Embargos Culturais

Fernando Pessoa e a inutilidade das revoluções

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26 de janeiro de 2025, 8h00

Há uma antiga discussão em teoria literária relativa ao engajamento do escritor. Para o realismo soviético (determinado pela bota de Stálin) a literatura deveria ser instrumento de pregação revolucionária. Sartre e Camus protestavam, ainda que encantados com Moscou nos anos 50, aceitavam que a propaganda política era necessária na literatura, embora não pudesse impor quais limitações à criatividade de quem escreve.

Robbe-Grillet, também nos anos 50, sustentou que ao romance compete apenas tentar inovar maneiras de narrar. O romance não pode ser extraído do vínculo com uma ideologia. Jorge Luís Borges pode ser um exemplo desse esforço. Numa época em que a maioria dos escritores da América Latina se preocupava com os barbudos chefiados por Fidel, e com o romantismo da revolução cubana, Borges não dava bola para Cuba. A arte, em forma de escrita, não teria limites e nem adesões políticas.

Entre nós, Jorge Amado, especialmente em sua primeira fase, discordaria do Borges. A questão ficaria ainda mais complicada se analisássemos o problema sob o ponto de vista de Machado de Assis e sua relação com a escravidão ou de Tobias Barreto, em relação à República. Em Nelson Rodrigues a questão do engajamento político ficaria ainda mais interessante. Penso que esses postulados possam ser aplicados também na poesia. Castro Alves é o poeta dos escravos. É o que dignifica seus versos, além da técnica de composição, encantadora.

O assunto fica picante quando pensado em torno de Fernando Pessoa, de seus versos, e de sua também ampla produção ensaística. Exemplifico um texto que Pessoa publicou em 1927 (ou em 1928) marcado por vários apontamentos de temas de política que realçam (ou que negam) o seu aclamado reacionarismo, como apontado por alguns.

Pessoa argumentou que toda revolução é inútil. Começou observando que os militares fazem política mesmo quando afirmam que não fazem política sob o argumento de que procuram apenas manter a ordem, moralizar os serviços públicos e administrar. Isto é, não se pode deixar de fazer política, fazendo política. Nossa história tem dessa premissa exemplos a mancheias.

Tem-se um paradoxo (e paradoxos fazem bem à alma, afirmava Pessoa). O exército não reforma, se não quiser… O texto deve ser lido no contexto português dos anos 20. O mundo mudou.

De fato, segundo Pessoa, “limitar a atividade política à manutenção da ordem e à administração é uma doutrina política”. Pessoa denominava essa abordagem de conservantismo simples. Explicava que o conservantismo simples era uma doutrina de defesa da estabilização da vida nacional. Haveria também um conservantismo reformista, que procurava impor um quadro institucional com forte apelo em instituições do passado. São os saudosistas.

Pessoa continua a exposição de sua teoria tratando do tema dos partidos políticos. Quem se ocupa seriamente de politica participa de partidos. Inscreve-se. Vai a debates. Paga contribuição. Por isso, o apartidário que se insurge contra os partidos sustenta uma posição vazia de sentido, a menos que seja efetivamente indiferente para com os problemas e dilemas da política. Políticos corruptos são todos os políticos que não pertencem ao nosso partido. Por óbvio, são os políticos dos partidos diferentes do nosso. Nossos correligionários são imaculados. Sempre. Os outros, não. Nunca.

Os partidos que estão no poder (partidos do governo) agregam um maior número de interesseiros. Estes, naturalmente, buscam partidos que os empreguem e os recompense. Como regra, assim, a adesão partidária não é doutrinária. É íntima, pragmática. No Brasil, chamamos de pragmatismo oportunista.

Spacca

Os partidos de oposição (que não tem o poder) ou que dificilmente conseguirão tê-lo, agregam os adeptos mais perturbadores. Acrescento: os mais perturbados. A disposição para o combate varia na razão inversa da probabilidade do alcance próximo do poder. São os mais extremistas, tanto de esquerda quando da direita. O extremismo, de um lado, ou de outro, é apenas um jogo de chave trocada. São retas paralelas que se encontram num infinito imaginário, e isso Mario Vargas Llosa deixou muito claro no belíssimo romance “História de Mayta”.

Para Pessoa, o grupo que luta pela revolução tem, na essência, e quanto ao poder, a mesma mentalidade do grupo que pretende derrubar e substituir. Assim, a revolução seria um modo violento de se deixar tudo da mesma maneira. Esse pensamento pode parecer cínico, ou dúbio. Porém, não se pode negar, com toda certeza, que não carregue uma filosofia política de inegável profundidade. A revolução é indício de nossa fragilidade de transformação estrutural, permitido usar um conceito de uma doutrina que Pessoa contestaria. Repudiava o sectarismo de esquerda, do mesmo modo que contestava o sectarismo de direita.

A revolução, nessa leitura distópica e amarga, não eliminaria a essência do poder. Apenas reorganizaria as peças num imaginário tabuleiro político. Há em Pessoa uma crítica (que pode ser universal) à condição humana no contexto da condição política. Há um risco comprovado de incapacidade de rompimento com os ciclos de repetição e de perpetuação das mesmas práticas, sob novas bandeiras.

Respeito ao jogo democrático

Essa circularidade é intransponível. A política se afunda em promessas de mudança que nunca chegam. Fidel imaginava um futuro cheio de utopia, e nesse ponto não era diferente de Santo Agostino, que depois da conversão viveu cismado com uma Cidade de Deus. Acredito que Pessoa não desestimulava o engajamento. No entanto, e disso estou seguro, o engajamento pode ser insuficiente quando confinado às arenas violentas de disputa.

A revolução, como apontado por Pessoa, e no contexto e seu tempo, apenas reorganiza o tabuleiro. O jogo do voto (e trata-se de um jogo, porque é uma disputa), se legítimo, permite o aperfeiçoamento das regras. Redesenha-se o tabuleiro. A revolução, segundo Fernando Pessoa, é inútil, porque apenas rearranja cadeiras, discursos, e ilusões, mantendo intactas as estruturas de poder e as contradições da condição humana.

A democracia, com todas as suas imperfeições, parece ser o único sistema que permite a renovação do poder sem recorrer à violência ou à ruptura. Devemos aceitar o resultado do jogo democrático, mesmo quando ele nos desagrada. E devemos nos insurgir quando o jogo foi um simulacro, uma encenação do jogo não jogado.

O problema é que nem sempre ganhamos. E o problema é que nem sempre aceitamos a derrota. O que fazer? E as ditaduras que decorrem do voto? As ditaduras do futuro (que chegou) serão (já são) burocracias tecnológicas, que expropriam a soberania e o poder individual de decisão. A ditadura com base na tecnologia mantém as aparências da legalidade.

Há uma fragilidade sistêmica nas revoluções e na incapacidade de romper com os ciclos de poder. O sectarismo é perigoso.  A transformação não está no rearranjo violento de cadeiras ou na troca de bandeiras. Creio que a transformação está no compromisso com as regras do jogo democrático e na vigilância contra as ameaças que atormentam a democracia, a exemplo das burocracias tecnológicas que transformam soberania em aparência, algoritmo em essência, fabulações em autenticidade fingida e acreditada.

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