Considerações sobre a execução da pena de multa
26 de janeiro de 2025, 11h13
A pena de multa é uma sanção criminal que, ao lado das penas privativas de liberdade e restritivas de direito, corresponde a uma resposta estatal ao crime cometido, servindo à finalidade retributiva e preventiva comum às penas.
Ela é materializada na forma de uma prestação em dinheiro ao fundo penitenciário e é fixada em sentença penal condenatória (artigo 49, CP). Pelos contornos peculiares que lhe dá a lei penal, ela é contada em “dias-multa”, que nada mais é que uma “unidade de medida” criada pelo legislador que se refere a um valor que será ou uma fração ou um múltiplo do salário-mínimo vigente, a depender do julgador.
Desta forma, o juiz, quando não houver limites especiais fixados no preceito secundário do tipo (como ocorre, p. ex., nos crimes da Lei de Drogas e nos crimes da Lei 6.766/79), fixará a pena de multa considerando os limites entre 10 e 360 dias-multa. Posteriormente, decidirá sobre quanto equivalerá cada dia-multa, o que irá variar entre 1/30 e 5x o salário-mínimo vigente à época do fato.
Infere-se, assim, que são dois momentos de fixação da pena de multa, quais sejam, o da fixação da quantidade de dias-multa e o do seu valor, tendo este como base o salário-mínimo. Os critérios que devem ser adotados não são pacíficos na doutrina, havendo quem defenda que na primeira fase se deva considerar a gravidade do crime e a culpabilidade do autor e, na segunda, a situação econômica do réu; há também quem entenda que deva ser utilizado todo o sistema trifásico de aplicação da pena; por fim, ainda há outros que defendem ou que se utilize somente as circunstâncias judiciais (artigo 59, CP) ou somente as circunstâncias de aumento e diminuição.
A multa, ainda, poderá ser aplicada isoladamente, quando o tipo somente a ela fizer referência (p. ex., intimidação sistemática prevista no artigo 146-A, CP), ou poderá ser cumulativa, quando aquele determinar sua aplicação conjunta com a pena privativa de liberdade (p. ex., furto, roubo, extorsão, estelionato, etc.). Poderá, ainda, ser alternativa, quando o tipo possibilitar ao julgador escolher entre ela e a pena privativa de liberdade (p. ex., divulgação de segredo, violação de correspondência, violação de domicílio, etc.). Poderá, por fim, ser comum, quando resultar diretamente do tipo, ou ser substitutiva/vicariante, quando resultar da conversão da pena privativa de liberdade (artigo 60, §2º, CP) ou da pena restritiva de direitos (artigo 43, §2º, CP). Vale, por fim, ressaltar que, em caso de concurso de crimes, as penas de multa são impostas de maneira isolada, ou seja, aplicadas crime por crime (artigo 72, CP).
Aspectos sobre o pagamento da multa
Aduz a lei penal que o pagamento da multa, atualizada segundo os índices de correção monetária, deverá ser feita em até 10 dias do trânsito em julgado da sentença, podendo, a requerimento, ser realizada de forma parcelada ou mesmo em desconto na folha de pagamento, desde que não incida sobre os recursos indispensáveis ao sustento do executado e sua família (artigo 50, caput, §§1º e 2º, CP; artigos 164, 168 e 169, LEP).
Execução da pena de multa
Não há, ainda, um procedimento especial para a execução da pena de multa, de maneira que são reunidos alguns diplomas legais na tentativa de se criar uma certa sucessão de atos processuais que seja coerente com a peculiaridade do objeto dessa execução.
De modo geral, o artigo 51, CP, aduz que a multa, após transitada em julgado a sentença, é considerada dívida de valor, sendo aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública. Refere-se a lei, de modo geral, ao Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66), à Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/80) e, subsidiariamente, ao Código de Processo Civil. No entanto, não se pode olvidar que continuam aplicáveis as disposições processuais contidas na Lei de Execução Penal, Código Penal e Código de Processo Penal, dada a natureza criminal da penal de multa.
Certo é que, com o trânsito em julgado da sentença, o sentenciado é intimado, pelo juízo da condenação, para pagar a multa penal, sob pena de início da execução (artigo 50, CP).
Competência
Antes da Lei 13.964/19, que alterou o artigo 51, CP, a multa era executada perante as varas de execução fiscal, que as recebiam por meio do título executivo próprio dessa seara, ou seja, por certidão de dívida ativa.
Após o advento da referida lei ficou claro que a competência é, sem dúvida, do juiz da vara de execução criminal. Alguma dúvida, no entanto, ainda resta acerca da competência territorial, uma vez que não há indicação direta na legislação a esse respeito.
Ficou assentado no estado de São Paulo, por exemplo, por meio de suscitação de conflitos de competência, que o sentenciado solto, ao tempo do início da execução, a terá desenvolvida pelo juízo da Comarca onde possui domicílio [1], e quando preso, perante o juízo da Comarca onde ocorreu o processo de conhecimento. Considera-se, quanto a este último, que não haveria necessidade de alteração de competência por eventual mudança de estabelecimento penal durante a execução da pena corpórea, tendo-se também em conta a alta probabilidade dessa ocorrência em razão de progressão de regime e concessão de livramento condicional.
Diferente foi a conclusão do Superior Tribunal de Justiça que, invocando o artigo 65 da LEP, assentou a orientação segundo a qual é competente o juízo da Comarca em que se prolatou a sentença condenatória, sustentando, para além, que a execução é una e não pode ser cindida, de maneira que não é possível, por exemplo, que o juízo da execução da pena privativa de liberdade seja de um Estado e o da multa seja de outro [2]. Assentou, também, a tese segundo a qual, pelo mesmo fundamento, a execução da pena de multa proveniente de sentença prolatada por juiz federal, estando o acusado em estabelecimento estadual, compete ao juiz estadual das execuções, mantendo-se com este os processos da pena privativa de liberdade e da multa.
Dessa forma, segundo esta última orientação, caberá ao juiz das execuções da Comarca que foi prolatada a sentença de condenação o processamento da execução da pena de multa. Frise-se, ainda, que essa orientação sustenta que a execução é una, de maneira que não se admite que o juízo da execução da pena privativa de liberdade seja um e o da pena de multa seja outro, tanto em relação ao território quanto às esferas da justiça comum (estadual e federal).
Legitimidade
Por algum tempo se discutiu sobre a legitimidade para a propositura da execução da multa, tendo vista a ausência de regramento específico. Como dito alhures, os Procuradores que oficiavam junto à Fazenda Pública eram os responsáveis, por meio de CDA, a executar a pena de multa. Note-se que somente as multas com valor superior a R$ 20 mil eram executadas (artigo 2º, Portaria MF 75/2012).
Julgada a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3150 perante o STF, em agosto de 2019, deu-se interpretação conforme a Constituição ao artigo 51, CP, de maneira a definir duas teses: o Ministério Público é o legitimado prioritário para a execução da pena de multa perante as varas de execução criminal; após 90 dias da intimação do Parquet, o juiz da execução dará ciência ao órgão da Fazenda Pública para a cobrança da multa nas varas de execução fiscal.
Com o advento da Lei 13.964/19, como dito, a competência é sempre das varas de execução criminal. Discute-se se o Ministério Público perderia sua legitimidade em face do término dos 90 dias de inércia ou se a Procuradoria tão somente ganhasse legitimidade subsidiária para a propositura da ação. A orientação predominante é esta última, havendo, inclusive, quem sustente que, por ser o juízo das execuções o único competente, a referida lei retirou da Procuradoria sua legitimidade.
Ao tempo de produção deste escrito há pendência de julgamento do RE 1.377.843/PR com repercussão geral reconhecida (Tema 1219) que justamente discute se há ou não legitimidade subsidiária para a Procuradoria executar a pena de multa na inércia do Ministério Público.
Procedimento
Como dito anteriormente, existem algumas normas processuais de vários diplomas legais que, de alguma maneira, incidem sobre o procedimento da execução, sem que haja, no entanto, um direcionamento certo e pacífico.
Com a inércia do sentenciado após ser intimado a pagar a multa em dez dias do trânsito em julgado da sentença no juízo do conhecimento, passa a ter o Ministério Público o direito de iniciar a execução. Ressalta-se que cabe ao promotor de justiça a quem se atribui oficiar nas varas de execução criminal a escolha sobre iniciar um processo judicial de execução ou tão somente protestar o título em cartório, observadas as hipóteses de ajuizamento obrigatório (artigo 3º caput e §2º da Resolução 1.229/2020 — PGJ-CGMP).
A petição inicial deverá, a nosso juízo, obedecer ao disposto no artigo 319, CPC, naquilo que com ele for compatível (por exemplo, não há que se falar em indicação de opção por audiência de conciliação). Deverá, ainda, vir acompanhado de certidão de sentença, expedida pelo Ofício do juízo da condenação, na qual deve conter, dentre outras informações, o valor atualizado da pena de multa[3]. É esta certidão de sentença (chamada de certidão de multa), inclusive, que serve de título executivo.
A citação se faz por meio de carta com aviso de recebimento (artigo 8º, I, LEF), sendo possível a citação por oficial de justiça ou edital (artigo 8º, III, LEF) caso infrutífera aquela. Por óbvio há a possibilidade de citação em balcão, caso o executado compareça voluntariamente no ofício competente (artigo 246, §1º-A, III, CPC). Cumpre registrar que o despacho que ordenar a citação interrompe o prazo de prescrição (artigo 8º, §2º, LEF).
Citado o executado, terá dez dias úteis (e não 5 como aduz a LEF) para pagar a multa ou garantir a execução. Cumpre ressaltar que é possível, ainda, requerer o parcelamento da multa, o desconto em folha de pagamento ou mesmo nomear bens à penhora para a satisfação da obrigação.
Caso haja o pagamento, seja à vista ou até o final das parcelas acordadas, ou mesmo após a realização do leilão judicial de bens penhorados, deverá o juiz das execuções declarar extinta a punibilidade do agente quanto à pena de multa, oficiando-se, se o caso, a Vara onde correu o processo de conhecimento.
Caso não haja o pagamento no prazo, poderá o juiz penhorar tantos bens quanto bastem para saldar a dívida (artigo 10, LEF), obedecida a ordem legal de preferência (artigo 11, LEF).
É comum, nesses casos, que se utilize as ferramentas de busca de bens disponibilizados aos magistrados e institucionalizados pelo Conselho Nacional de Justiça. É o caso, por exemplo, do sistema Sisbajud, ligado ao Banco Central, para a busca de dinheiro e ativos em contas em instituições financeiras (artigo 854, CPC), o Renajud para a busca de veículos, o Serp para a busca de imóveis e assim por diante. Não é incomum, também, que se busque penhorar o saldo que o executado preso possua em razão do trabalho que eventualmente exerça no estabelecimento penal, não podendo o desconto ser superior a ¼ e nem inferior a 1/10 do valor total (artigos 168 caput e I, e 178, LEP). A esse respeito interessa apontar que o trabalho exercido é remunerado mediante tabela prévia e não pode ser inferior a ¾ do salário-mínimo (artigo 29, LEP).
Encontrado bens móveis ou imóveis, o executado deve ser intimado da constrição (artigo 12, LEF)[4], abrindo-se o prazo de 30 dias úteis para a oposição de embargos à execução (artigo 16, III, LEF), por meio do qual poderá alegar toda a matéria útil à sua defesa, sendo a ele possível, inclusive, requerer provas, juntar documentos e rol de até três testemunhas, podendo o juiz dobrar essa quantidade a seu critério (artigo 16, §2º, LEF). Há de se pontuar, no entanto, que, apesar desse permissivo, não é comum a designação de audiência para oitiva de testemunhas. Em se tratando de bens imóveis, o cônjuge deverá também ser intimado (art. 12, §2º), sendo, neste caso, o leilão conduzido pelo juízo cível em autos apartados (artigo 165, LEP).
Finalizadas as buscas e concluindo-se pela ineficácia das medidas, pode-se, ainda, ser determinada a suspensão do processo pelo prazo de um ano e, não sendo encontrados outros bens, ser determinado o arquivamento dos autos, momento no qual se volta a contar a prescrição (artigo 40, caput e §§1º a 4º, LEF). Pode, também, ser extinta a execução por insuficiência de bens, se assim se manifestar o Parquet.
O valor eventualmente encontrado e não desbloqueado é enviado ao fundo penitenciário. Cumpre registrar que, não havendo fundos estaduais, o valor é enviado ao Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), criado pela Lei Complementar 79/94, a quem incumbe, dentre outas funções, “proporcionar recursos e meios para financiar e apoiar as atividades e os programas de modernização e aprimoramento do sistema penitenciário nacional” (artigo 1º, LC 79/94). No estado de São Paulo, o valor é enviado ao Fundo Penitenciário do Estado de São Paulo (Funpesp), criado pela Lei Estadual 9.171/95, com a mesma finalidade do Funpen. Cabe registrar que os recursos da Funpesp são usados, por exemplo, para a construção, reforma, ampliação e aprimoramento dos estabelecimentos penais; aquisição de materiais, equipamentos e veículos especializados necessários ao funcionamento desses estabelecimentos; implantação de medidas pedagógicas relacionadas com a profissionalização do preso e internado, dentre outros (artigo 3º, Lei Estadual 9.171/95).
Conclusão
A pena de multa, como vimos, é uma sanção criminal que busca, ao lado das penas privativas de liberdade e restritivas de direito, servir de instrumento de reação ao delito praticado ao ramo mais drástico do Direito.
Ela é, em suma, uma prestação em dinheiro paga ao Fundo Penitenciário, seja nacional ou estadual, e é fixada em sentença penal condenatória, sendo contada em dias-multa, que nada mais é que uma fração ou múltiplo do salário-mínimo vigente à época do fato.
Ainda se discute acerca da sucessão mais conveniente de atos processuais a ser adotada para a execução desta sanção criminal, o que, a nosso ver, contribui para a insegurança jurídica e atrapalha a função preventiva e retributiva da pena.
Certo é que com o cotidiano forense vão se instalando modos mais ou menos convenientes de se realizar a cobrança dessa prestação em dinheiro, o que, de algum modo, contribui para que, posteriormente, o legislador federal possa, enfim, estabelecer por via apropriada o procedimento a ser adotada nessa infante seara da execução da pena de multa.
Referências bibliográficas
JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
[1] Nesse sentido o art. 530 das Normas da Corregedoria-Geral de Justiça (NCGJ) do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP).
[2] Nesse sentido: CC n. 189.130/SC, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 14/9/2022, DJe de 28/9/2022; CC n. 179.037/PR, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 22/9/2021, DJe de 27/9/2021.
[3] Nesse sentido, vide arts. 479 e ss. das NCGJ do TJ/SP.
[4] Há, neste momento, alguns que aplicam primeiramente o disposto no art. 854, §§2º e 3º, CPC, ou seja, intimam o executado para que, no prazo de 5 dias, comprove que as quantias bloqueadas são impenhoráveis ou que ainda remanesce indisponibilidade excessiva de ativos financeiros. Somente depois desse prazo que ele é novamente intimado para apresentar os embargos à execução.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!