Embargos de declaração: via para aperfeiçoar precedentes vinculantes
26 de janeiro de 2025, 8h00
Após o advento do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), o tema dos precedentes conquistou proeminência no âmbito dos estudos do Direito Processual Civil. A doutrina nacional logo se dividiu em duas posições distintas: aquela que defendeu a aproximação do sistema de justiça brasileiro à tradição da common law e outra que propugnou pela leitura dessas mudanças legislativas de acordo com a nossa tradição da civil law.
Parece-nos que as tradições anglo-saxônica ou romano-germânica não podem ser recepcionadas ou expurgadas de dado ordenamento jurídico por simples obra do Poder Legislativo. Trata-se, diferentemente, de uma construção cultural secular, viabilizada pela linguagem, responsável que é por constituir certa infraestrutura cognitiva para aqueles que operam em determinado sistema normativo. Em outras palavras, a tradição não é formada pela mera edição de leis, mas especialmente por práticas jurídicas que, devidamente sedimentadas, condicionam a maneira como os juristas raciocinam acerca do Direito. É verdadeira forma mentis, segundo Marino Marinelli [1].
Por esse motivo, filiamo-nos à segunda posição, de forma a adotar um posicionamento crítico no que concerne aos precedentes, adaptando institutos antigos à luz das alterações legislativas, porém sem ignorar as peculiaridades que estão enraizadas em nossa práxis jurídica.
Em vista disso, seguindo o posicionamento de Teresa Arruda Alvim, reconhecemos que dois sistemas de precedentes foram constituídos pelo CPC/2015: aquele apto a resolver questões de massa envolvendo casos idênticos e outro responsável por decidir acerca de questões mais complexas no contexto de casos essencialmente semelhantes. A tese jurídica é o instrumento a ser utilizado no primeiro, enquanto a ratio decidendi é a ferramenta capaz de ser operada no segundo sistema de precedentes [2].
Considerando o objeto do presente artigo, nossas atenções se voltarão à tese jurídica, a qual, diante de seu objetivo fundamental que é facilitar e uniformizar a aplicação dos precedentes em casos idênticos, não pode ser editada de qualquer maneira.
Em virtude do forma mentis do civil lawyer, de caráter eminentemente dedutivo que toma o texto normativo como ponto de partida, a tese é o elemento vinculante do precedente. Não que inexista a formação de uma ratio decidendi, mas esta é despicienda, uma vez que o escopo é resolver casos idênticos, isto é, litígios que dizem respeito a direitos homogêneos [3], em que seja possível identificar uma situação fática padrão replicada a diversas outras relações jurídicas [4].
Ao definir um rito especial de julgamento, inclusive com o sobrestamento dos processos individuais, e cortes procedimentais no julgamento de situações fático-jurídicas idênticas [5] em processos individuais, a redação da tese jurídica deve ser precisa e representar de modo exato a tipologia fática do precedente, portanto, deve estar cerrada aos casos paradigmas em comparação à ratio decidendi, em razão da maior capacidade de abstração dessa para alcançar situações diferentes, ainda que essencialmente semelhantes.
Em virtude das alterações legislativas dispostas pelo CPC/2015, a valorização da jurisprudência alcançou o seu ápice no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente com a introdução dos precedentes vinculantes em nosso sistema normativo (artigo 927 do CPC/2015), permitindo que o Poder Judiciário passasse a criar verdadeiras pautas de condutas, decisões com alta carga normativa responsáveis por orientar e determinar decisões futuras.

Diante da capacidade para criar pautas de conduta, o processo de formação de precedentes deve ser norteado pelo esmero com a legitimidade material durante o seu procedimento de formação, sobretudo com enfoque no contraditório e no direito de participação dos sujeitos processuais.
Em outros termos, ao criar pautas de condutas, por previsão do próprio CPC/2015, algumas decisões judiciais passaram a se aproximar de normas gerais e abstratas como aquelas postas por atos legislativos, exigindo, como ônus, melhor concretização do princípio democrático. Assim, em diversas oportunidades, o código previu a participação do amicus curiae e a realização das audiências públicas, providências necessárias para legitimar a replicação do julgamento transubjetivo formatado no sistema de precedentes, ao aumentar o nível de representatividade durante a sua elaboração.
Nesse cenário, reputamos que os embargos de declaração compreendem eficiente instrumento tanto para aperfeiçoamento da redação da tese jurídica quanto para a concretização do princípio democrático no decorrer do procedimento de formação do precedente [6].
O artigo 1.022, caput, do CPC/2015, admite o cabimento dos embargos de declaração contra qualquer decisão judicial. O mesmo diploma normativo definiu decisão judicial em sentido amplo de maneira denotativa [7], por intermédio dos artigos 203, 204 e 205.
Tais dispositivos devem ser interpretados de modo sistemático, a fim de qualificar a tese jurídica como uma espécie de decisão judicial em sentido amplo. Portanto, presente obscuridade, contradição, omissão ou erro material (artigo 1.022, I, II ou III, CPC/2015) é cabível a oposição dos embargos de declaração contra a tese, uma vez que a decisão acerca da tese é metalinguagem construída a partir da questão julgada no acórdão que reverbera na decisão do caso concreto e em todos os processos pendentes e futuros.
Uma hipótese de cabimento dos embargos de declaração ocorre quando houver descompasso entre a tese e os casos paradigmas, a exemplo de contrariar, omitir ou exorbitar questões fático-jurídicas que foram decididas no acórdão.
Como aduzido, a tese jurídica, responsável por representar o precedente e apta a resolver casos idênticos, deve ser adstrita aos casos paradigmas, sob pena de manifestação jurisdicional invadir competência legislativa. Por igual razão, e diante da necessidade de a tese ser mais rente aos casos paradigmas, a sua redação não pode se utilizar de termos indeterminados. Assim, a presença de cláusulas gerais ou de termos vagos ou ambíguos pode inviabilizar a sua função, qual seja a de facilitar e uniformizar a aplicação do precedente em questões de massa. Situações desse quilate nitidamente justificam a oposição dos embargos de declaração.
Outra hipótese de cabimento dos embargos de declaração decorre da necessidade de se concretizar o princípio democrático na formação do precedente. Em razão da necessidade de legitimidade material para a constituição de pautas de conduta, a representatividade é elemento crucial no processo de formação do precedente. Dessa forma, defendemos que o artigo 138, §§ 1º e 3º, CPC/2015, pode servir de fundamento para estender a legitimidade recursal aos amici curiae no rito de julgamento de casos repetitivos – equiparando-se ao regime jurídico do incidente de resolução de demandas repetitivas, por constituírem o microssistema dos repetitivos –, com o intuito de proporcionar a oportunidade para os amigos da corte representarem aqueles que poderão ser afetados pela tese, porém que não usufruíram do direito de participação durante o processo de elaboração do precedente.
O quanto aduzido esbarra imediatamente nas regras gerais de processo civil de formatação do sistema de precedentes, não há dúvida, o que não aparta a aplicabilidade e utilidade das considerações aqui tecidas no ambiente do processo tributário, uma vez que à falta de regulamentação exclusiva para o trato do conflito tributário, é o Código Processual Civil sua matriz normativa, especialmente no que toca ao sistema de precedentes vinculantes, ante a potencial homogeneidade normativa do direito tributário.
[1] MARINELLI, Marino. Os precedentes judiciais entre “obrigatoriedade” e “poder persuasivo”: notas comparativas e reflexões sobre o novo CPC (LGL\2015\1656) brasileiro e sua “súmula vinculante”. Civil Procedure Review, v. 12, n. 3: set.-dez. 2021, pp. 143-144.
[2] ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Precedentes, recurso especial e recurso extraordinário. 7ª edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, pp. 188 e segs.
[3] Direitos homogêneos são aqueles decorrentes de uma origem comum e compartilhados em igual medida por indivíduos que se encontram unidos pela mesma situação de fato, a exemplo do direito alegado por sindicato ou associação que procure impugnar, via mandado de segurança coletivo e em benefício dos contribuintes que integrem a respectiva categoria, a cobrança de tributo ilegal.
[4] ALVIM, Teresa Arruda; BARIONI, Rodrigo. Recursos repetitivos: tese jurídica e ratio decidendi. Revista de Processo, São Paulo, v. 296, out./2019, p. 9.
[5] Os cortes procedimentais são aqueles que, diante da existência de precedente vinculante, aceleram o procedimento judicial, a exemplo da dispensa do reexame necessário (artigo 496, §4º, CPC/2015) – que acelera o trânsito em julgado – e do julgamento de improcedência liminar do pedido, previsto no artigo 332 do CPC/2015 que permite a prolação de sentença de mérito logo após o exame da petição inicial.
[6] ALVIM, Teresa Arruda; SHIMODA, Caio. A nova função dos embargos de declaração: instrumento para o aperfeiçoamento da tese formada em recursos repetitivos. Revista de Processo, vol. 357, ano 49. São Paulo: Revista dos Tribunais, novembro 2024, pp. 12 e segs.
[7] Definir por denotação é enumerar os objetos que compõem determinada classe. Por sua vez, definir por conotação é indicar as características do objeto de determinada classe ou o critério de uso da palavra; ou, por outras palavras, compreende o conjunto de requisitos/atributos da palavra/objeto/termo – ex.: a definição de tributo no artigo 3º do Código Tributário Nacional.
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