2º, parágrafo único), no 9º Princípio dos PBUFAF e na então Portaria Interministerial (item 4 do anexo I).
Comitê de monitoramento do uso da força
Dessa forma, ainda que o Decreto nº 12.341/24 e suas Portarias tenham, de fato, atualizado e aprimorado a matéria, bem como trazido algumas importantes novidades a ela — tais como a criação do “Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força” (artigo 8º do Decreto e Portaria nº 856) e a vinculação de repasses orçamentários federais à observância às normas da Lei e do Decreto (artigo 9º) —, as normativas não deveriam ter gerado a surpresa e o tumulto que causaram na opinião pública, nas redes sociais e nas disputas políticas. Afinal, a despeito das inovações organizacionais quanto aos fundos e ao comitê, nada de substancial se alterou nos protocolos de atuação policial em si. Boa parte dos enunciados relativos a esses procedimentos da aplicação da lei, inclusive, contam com redações muito próximas ou até mesmo idênticas ao que já se havia sobre o tema.
Também não deveria gerar surpresa o fato de que Lewandowski seria simpático à pauta e que buscaria robustecer essa tradição normativa alinhada aos direitos civis em sua gestão frente ao MJSP. Olhares mais atentos podem lembrar que, quando ministro do STF, Lewandowski votou pela constitucionalidade da Lei nº 13.060/14, que hoje, dez anos depois da sua vigência, regulamenta. Na ocasião do julgamento da ADI nº 5.243, o ministro consignou que “essa lei, no fundo — e é uma lei benfazeja, sob todos os aspectos —, dá concreção, dá efetividade, ao direito à vida e à segurança das pessoas, tal como consignado na nossa Constituição e nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil” (11/04/2019).
Assim, a única surpresa que acaba restando desse episódio é, na verdade, quanto à revolta atrasada de alguns segmentos políticos e da segurança pública que se posicionam contrários ao Decreto nº 12.341/24 e à Portaria nº 855/25, por reputarem como “inovadoras” (e negativas) suas diretrizes para o uso da força e de armamentos, enquanto, na realidade, trata-se de previsões contidas em marcos normativos nacionais vigentes já há 15 anos. Esse é o espanto! Se agentes de segurança pública desconhecem essa tradição, que nasceu e foi cunhada por uma concepção liberal, de garantias de primeira geração, contra possíveis abusos do poder estatal, o que está sendo aplicado nas ruas?
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